"The Idol" nunca se propôs a ser um veículo do feminismo, mas o resultado é ainda pior que o esperado
"Eis que depois de quatro episódios repletos de cenas que pareciam ter sido escritas por um adolescente virgem, The Idol consegue se superar. O episódio final prova que sua política sexual não é apenas ingénua, e sim nociva."
Foi recentemente emitido o último episódio de The Idol, série da HBO protagonizada por Sam Levinson e Abel Tesfaye (mais conhecido como The Weeknd). O hype em torno da produção era enorme: uma história sobre uma cantora pop mundialmente famosa criada por um cantor pop mundialmente famoso prometia insights únicos sobre os meandros da indústria da música, o peso emocional que surge com a fama e os bastidores sórdidos de Hollywood. E, nas mãos de Sam Levinson, tinha tudo para ser um hit sexy e instigante nos mesmos moldes de Euphoria. Lily Rose Depp, que interpreta a protagonista Joselyn, é a it-girl do momento, e o elenco de apoio é repleto de atores de peso. O diagnóstico final, no entanto, foi devastador. O The Guardian simplesmente decretou: The Idol é um dos piores programas já feitos e deveria ser punido no Tribunal de Haia. Os demais veículos não escreveram nada muito mais animador que isso.
Agora, convenhamos: não estaríamos todos aqui a comentar sobre uma minissérie de cinco episódios se esta fosse apenas ruim, dramaturgicamente falhada. É muito pior que isso. Em março, a revista Rolling Stone publicou uma reportagem contando os percalços no set de filmagem, que incluem um ambiente tóxico para a equipa, a recriação de grande parte das cenas, o que resultou num desperdício de 55 a 75 milhões de dólares, e a substituição da realizadora Amy Seimetz por Sam Levinson – segundo a Rolling Stone, Abel Tesfaye teria achado que a série estava muito calcada na perspetiva feminina. O último episódio deixou claro o que o artista realmente quis dizer: The Idol vende uma ideologia masculinista não muito diferente daquela perpetuada por Incels nos fóruns do Reddit e 4Chan, adeptos da filosofia "Red Pill" e criminosos como Andrew Tate (que atualmente cumpre pena por violação e tráfico humano na Roménia).
O primeiro episódio já havia indicado bastante nostalgia de uma época pré-#MeToo. Logo na cena inicial, o coordenador das cenas de intimidade – cargo que nos últimos anos se tornou comum no set de filmagem justo para evitar situações sexualmente desconfortáveis – é trancado no armário, impedido de fazer o seu trabalho. "Stop trying to cockblock America!", diz Nikki Katz (Jane Adams), executiva da gravadora. Ao que parece, é esse grito que estava emperrado na garganta dos produtores da série. E, mais adiante, Jocelyn e sua assistente / melhor amiga Leia (Rachel Sennott) assistem a Instinto Selvagem, thriller erótico clássico estrelado por Sharon Stone e Michael Douglas e realizado por Paul Verhoeven em 1992. "Tedros é meio rapey", comenta Leia sobre o suposto vilão interpretado por Tesfaye/The Weeknd. "Eu sei. É o que eu gosto nele", responde Jocelyn.
É evidente o fascínio de The Idol pelos thrillers eróticos que foram fenómeno durante os anos 80 e 90 - o vestido branco de gola alta usado por Jocelyn na última cena é outra alusão à cena mais emblemática de Instinto Selvagem. Esse tipo de filme surgiu durante um momento de retrocesso na política sexual. Nos anos 70, o amor livre reinava, e a indústria pornográfica estava no seu ápice, antes dos filmes porno em fita cassete e muito antes da internet (espírito muito bem captado no ótimo Boogie Nights, filme de 1997 feito por Paul Thomas Anderson). Porém, a década seguinte veio não somente com o advento do vírus da SIDA/HIV como também com o conservadorismo de Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra. A partir daí, o sexo passou a ser retratado na tela de forma perigosa, quase como um sinal de alerta que algo terrível pode acontecer caso sigamos o nosso desejo.

