Inicialmente, não era para eu ter algum interesse especial pelo caso Amber Heard X Johnny Depp. Mas, contra a minha vontade, fui atraída para esse vórtice de misoginia que mais parece algum canto obscuro do Reddit ou 4Chan. É quase impossível entrar nas redes sociais sem se deparar com uma avalanche de memes sexistas que até então achávamos que estavam enterrados.
Dada a intensidade com que as pessoas na internet estão a lidar com o julgamento que envolve Johnny Depp e Amber Heard, é importante inserir um disclaimer: não é o meu objetivo defender nenhum dos lados. Há evidências jurídicas de que tanto um como outro agiram com agressividade ao longo do casamento. É um caso complexo, cheio de nuances e contradições, e não me cabe a mim emitir nenhum atestado de culpa ou inocência. O meu intuito é entender o que a representação do julgamento nas redes sociais diz sobre os nossos tempos.
Independente do resultado do processo, a internet já tem seu veredicto: no TikTok, por exemplo, a hashtag #JusticeForJohnnyDepp tem 12 bilhões de visualizações enquanto #JusticeForAmberHeard tem apenas 44 milhões. A aba "explorar" do meu Instagram está repleta de imagens de Johnny Depp, normalmente jovem, no ápice de sua beleza, e frases inspiradoras falsamente atribuídas a ele. Independentemente da sua culpa ou inocência, é estarrecedor que um homem acusado de violência doméstica seja louvado deste modo durante seu o julgamento.
Já Amber Heard é alvo de constantes mensagens de ódio, ridicularização e teorias conspiratórias que surgem vindas de um público que abrange tribos tão distintas quanto feministas que acreditam que a atriz prejudica reais vítimas de abuso, ativistas pelos direitos dos homens vinculados à extrema-direita ou simplesmente fãs do Johnny Depp. Fora isto, há ainda contas que capitalizam a popularidade para ganhar engajamento.
A reação é desproporcional mesmo que as alegações em jogo no tribunal sejam provadas – afinal, celebridades masculinas que cometeram crimes muito piores não são alvo de hostilidade, ao contrário, recebem até amparo. Quase nenhum teve a vida ou carreira destruída – como mostra esse tweet.
Aqueles que ousam defender Amber Heard também são alvo de ataques e cyberbullying. É um bom exemplo do que a pesquisadora Alice Marwick chama de "assédio moralmente motivado em rede": ou seja, um grupo que decide que o assédio moral é uma resposta válida em nome do bem.
A viralização de memes com esse conteúdo afeta aqueles que sobreviveram a situações semelhantes àquelas relatadas. "É traumático para muitos sobreviventes assistir uma mulher relatar suas experiências com violência doméstica. Mas, aqui, as provas não só estão sendo negadas, como ridicularizadas, o que torna tudo ainda mais doloroso e humilhante" diz Ruth Davison, executiva da Refufee, instituição de apoio a vítimas de violência doméstica. Ou seja, há consequências reais para mulheres do mundo inteiro.
Há razões para pensar duas vezes antes de partilhar memes contra Amber Heard – mesmo que você acredite que ela seja a pior pessoa do mundo. O The Daily Wire, site conservador que pertence ao influencer de extrema-direita Ben Shapiro, pagou dezenas de milhares de dólares para promover postagens contra Amber Heard no Facebook e Instagram. Isso mostra que o julgamento deixou de ser somente sobre o casal e virou um aspeto da guerra cultural que busca o retroceder as conquistas do feminismo pós-Harvey Weinstein.
Clichês Sexistas
"Amber Heard é só uma interesseira atrás de dinheiro que quis subir na carreira e destruir um ícone de Hollywood", diz uma das postagens compartilhadas inúmeras vezes - alguns têm mais de um bilhão de visualizações. Em resumo, Amber Heard seria uma clássica femme fatale: a mulher materialista que usa o sexo como forma de manipulação a fim de arruinar o homem.
O arquétipo da femme fatale era bastante recorrente nos filmes noir dos anos 40 e 50. Os Estados Unidos acabavam de sair vitoriosos da Segunda Guerra Mundial. Durante esses anos, os homens foram atravessar o oceano para lutar contra os nazis, e as mulheres ficaram, começaram a trabalhar, ganharam o seu próprio dinheiro. A femme fatale nesse período era uma personagem que falava com o medo coletivo da sociedade em relação a essa mudança de paradigma. O que aconteceria se as mulheres saíssem de casa e tivessem seu próprio dinheiro? E, pior ainda, será que elas fizeram sexo com outros homens enquanto seus maridos estavam longe?
