Jean-Paul Gaultier, o designer que antecipou o futuro da moda
Fala com um entusiasmo transbordante sobre a moda, o espetáculo e sobre a sua carreira de meio século, que pulverizou os limites de género na indumentária ocidental. Jean-Paul Gaultier falou com a Máxima a propósito da estreia no nosso país do musical que conta a sua vida, Fashion Freak Show, mas a conversa foi muito além disso.
Em outubro de 1988, no primeiro número da Máxima, os destaques internacionais da Moda outono/inverno iam para Claude Montana, Comme des Garçons e Jean-Paul Gaultier. Nascido em Arcueil, França, a 24 de abril de 1954, Gaultier era então o enfant terrible da moda francesa, o rapaz vindo da classe operária que estilhaçou os preconceitos bon chic, bon genre da haute couture parisiense com uma inspiração claramente punk, como o próprio admite, vinda do outro lado do Canal da Mancha. Com a mesma clareza e irreverência, assumiu a homossexualidade e brincou com as identidades de género muito antes de o tema entrar nas agendas políticas e sociais.
Para a historiadora de moda Valerie Steele, que dedicou um livro à história do espartilho, Gaultier alterou completamente o significado e a perceção social dessa peça, transformando um "instrumento de opressão do sexo feminino, causador de vários problemas a saúde", num sinal de "libertação e símbolo sexual", como demonstrou Madonna durante a turné Blonde Ambition Tour (1990), quando usou em cena lingerie concebida pelo criador francês.
A revolução protagonizada por Jean-Paul Gaultier (JPG) chegou também à indumentária masculina, quando criou a saia para homens em 1983. Aos que não tardaram a apontar-lhe o dedo reprovador, Gaultier lembrou que a saia era uma constante na moda masculina ao longo dos séculos e demonstrou-o com os kilts escoceses, com os trajes dos samurais japoneses e mesmo com os longos aventais usados pelos empregados dos bistrots parisienses desde o princípio do século XX.
Em 2020, ao completar meio século de uma carreira muito bem-sucedida quer na moda, quer na perfumaria, JPG deixou os desfiles, as semanas da moda, as coleções, e passou a direção criativa das suas colecções de alta-costura a uma série de criadores convidados, como Olivier Rousteing ou Haider Ackermann. Com a irreverência, calor e liberdade de sempre falou com a Máxima, via Zoom, a propósito da estreia em Portugal do musical inspirado na sua vida e na sua conceção de moda, o Fashion Freak Show (Lisboa, Campo Pequeno, 16 a 19 de novembro), mas a conversa rapidamente foi mais longe do que o pretexto.


O que é que vamos ver no espetáculo Fashion Freak Show?
Espero que os espectadores portugueses possam ter uma experiência muito positiva e muito alegre. São só coisas boas: é moda, é freak e é show. Trata-se de um musical pensado à maneira da tradição europeia do cabaré, que teve a sua estreia, em Paris, na mítica sala das Folies Bergère, e esteve em cena durante oito meses. É sobre Moda e sobre beleza, mas também conta um pouco da minha história de vida. Como não tenho talento para a escrita, decidi fazê-lo de forma muito visual, contando coisas que vivi e experimentei ao longo da minha existência. Começa na década de 50, quando nasci, e vai até aos dias de hoje. A história é contada por vários narradores que recorrem a várias linguagens: música, coreografia, dança, diálogos, vídeo e, claro, muita moda.
Este espetáculo é um sonho seu que concretiza?

Podemos dizer que é um sonho realizado, sim. É verdade que trabalhar em moda era a minha máxima aspiração desde criança, mas tive sempre uma conceção muito cenográfica desse trabalho. Sonhava com algo cheio de luzes, de manequins, com muito espetáculo. Para mim, a moda tem algo de teatral, que está acima das classes sociais e que faz sonhar da mesma maneira ricos e pobres.
Foi essa concepção teatral da Moda que o levou a escolher o Théâtre du Châtelet, em Paris, para apresentar a sua última coleção em nome próprio?
É verdade. O Châtelet tem um significado muito grande para mim porque foi lá que vi a minha primeira peça de teatro, ao lado da minha avó. Ainda me lembro desse espetáculo, La Rose de Noël, com André Dassary, um extraordinário cantor de opereta basco de que já ninguém se lembra. Foi por causa dessa memória tão feliz que decidi realizar ali o meu último desfile, que também foi um momento muito feliz.


Depois de uma carreira de meio século na moda, o que o inspira hoje?
Quase tudo, mas talvez me sinta mais próximo das grandes questões humanas do que quando era mais jovem. Falo, por exemplo, do modo como os problemas ambientais estão a tomar uma importância vital para a sociedade e a moda, ao contrário do que muitos ainda pensam, acompanha essa preocupação. Não é uma futilidade. É uma forma de expressão muito direta e que permite desencadear reações muito fortes. Isso é fascinante e ainda é mais se pensarmos que, em breve, estaremos a viver a revolução da moda ecorresponsável.
Entre os seus muitos legados para a História da Moda contemporânea está o desenvolvimento do street style na haute couture antes sequer de o conceito ter sido inventado. Como se deu esse clique?
Fi-lo de uma forma muito instintiva, talvez porque, nessa época, viajava muito para Londres, onde podia observar a dinâmica e a vibração das tribos urbanas. Eu era completamente fascinado pela excentricidade britânica dessa época. A ligação da roupa com a música pop/rock era empolgante nos anos 70, mas também nos anos 80 e parte dos 90. Foi uma época em que eu tinha a minha base de trabalho em Paris, mas a minha inspiração era sobretudo o ambiente que se vivia em Londres. Hoje penso que as coisas se tornaram menos interessantes, menos originais, mesmo em Londres.