Agora, The Idol surge em outro momento cultural, depois de uma série de denúncias de mulheres que foram violadas ou abusadas dentro e fora dos sets de filmagem. Além disso, a geração Z é mais púdica, a ponto de quase parecer nostálgica por outra era de regressão sexual, a era do Código Hays (conjunto de normas morais que vigorou em Hollywood entre 1930 e 1968 – mas que não se preocupava, em absoluto, com os direitos das mulheres e minorias em geral). Levinson e Tesfaye prometeram ao mundo sexo gráfico sem tabus nem restrições. No entanto, o que assistimos não era nem subversivo nem mesmo erótico, somente constrangedor.
Não deixa de ser irónico que The Idol condene o coordenador de cenas de intimidade ao mesmo tempo que faz uma homenagem aos thrillers eróticos. Michael Douglas, que estrelou três dos filmes mais emblemáticos do género, declarou este ano em Cannes que o segredo para uma boa cena de sexo é justo a coordenação prévia com a atriz. Não faz sentido o temer que o coordenador de intimidade torne as cenas de sexo menos espontâneas. Ora, nunca foi espontâneo, sempre foi encenação, mentirinha. O presença desse profissional ajuda o realizador a encontrar o melhor ângulo para posicionar a câmera. O resultado são cenas mais carregadas sexualmente, e não menos. Afinal, se os atores estão mais confortáveis, tudo flui de modo mais genuíno, e consequentemente, sexy.
Eis que depois de quatro episódios repletos de cenas que pareciam ter sido escritas por um adolescente virgem, The Idol consegue se superar. O episódio final prova que sua política sexual não é apenas ingénua, e sim nociva.
[Spoilers a partir deste parágrafo!]

Até então, The Idol era só um produto audiovisual meio bobo com excesso de hype e roteiro, e atuações majoritariamente tenebrosas - a exceção fica com a genial Rachel Sennott. O BDSM sem química encenado por Abel Tesfaye e Lily-Rose Depp não é muito diferente de As Cinquenta Sombras de Grey (para um filme realmente interessante e romântico sobre BDSM, a dica é A Secretária de 2002).
A chave da misoginia vem com o plot-twist: Jocelyn descobre que Tedros mentiu para ela, não é quem diz ser, e que arranjou tudo para conhecê-la para então tomar conta da sua carreira. Isso significa que todas as relações sexuais não foram exatamente consensuais, uma vez que ela pensava que estava fazendo sexo com uma pessoa, mas estava com outra. Jocelyn então decide transar com Rob, seu ex-namorado, durante uma festa em casa. Tedros, por sua vez, vinga-se ao manipular uma sequência de fotografias em que Rob posa com uma "fã", para então acusá-lo falsamente de violação sexual. Rob imediatamente tem a sua carreira destruída.
Na vida real, não somente são raríssimas as acusações falsas de violação (enquanto a regra é a subnotificação de crimes sexuais), como é preciso de muitas provas, muitas testemunhas, para que um homem seja condenado – legalmente ou perante a opinião pública. Roman Polanski confessou a violação uma rapariga de treze anos e ainda assim continuou ganhando os maiores prémios da indústria cinematográfica. Os criminosos continuam suas carreiras de forma impune mesmo depois do #MeToo – Louis C.K recentemente tem feito uma tourné muito bem-sucedida cinco anos após admitir que condutas sexualmente impróprias com suas funcionárias. A lista de casos semelhantes é longa, muito longa.
Jocelyn parece enfim se livrar de Tedros – Chaim, seu gerente, chega mesmo a expôr para a imprensa que aquele homem já havia sido preso por tráfico humano (permanece um mistério porque a Vanity Fair iria abrir mão do perfil de uma das maiores estrelas do mundo para escrever sobre o dono de uma discoteca desconhecida). No entanto, nos cinco minutos finais, ficamos sabendo que a grande manipuladora da história é Jocelyn, não Tedros. O abuso físico e emocional feito pela mãe da artista era simplesmente uma história inventada – ou, pelo menos, aumentada. Todos nós sabemos como as mulheres são malvadas, meio doidinhas, com o hábito de mentir sobre relacionamentos abusivos, não é mesmo?! A função de Tedros era servir como inspiração para uma nova etapa da carreira da pop-star – incluindo os abusos que assistimos durante esses cinco episódios.

Para Sam Levinson e The Weeknd, mulheres são manipuladoras, são elas quem realmente detêm o poder, e os homens são vítimas, mesmo que sejam comprovadamente criminosos, mas, ainda assim, vítimas (Levinson literalmente usou essa palavra para se referir a Tedros). É difícil pensar que qualquer semelhança com o mais torpe conteúdo "red pill" na internet seja mera coincidência.
* A jornalista escreve em Português do Brasil.

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