Quando saiu o filme Gone Girl, realizado por David Fincher e escrito por Gillian Flynn (que também é autora do livro homónimo), feministas expressaram preocupação com a personagem feminina, manipuladora à ponto de forjar um violação. Afinal, acusações de violência sexual ou doméstica falsas são muito raras, justamente pelo cruel escrutínio sofrido por quem denuncia. Mas Amy Dune é uma personagem fictícia, que sim é complexa, cheia de nuances. O livro e filme, ambos sucesso absoluto de público e crítica, suscitaram debates importantes sobre género.
Mas Amber Heard é uma pessoa de verdade, pode ser boa e má ao mesmo tempo, culpada de alguns atos de violência, vítima de outros. Jamais saberemos o que aconteceu de verdade entre aquelas duas pessoas. Ainda assim, na ânsia de uma narrativa coerente, com papéis bem definidos de algoz e vítima, a internet já definiu quem está certo, quem está errado. Não à toa, a internet a compara justamente com Amy Dune.
A obsessão com o julgamento vai um passo além do interesse recente em narrativas estilo "true crime". Mas, aqui, o arco narrativo dá-se em tempo real, feito pelos internautas, sem distanciamento temporal que permite enxergar a situação com mais clareza. Em alguns perfis que se dedicam à cobertura do caso, as provas apresentadas em julgamento misturam-se com notícias de sites sensacionalistas e opiniões vagas como "todos as pessoas veem que ela morria de inveja do Johnny", etc.
Na verdade, esses memes são só um sintoma, não são necessariamente sobre Johnny Depp ou Amber Heard. A popularidade de celebridades dialoga com o momento cultural em que vivem. Não é sobre o que elas são e sim o que elas representam. No caso, esse julgamento tocou na ansiedade em relação a novas formas de se relacionar afetivamente, mais igualitárias.
Às vezes, algum amigo hétero suspira: "não sei mais como me comportar, o que é apropriado, o que não é, porque agora tudo é abuso". Ora, respeito não é física quântica. Não é possível que seja tão difícil manter um relacionamento com uma mulher, seja sério ou casual, um casamento ou somente um one-night-stand, e ser um homem mais ou menos legal, agir de modo mais ou menos digno, na medida das possibilidades emocionais de cada pessoa. Esse sentimento também encontra eco em mulheres, vide a infame carta que cem mulheres francesas escreveram em resposta ao #MeToo, em janeiro de 2018.
A vilanização de Amber Heard serve como uma catarse para aqueles que achavam que o mundo era mais simples antigamente, quando o pessoal não era político. Antes, uma jovem atriz no início da carreira seria considerada sortuda ao atrair a atenção de um ícone de Hollywood. Afinal, é praticamente um conto de fadas. Hoje, levamos em consideração que tamanha disparidade de poder pode tornar um relacionamento um inferno. O sonho deu lugar para a realidade. O que era considerado romantismo vinte anos atrás virou alerta de perigo – a ressignificação do enredo de muitas comédias românticas é um bom exemplo.
O ano de 2022 ainda nem chegou na metade e essa já é a segunda polémica em escala mundial que foge às proporções devidas. Em março, Will Smith subiu ao palco para dar um estalo em Chris Rock durante a apresentação dos Óscares. Era uma reação à piada infeliz que o comediante acabara de fazer, ridicularizando a cabeça rapada da sua mulher, Jada Pickett-Smith. Embora seja errado recorrer à violência física, a resposta foi desproporcional: Will Smith foi banido de participar da cerimónia do Oscar por 10 anos. O estalo foi considerado por muitos o momento mais vergonhoso da história da premiação – ou seja, pior que a segregação de Hattie McDaniel nos Óscares de 1939 ou a agressão de John Wayne à ativista indígena Sacheen Littlefeather nos Óscares de 1972. Will Smith não teve direito ao arco de redenção que seus colegas brancos tiveram por motivos bem mais graves. Isso mostra que mulheres, negros e demais minorias só são aceites se forem perfeitas.