Histórias de Amor Moderno

"Eu era uma mulher inexperiente, a quem nunca ensinaram como acabar um relacionamento."

“Era uma mulher inexperiente a quem explicaram um pouco de tudo acerca das relações, mas a quem nunca ensinaram como acabar um relacionamento.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Redeeming Love @ IMDB
07 de outubro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Nunca liguei muito a rapazes. Na escola, digo. Não que eu não gostasse de rapazes, ou que não sentisse aquele gostinho particular, aquele calor suave na barriga, quando me sentia alvo da atenção de algum. Também nunca fui muito de ser o centro das atenções, verdade seja dita, mas às vezes acontecia algum dos miúdos dedicar-me uma gentileza extra, ou, não raramente, demonstrar-me o afeto imaginário e platónico que por mim sentia beliscando-me os braços, puxando-me os cabelos e deitando-me a língua de fora. 

Eu era uma miúda normal e não dava demasiada importância aos namoros e às atrações. Não me enturmava com entusiasmo entre as minhas amigas, que deliravam por uns enquanto outras suspiravam por outros, e não comentava as sensações delas. Para mim, aquilo não tinha assunto. Dar beijinhos não me parecia ser uma coisa assim tão extraordinária. Preferia comer gelados, por exemplo. Ou fazer tranças. E muitas outras coisas, conseguiria facilmente elaborar uma lista, mas uma lista extensa, de atividades que preferia aos tais beijinhos de namoro. Havia tanta coisa que me parecia muito mais interessante no mundo do que andar de mãos dadas pelos corredores da escola e sentar-me nos intervalos ao lado de alguém sem jeito, só a deixar que o tempo passasse, fingindo que ali estávamos a namorar.

A minha irmã Elisa, que é mais velha, começou a ficar intrigada com esta minha atitude - distante quanto aos rapazes, displicente quanto às minhas maneiras, às minhas roupas, ao meu aspeto. É possível que exista uma relação mais ou menos direta entre aquilo que pretendemos dos rapazes e a maneira como nos apresentamos e comportamos em público. Não sei se essa razão se rege ou não por parâmetros corretos. Na minha cabeça, naquele tempo do fim da puberdade, o que fazia sentido para mim era não estar sozinha, ter amigas, ter com quem falar. E gostava muito de estudar, de ler, de aprender coisas novas. Mas a minha irmã Elisa mostrava-se preocupada com a minha maneira de estar. Certo dia, veio falar comigo. Perguntou-me "Célia, tu gostas de rapazes?", e eu encolhi os ombros. "Gostas ou não?" Disse-lhe que sim, que achava que sim. Só que ainda não se tinha dado o caso de gostar de um, especificamente, de um em concreto, daquele, ou daqueloutro, ou de outro ainda. 

Para mim, nessa época, os rapazes eram todos parte de uma nuvem de seres humanos de voz indecisa, nem grossa nem fina, oscilante, ondulante e hesitante, com uns pelinhos sombrios a começar a despontar-lhes por baixo do nariz e borbulhas na testa, no rosto e no pescoço. O que é que há ao certo para gostar em pessoas assim? "Então e o Robbie Williams, por exemplo? Ou o Beckham? Assim  um desses famosos." No início dos anos dois mil, estas eram propostas sérias de sex symbol. "Prefiro o Ewan McGregor." Ela suspirou, olhou para cima, sabe-se lá para onde, como se agradecesse, e depois riu-se, aliviada, expirando o ar todo dos pulmões. "É uma boa escolha, é uma boa escolha", e acariciou-me o rosto com carinho e gosto. Abraçámo-nos, mas na altura não percebi ao certo o alcance e a profundidade daquela reação.

Nessa altura, começámos a falar mais sobre intimidade. Explicou-me certas coisas, "já estás a deixar de ser menina e a começar a ser mulher", dizia-me, "convém que saibas o que esperar do mundo lá fora, e principalmente dos rapazes". A Elisa ensinava-me coisas importantes, como o significado das aproximações dos rapazes e das frases que me dizia, bem como , digamos, ao meu alcance, e ainda a ciência aparentemente fundamental de me fazer acompanhar equilibradamente de amigas que, sendo atraentes e tendo estilo, não tivessem aparências mais vistosas do que a minha. Nunca pus em prática, pelo menos deliberadamente, nenhum dos seus ensinamentos, mas tomei as notas e guardei-as.

Não me foram completamente inúteis essas pequenas dicas adolescentes. Quando, no ano letivo seguinte, o Bruno se aproximou de mim das primeiras vezes, os sinais batiam certo com aquilo que a Elisa tinha descrito como "provas irrefutáveis de interesse". Nem sequer se tratavam de "sinais consistentes", muito menos de "indícios dúbios": eram provas irrefutáveis. Vinha ter comigo nos intervalos, partilhava bolos, oferecia-me doces (percebeu que eu gostava de gelados, então persistia nesse tipo de oferta), perguntava-se se ia assistir ao que quer que estivesse agendado para essa semana de escola. E eu, às vezes, aceitava, nem que fosse para ver até onde tudo aquilo ia chegar.

