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Histórias de Amor Moderno: “Faz caretas, contorce-se, interpreta à sua maneira o Liam Gallagher dos seus sonhos”

“Na época, andar era o estado imediatamente anterior ao namoro, uma fase de relacionamento mais imatura, expectante, descomprometida e vibrante.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Chemical Hearts / IMDB
30 de agosto de 2024 às 22:52 Maria Olívia Sebastião

Numa das minhas primeiras memórias do Gaspar, vejo-o sentado a fumar um cigarro de uma maneira estranha enquanto se ri aos solavancos. Lembro-me de notar que ele, ao contrário do que qualquer fumador comum faria, segurava o cigarro não entre o indicador e o médio, mas entre este e o anelar. Isso conferia-lhe um ar estranho, como se em vez de dedos das mãos tivesse membranas, como um pato.

Noutra dessas primeiras memórias, está o Gaspar e outros rapazes e raparigas sentados em redor de uma mesa. Parávamos sempre nas mesas diante do bar da cave que fica naquela espécie de adro junto às portas dos anfiteatros. As aulas começavam às oito da manhã. Normalmente, só assistíamos à primeira. A partir das dez, começavam as rodadas de cerveja. Naquele tempo ainda se podia fumar no edifício, desde que fora das salas de aula. Então, ali ficávamos, a beber, a fumar, a falar, a cantar e a tocar viola. Nessa memória, o Gaspar tem a guitarra no colo e está a tocar de uma maneira muito bruta e pouco rigorosa uma qualquer canção dos Oasis. Ele grita e faz voz rouca, quase estridente. Faz caretas, contorce-se, interpreta à sua maneira o Liam Gallagher dos seus sonhos. É uma estrela do britpop. Os outros todos cantam com ele, berram com ele, no fim, riem com ele. São miúdos cheios de ídolos, cheios de sonhos, cheios de energia. Todos fumam cigarros. Mas só o Gaspar fuma o seu com ele seguro entre o médio e o anelar. "Fuma como um homem adulto, mas pega no cigarro como se fosse um pato", lembro-me de ter pensado nisto e de me ter rido. 

Foi assim que reparei nele. Não por ser o mais bonito e atraente - que não era, era só um rapaz normal, com uns olhos levemente rasgados, um sorriso muito aberto, quase infantil, um cabelo arrepiado, ainda vestígios de borbulhas na cara onde uma barba mal semeada começava a ganhar forma -, mas por ser o mais extravagante, o mais divertido, o mais espalhafatoso. O simples gesto de olhar para ele divertia-me.

Falei com o Gaspar pela primeira vez no primeiro jantar de curso, aquele em que nós, veteranos, fazíamos o acolhimento aos caloiros. Na nossa faculdade não havia a tradição da praxe académica. Era, aliás, uma faculdade anti-tradição académica, essa "herança do antigo regime", de acordo com os movimentos que defendiam o fim daquele tipo de práticas tontas e prepotentes. A nossa praxe era sair com os mais novos, jantar com eles, ficar a conhecê-los. O Gaspar ainda não tinha 18 anos quando entrou para a faculdade, viria a completá-los em novembro. Já eu tinha feito os 20. Demorei mais um ano a terminar o secundário do que o previsto. Quando ele entrou, estava eu no segundo ano do curso, mas ainda tinha cadeiras do primeiro penduradas, pelo que me cruzava com os caloiros em muitos horários e em muitas salas.

"És tu o Liam Gallagher do curso, não é?", perguntei-lhe quando bebíamos uma imperial, todos juntos, à porta do restaurante para os lados do Bairro Alto, um tasco daqueles que hoje em dia praticamente já não existem. Ele ficou muito embasbacado, atrapalhado mesmo, o que uma vez mais me divertiu. "Como é que um rapaz tão espalhafatoso como tu fica tão atrapalhado com uma pergunta tão simples?" Ele soltou um dos seus proverbiais ehehehehehehs, muito sonoros e alegres, cheios de vida. Senti de imediato qualquer coisa agitar-se dentro de mim, mas não identifiquei de imediato o que era. Podia ser paixão. Contudo, caso fosse, seria diferente de todas as que eu experimentara anteriormente. "O meu nome é Gabriela e já te ouvi tocar e berrar várias vezes." Ele estava a fumar como sempre fumava, com o SG Gigante entre os dedos do meio da mão direita. Tossiu como se se engasgasse e disse "eu também já te vi por lá e até já sabia o teu nome". "Só fiquei atrapalhado porque és assim gira." Não sei como explicar. Tudo o que o Gaspar fazia despertava em mim uma espécie de diversão carinhosa. Era como se fosse uma criança a fazer coisas ingenuamente divertidas, o que era adorável. Beijámo-nos pela primeira vez nessa mesma noite.

