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Histórias de Amor Moderno: “Nesse dia, por coincidência, voámos para o mesmo destino. Por azar, esse destino era Roma.”

“No caso deste tipo de paixão, e quando se tem a minha idade, normalmente é o não fazer xis que provoca o ípsilon. ” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
24 de junho de 2023 Maria Olívia Sebastião

Conhecemo-nos em Frankfurt, mas não exatamente em Frankfurt, que é uma cidade que até hoje praticamente desconheço. Sei como é vista de cima - uma pessoa vai decorando coisas, há paisagens que se tornam forçadamente familiares de tantas vezes que se repetem diante dos nossos olhos. É o que acontece com a skyline de Frankfurt, com os seus arranha-céus desconjuntados e desalinhados, um de cada estilo, uns com uma ponta afiada, outros arredondados, uns espelhados, outros negros e metálicos, erigidos numa desordem que nem parece alemã.

Eu viajo muito, tal como o Pedro. Gosto muito do nome, Pedro: distinto o suficiente para transmitir, à partida, uma imagem elegante e serena; indistinto o bastante para poder ser virtualmente qualquer homem nascido num país de língua portuguesa. O Pedro é representante de uma marca de software. Passa algum tempo no Porto, cidade onde nasceu e que mantém como base e referência, mas viaja constantemente e pelo mundo inteiro. Eu sou observadora internacional, dedico-me a verificar o cumprimento das normas ambientais por parte de países, instituições e empresas privadas - normalmente grandes corporações - e a reportar as minhas conclusões a um instituto independente com credenciais em todo o mundo ocidental, na Austrália, na Nova Zelândia e no Japão.

Encontrámo-nos na fila para a revista de segurança. Ele estava à minha frente. Depois de passarmos o pórtico dos detetores de metais - nenhum de nós apitou -, aguardámos cada um pela sua bagagem. Olhámos um para o outro e, embora desconhecidos, fizemos aquela expressão meio sorridente, como quem diz "tem de ser", ou "é o costume", ou "cá estamos" - uma qualquer dessas banalidades que as pessoas comunicam entre si quando não têm nada para dizer uma à outra, mas por alguma razão sentem necessidade de estabelecer comunicação, mesmo sem dizer palavra. A mochila - o Pedro gosta de usar mochila - dele chegou e, enquanto ele voltava a arrumar os pertences lá dentro, notei que estava a ler um livro de Dorothy Parker. Não resisti e abordei-o, "what a fine taste you have", disse-lhe em inglês, pois não sabia que ele era português. "You know her writing?", respondeu-me, e a pronúncia denunciou-o - "ah, também é português", disse-lhe, e rimos. O inglês falado por portugueses é inconfundível, só um desatento poderá não o reconhecer.

Não vou entrar em mais detalhes supérfluos, que só fariam sentido se eu estivesse a escrever as minhas memórias. O Pedro é um homem interessante, como o livro que me fez reparar nele fazia antecipar. Inteligente, culto, elegante, bem vestido. É uns poucos anos mais novo do que eu (estou agora a entrar nos quarentas, ele ainda vai a meio dos trintas). Nesse dia, por coincidência, voámos para o mesmo destino. Por azar, esse destino era Roma. Eu e um homem charmoso em Roma, ambos levemente embevecidos um com o outro. É uma história que se escreve sozinha.

A paixão fulminante pode ser desencadeada por inúmeros fatores. Poderia elaborar aqui uma tese com dimensão académica e fundamentos científicos, como aqueles estudos que saem todos os dias atestando que fazer xis provoca ípsilon. No caso deste tipo de paixão, e quando se tem a minha idade, normalmente é o não fazer xis que provoca o ípsilon. Eu era uma mulher comprometida, embora não casada. Vivia com o meu companheiro há mais de oito anos. Estas quantidades de tempo passam, em simultâneo, devagar e depressa. Quando deixamos de sentir desejo, de ter apetite, de lidar com o fogo incandescente dos corpos um do outro a cada chegada a casa, a cada acordar, o tempo passado lado a lado arrasta-se como se não houvesse outro objetivo comum além do de chegar vivo ao dia seguinte. Um objetivo singelo que levará às questões do dia anterior e que terão as respostas do costume. É também um tempo que passa depressa porque, quando olhamos para trás, percebemos a vida que desperdiçámos neste modo, postos em pausa sabe-se lá porquê, e os anos passaram, e agora somos mais velhos, temos menos vida, e menos beleza, e menos juventude, menos jovialidade. Os músculos ficaram um pouco mais flácidos, a pele tem mais algumas rugas. O esplendor passou e nós estávamos parados, à espera não se sabe ao certo do quê - talvez de um milagre que nos reconstruísse a líbido.

O Pedro com a sua mochila foi uma paixão imediata porque o desejei sem tréguas desde que olhei para ele com atenção e senti de volta o mesmo desejo fogoso e descontrolado. Ele tinha ainda outra vantagem: era descomprometido. Depois de Roma, encontrámo-nos mais vezes, sempre em viagem. O desejo guardado e alimentado pela distância e pela saudade era consumado quase sempre em hotéis que ficam às portas dos aeroportos. Pontualmente, viajávamos juntos para os mesmos destinos. Por vezes, conseguíamos alterar os roteiros de maneira a cruzarmos viagem num qualquer hub de voos internacionais, fosse em Heathrow, em Atlanta, em Frankfurt, ou no Dubai, era indiferente desde que fôssemos conseguindo estar juntos - sempre mantendo o difícil equilíbrio entre satisfazer os desejos da paixão e conservar a sanidade da vida no mundo real. 

Não consegui manter a minha relação muito mais tempo, a decência não me permitiu continuar a enganar o meu companheiro. Contei-lhe parte do sucedido, disse-lhe que o nosso fogo se extinguira havia muito. Concordou. Falei-lhe vagamente do Pedro, mas não descrevi com detalhe o nosso relacionamento - como descrever uma coisa que é quase toda feita de fantasia, de expectativa, de efabulação, de memória e de projeção? Não lhe disse quantas vezes estivemos juntos em hotéis de uma noite entre aterragens e partidas. Disse-lhe só que tinha acontecido. Aceitou tudo sem me julgar, o que por um lado é notável e por outro me leva a desconfiar que tenha feito qualquer coisa semelhante, embora com contornos e contexto diferentes. Não adianta pensar nisso. Se o fez, não teve coragem de mo dizer, e eu não tenho o direito de desconfiar dele. Cada um com a sua consciência.

O Pedro nunca quis que aquilo que temos subisse de nível. "Somos felizes assim mesmo", diz-me ele. "O nosso gozo é o desconhecido", repete-me sempre que insisto. Não quer laços nem amarras, prefere-nos assim, numa espécie de romance aéreo. A verdade é que me faz sentir nas nuvens, sempre, quer estejamos juntos ou não. Não sei se algum dia as coisas irão mudar, mas também não tenho a certeza de que isso nos trouxesse mais alegria, mais prazer ou mais aconchego. Talvez seja este o segredo do amor: consumir com moderação, não o gastar todo num instante, para que seja sempre novo e cheio de esperança.

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