Não demorou mais que três semanas até que o Bruno me tivesse pegado timidamente na mão e eu, mais timidamente, não o tivesse recusado. Perguntou-me "queres andar comigo?", e eu disse-lhe "ok, pode ser", e assim nos tornámos oficialmente namorados. Andávamos no 8.º ano, não éramos o único casalinho da escola. Havia gente que já andava de mãos dadas desde o primeiro período, por exemplo, além de dois ou três casais daqueles que têm a sorte de encontrar o amor para a vida logo aos 12 anos, que andavam juntos já desde o ano letivo anterior. Se, por acaso, eu tinha algum furo no horário, algum professor que faltasse, qualquer oportunidade ou janela temporal, avisava o Bruno e ele lá ficava comigo, faltando a mais uma ou até duas aulas. Desconfio que lhe arranjei problemas, porque alguém haveria de ter de lhe justificar aquelas faltas. Como recompensa, deixava-o dar-me beijos com a língua e apalpar-me com algum arrojo, mas só por cima da roupa. Chegou a enfiar-me a mão por dentro da camisola, onde descobriu os meus dois projetos de maminhas, e ficou definitivamente entusiasmado com a descoberta, dava para notar. Mas foi o mais longe que chegaram as nossas brincadeiras mais indecentes num tempo de inocência. Dois meses depois daquele começo demorado e tímido, deixámos de passear de mãos dadas e de dar beijinhos. Não sei bem porquê. Nunca falámos sobre isso. Acredito que tenha sido o fim do amor, simplesmente. Ou, se calhar, o amor nunca existiu entre nós, éramos só pessoas muito iludidas no começo da adolescência.

Esse namorico não me deixou marcas. Ou, pelo menos, foi isso que eu pensei. Depois do Bruno, não tive namorados nem encantos até ter conhecido na Secundária, já com 16 anos, o Tomás. O Tomás foi da minha turma no 11.º ano e começou a integrar os meus grupos, fossem eles de estudo ou de amigos. A minha irmã Elisa, sempre atenta, topou-o rapidamente. "Ele quer-te, Célia." Ele querer-te, quando tens 16 anos, já não significa que só te queira dar a mão ou tocar na tua língua com a dele. Ele, um ano mais velho, se me queria, queria muito mais que isso. "Aproveita", disse-me a Elisa, "até é giro". E é mesmo. Ainda hoje.

Segui, desta vez, o conselho da minha irmã e deixei-me ir. Ela só me disse "mas atenção, não estejas sempre a mudar de namorado, isso dá mau aspeto". Eu disse-lhe "ok, está bem". Foi tudo razoavelmente rápido até concretizarmos os desejos mais ardentes de adolescentes cheios de hormonas - eu própria não era imune aos incêndios que se atearam cá dentro quando nos aproximávamos demais. E gostava muito do que fazíamos, sempre que nos era possível fazê-lo, já que nem sempre dava para tanto. Era divertido. Contudo, o que eu sentia não correspondia àquelas descrições que a minha irmã fazia da paixão, do amor, do apego, do cuidado, da saudade. Eu sentia desejo, isso sim. Mas acredito que sentiria o mesmo desejo por qualquer outro rapaz que me desafiasse e que não fosse feio.

E apesar disso a relação continuou. O Tomás tratava-me bem, era gentil, gostava dos meus pais e os meus pais gostavam dele. Também a sua família me agradava e cuidava de mim. As coisas foram ficando sérias. Fomos para a universidade, cada um seguindo o seu caminho, mas nunca nos separámos. Tive muitas dúvidas e hesitei muitas vezes. Não fui uma santa. E ele sabe. Contei-lhe uma infidelidade. Mas não confessei tudo. Nem contei das outras. Também não fui uma devassa, mas era uma jovem mulher sem experiência do mundo, que estava agarrada a uma pessoa, comprometida. E, acima de tudo, era uma mulher inexperiente a quem explicaram um pouco de tudo acerca das relações, mas a quem nunca ensinaram como acabar um relacionamento. E então fui ficando. Eu, os meus fantasmas, as minhas culpas e alguns pesadelos. E o tempo foi passando.

Hoje, tenho 35 anos e o Tomás 36. Vivemos juntos, embora nunca tenhamos chegado a casar. "Isso é só uma formalidade", diz-me ele. Só que não é. Se eu tivesse de me casar com ele não sei o que aconteceria. O Tomás acha que somos felizes, mas isto que temos é só um labirinto que eu não consigo decifrar, uma história a que eu não consigo pôr fim. E o tema dos filhos tornou-se cada vez mais frequente, e toda eu sou susto e instinto de sobrevivência de cada vez que se fala no assunto. Se ao menos a Elisa me tivesse explicado, ponto por ponto, o que custa e o que implica acabar uma relação de quase 20 anos - ou mesmo de 10, ou mesmo de 5. Sinto que o nosso namoro devia ter acabado logo a seguir a ter-se extinguido o fogo adolescente. Mas não, continuámos em frente. Como se fosse um castigo.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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