Não demorou muito tempo até as coisas se tornarem mais sérias, mas faltava-nos a privacidade para fazermos tudo o que nos apetecia. Não podíamos ir para casa dele, a mãe dele não deixava que levasse amigos e ninguém sabia que andávamos - na época, andar era o estado imediatamente anterior ao namoro, uma fase de relacionamento mais imatura, expectante, descomprometida e vibrante. Quando somos mais novos, andamos com alguém se lhe damos a mão e vamos para os recantos da escola dar beijos a sério. Como já estávamos na faculdade, as exigências físicas do andar eram outras, mais avançadas e sem-vergonha. No entanto, como a casa dele era proibida e a minha ficava longe, não tínhamos como concretizar os desejos. 

O Gaspar não era de infringir as regras. E eu regressara alguns meses antes a casa dos meus pais, depois de ter vivido um ano e meio com um homem quase dez anos mais velho do que eu. Namorávamos há algum tempo e eu, assim que fiz 18 anos, decidi ir viver com ele. Revelou-se uma decisão terrível, atrapalhou-me os estudos, criou-me problemas familiares e ainda me mostrou que devemos ter cuidado com as pessoas em quem decidimos confiar. Nem sempre são o que parecem. E às vezes aquilo que são é muito mais violento do que poderíamos imaginar. Mas não me arrependo do curso que a vida tomou, pois foi também graças a ele e a essa combinação de circunstâncias que acabei por conhecer o Gaspar e ter a felicidade de partilhar com ele alguns dos momentos mais felizes da minha vida.

Resolvemos a situação do desejo carnal de uma maneira não muito convencional. O Gaspar pediu a um amigo dele que nos cedesse o quarto que alugava numa casa partilhada - assim mesmo, sem vergonha nem papas da língua. "Precisamos mesmo, ó João. A gente já não aguenta mais." Foi assim que ele expôs a situação, à minha frente. O João passava boa parte do tempo de aulas no bar da nossa faculdade embora estivesse matriculado numa privada no centro da cidade. O João deu-nos a chave. "Vão lá." Lá fomos, cegos de desejo.

Lembro-me que o Gaspar estava nervoso quando nos começámos a despir. "Nunca fiz isto, Gábi", disse ele e parou. Parámos os dois. "Não te preocupes, tudo se resolve", disse-lhe, e continuámos. Passámos a tarde inteira enfiados na cama. E passámos os três anos seguintes a fazer o que fizemos nessa tarde: a crescer juntos, a descobrir mundo, a aprender e a explorar. O Gaspar foi das pessoas mais puras e bondosas que conheci na vida. Talvez tenha o melhor coração com quem me cruzei. Além disso, é seguramente o rapaz mais brilhante do curso, talvez da faculdade. Muito rapidamente se tornou no preferido dos professores, aquele em quem mais depositavam esperança e a quem auguravam o futuro mais risonho. Eu, porém, debatia-me com diferentes problemas. As cadeiras que ficavam para trás iam-se acumulando. O meu ritmo intelectual era mais lento, tudo na minha cabeça demorava até se transformar em informação útil. Por outro lado, suspirava pelo dia em que conseguisse sair novamente de casa dos meus pais. O ambiente em casa era cada vez mais tenso. Acho que todos nos odiávamos mutuamente e em segredo - mas um segredo não muito secreto. 

Cheguei a conversar com o Gaspar para irmos viver juntos, mas ele tinha as suas ambições. E tinha a sua juventude e a sua inexperiência, e o direito a fazer as coisas ao seu ritmo. E tudo se foi tornando insuportável para mim. O meu amor pelo Gaspar não se desfez, pelo menos não naquele momento. O tempo foi-me erodindo os sentimentos, mas naquele dia em que lhe disse "senta-te, precisamos de falar" ainda o amava profundamente. "Não aguento mais a minha vida", disse-lhe. "Tenho de mudar tudo. Temos de seguir caminhos diferentes." Não me demorei na despedida. Saí do adro, subi as escadas e nunca mais pus os pés na faculdade. Soube mais tarde que o Gaspar ficou desfeito, mas que, mesmo assim, foi o melhor do curso. E que mais tarde emigrou, saiu para a América. Sempre com brilho. Na última memória que tenho dele, vejo-o a fumar com o cigarro entre os dedos do meio. As lágrimas caíam-lhe pelo rosto, mas ele não disse nada.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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