As pessoas arriscam menos?
Eu diria que sim. E é pena.

Os seus desfiles e as campanhas transmitem sempre uma imagem de alegria e diversão. A moda foi também um grande divertimento para si?

Absolutamente. Às vezes até penso que a moda não é exatamente a minha profissão porque me divirto imenso com ela. É o meu sonho, sempre foi, não é necessariamente a minha obrigação. Senti sempre que tinha um jogo infantil à minha disposição, o que não quer dizer que não tenha levado muito a sério os meus clientes e parceiros de trabalho. O prazer não invalida o rigor.
Também desenvolveu uma moda muito inclusiva e brincou com os conceitos de género muito antes de estes temas entrarem nas agendas políticas e sociais…
Tive a sorte de ter uma família de mente muito aberta. Lembro-me de, em pequeno, estarmos em família a ver um filme, Adivinha Quem Vem Jantar, em que o liberalismo de um casal que se considerava de esquerda (Katherine Hepburn e Spencer Tracy) era posto à prova quando a filha lhes apresentava o noivo e este era negro (Sidney Poitier). Lembro-me do filme e da discussão que ele gerou na minha família, que era de classe operária, mas tinha ideias muito modernas de justiça social e racial. Isso abriu-me muitas portas. Em casa, ninguém me disse que isto ou aquilo seria certo ou errado e hoje percebo que esse legado é muito valioso. Tal como ninguém franziu o sobrolho quando eu disse que ia trabalhar em moda. O mesmo não aconteceu na escola, onde fui rejeitado por ser um miúdo que sonhava acordado. Uma vez fui humilhado e castigado pela professora porque desenhei algo que se parecia com um cenário das Folies Bergère, que tinha visto na televisão uns dias antes. Na verdade, a minha avó deixava-me ver tudo o que dava na televisão.


Nunca teve a tentação de fazer moda bon chic, bon genre ou seja para um determinado estrato social?
Quando comecei a trabalhar com Pierre Cardin sempre me senti muito livre, apesar de ser um nome cheio de prestígio. Posso dizer que senti mais restrições quando trabalhei na maison Jean Patou, onde se estava muito preso aos bestsellers da marca. Desde muito cedo gostei de jogar com os conceitos de feminino e masculino e com a enorme tolice que são os limites que se colocam aos dois. Lembro-me de pôr na moda feminina um bolso interior, que era algo considerado muito masculino, e de isso ter sido apreciado pelas minhas clientes, que realmente sentiam a falta desse elemento. A música pop, antes de qualquer forma de expressão, brincou com esses limites, através de estrelas como David Bowie (sobretudo através da personagem de Ziggy Stardust), mas também de Mick Jagger, na maneira como se veste ou como se move. Decidi fazer moda para homem e não coleções para homem, o que é diferente. Já não implicava a obrigatoriedade de fazer esta ou aquela peça, como um fato completo. Estas pequenas revoluções são importantes, embora a mais importante de todas tenha sido a invenção dos jeans. Quem o fez era um génio, não tenho dúvidas.
A roupa assinada por si caía muito bem às top models mas também a pessoas com medidas consideradas menos "perfeitas". Tinha a aspiração de conceber uma moda para todos?
Reconheço que havia um limite na minha roupa, que era o preço, porque as peças que eu assinava não eram económicas, mas, sim, quis fazer moda para todos os corpos, qualquer que fosse o seu formato, género ou tamanho.

Numa das suas últimas coleções, usou o upcycling como manifesto contra o consumo excessivo e descartável na indústria da moda. São questões que o inquietam?
São questões que já se colocavam quando eu comecei a trabalhar na profissão, embora talvez de uma forma menos mediática e urgente. Mas recordo que pertenço a uma geração que comprava muitas peças nas chamadas "feiras da ladra" e que, depois, as transformava, cortando ou misturando com outros materiais. Fazia isso inclusivamente com jeans e calças de trabalho. Guardar e restaurar é indispensável. Ainda mais agora, com tudo o que sabemos e que não sabíamos nessa altura. Nunca gostei da ideia de que aquilo de que gostamos hoje já não se pode usar no ano seguinte porque está fora de moda. Quando penso que algumas marcas queimam as peças para não romperem com o sistema, fico cheio de raiva. Parece-me uma loucura malsã.
Deixou a alta-costura no princípio de 2020, quando fez 50 anos de carreira. Não sente saudades?
Não sinto saudades porque vivi tudo muito intensamente. Desde muito jovem, o essencial, para mim, na vida como no trabalho, foi sempre sentir-me livre. Não fiz um curso formal de moda numa escola, mas ouvi, li, vi muita coisa, sempre em liberdade, e esse continua a ser um dos meus motes na vida. O outro é a paixão. Se pusermos paixão naquilo que fazemos, tudo é possível.

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