Uma vindima e um bebé. Os desafios de uma enóloga e mãe
Paula Bragança tem 33 anos e é enóloga e proprietária — ao lado de João Nuno Ataíde e da sua família — do Monte da Raposinha, projeto alentejano de vinhos e enoturismo em Montargil. No final de 2020, nasceu José Tomás, e nós sentámo-nos com Paula para saber como foi fazer uma vindima, na vinha e na adega, com um bebé de sete meses literalmente às costas…

Paula chegou ao restaurante The Old House, o local do nosso encontro, apenas alguns minutos depois da hora combinada e a desculpar-se pelo atraso. Teve de esperar que a mãe — médica e nesse dia atolada em consultas — chegasse a casa para ficar com o seu filho, ainda com 15 meses à data desta conversa. O Zé Tomás, como é apelidado carinhosamente pela família, nasceu no dia 31 de dezembro de 2020, porque a enóloga, e o marido João Nuno Ataíde, tinham planeado tudo para que não nascesse durante uma vindima.
Afinal de contas, esta fase do ano é a mais importante, e também a mais caótica, para os enólogos e produtores de vinho, e o jovem casal, responsável pelo seu próprio projeto, assume quase todas as funções que este negócio implica: além da produção em si, também gerem, comercializam, comunicam… como não poderia deixar de ser nesta geração de trabalhadores-faz-tudo. "Não trabalhamos para terceiros, este é o nosso negócio, a nossa empresa, e a vinha e o vinho não fazem pausas nem esperam por nós. Nesta área não dá para desligar e focar apenas no nosso bebé, nem sequer deixá-lo numa creche, porque os horários são tudo menos regulares", introduz Paula. O ideal, seria ter um filho numa altura mais calma. E assim foi.


Durante a vindima de 2021, o Zé Tomás tinha sete e oito meses. Já não era tão dependente, comia alguns alimentos sólidos. "Sinceramente, não sei se isso foi melhor ou pior, porque ele ainda mamava mas já tinha começado a introdução alimentar, o que fazia com que a gestão do dia fosse um pouco mais caótica. Tinha de me lembrar de executar todos as tarefas do meu trabalho e, ao mesmo tempo, lembrar-me que a criança tinha, em pontos diferentes do dia, de mamar, comer a ‘sopinha’ e o prato de sólidos.
E aqui não se pode falhar…". Quando falamos de vindima, isso significa, muitas vezes, noites e dias a fazer procedimentos enológicos na adega, uvas a entrar a qualquer momento fortuito, visitas à vinha diárias para controlar a maturação das uvas e decidir o momento idealíssimo de colheita (mais umas horas e pode ser "fatal" para o equilíbrio entre os compostos da uva, como acidez, açúcar, etc), tendo em conta que cada casta tem um tempo diferente e muito próprio, e uma pode estar bem mais atrasada do que outra.


A calma antes da tempestadeE foi ao pensar em tudo isto que Paula Bragança teve, em junho de 2021 — apenas dois meses antes do rebuliço e numa altura em que a expressão "calma antes da tempestade" assenta que nem uma luva — uma espécie de mini break down. Durante os seis meses que tinham passado, tinha estado com um pé na adega e outro nas tarefas afetas ao filho, e via a vindima aproximar-se. "Como é que eu vou fazer isto? Não vou conseguir gerir tudo", pensou, "tenho o Zé Tomás totalmente dependente de mim, sem ninguém que possa ficar com ele, a creche é longe e a vindima não tem horários. Vai correr mal."
A enóloga sentia que, entre noites não dormidas, enorme cansaço e um trabalho muito exigente física e psicologicamente, não ia conseguir fazer nem uma coisa bem nem outra, "sobretudo dar a atenção ao Zé Tomás de que ele precisava", confessa. Entretanto, foi João Nuno que quebrou a cadeia de pensamentos negativos. "Calma, eu também estou aqui, revezamo-nos quando for preciso, e não é a nossa primeira vindima, já fazemos muita coisa quase em piloto automático", assegurou, nesse momento. Formado em Direito mas sem nunca ter exercido, João Nuno é responsável pela parte comercial e de gestão do Monte da Raposinha mas, na verdade, já aprendeu alguma enologia, sobretudo nas muitas vezes que teve, literalmente, que "meter as mãos nas massas" (as massas, no vinho, é o que se chama ao resultado das uvas esmagadas, com as películas, as grainhas e por vezes o engaço, que é a parte lenhosa).


Trabalho de equipa, em famíliaO Zé Tomás nunca fez grandes sestas. "Tu pensavas que, quando ele adormecesse, ias conseguir adiantar certas coisas, até trabalho de computador, por exemplo. Mas nada disso, ele acordava pouco tempo depois. Chegávamos a ter o intercomunicador em cima de uma cuba ou de uma barrica, à espera que ele chamasse", conta Paula.
Mas não era por a criança estar acordada que não se trabalhava, a forma é que era diferente e, provavelmente, no futuro a enóloga e João Nuno vão lembrar esses momentos com carinho: acompanhava os pais na adega ou na vinha, no marsúpio ou no carrinho entre mangueiras, cubas e barricas, por vezes ao colo enquanto selecionavam uvas na mesa de escolha. "Mas havia dias em que o meu verdadeiro momento de trabalho e foco começava, por exemplo, às oito da noite, quando tudo acalmava e o João Nuno o deitava. Estava muitas vezes no silêncio, tranquila, a fazer trasfegas (o ato de transferir o vinho de uma cuba para outra, para o separar do depósito criado naturalmente ou das borras) ou a inserir dados no computador e deste para o papel, e a organizar o dia seguinte. Era também o momento de parar, olhar para a adega e pensar: ‘Ok, isto e aquilo está feito, amanhã ainda é preciso fazer x e y’. Deixar também tudo escrito, até com desenhos, para se eu no dia seguinte não pudesse fazer, alguém fazer por mim".


O processo de vinificação é tão sensível que requer constante e rápida atenção, e por isso o casal dormia numa pequena casa junto à adega, já que a casa principal do Monte da Raposinha é alugada a visitantes como parte do enoturismo do projeto. Isso também facilitava o exercício Zé Tomás-adega-Zé Tomás. "Era ir pôr a sopa com o peixinho ou o franguinho a fazer, ativar o alarme para não a deixar esturrar e ir adiantar alguma coisa à adega durante esse tempo".
Quando a noite já ia avançada, depois de fazerem os últimos trabalhos, Paula e João Nuno apenas comiam algo simples, tomavam banho e, como a enóloga diz, "atiravam-se" para a cama. Mas houve alturas mais complicadas. "O Zé Tomás acordava só de nos ouvir respirar. Para evitarmos acordá-lo, e ele a nós, tivemos dias em que nem nos deitávamos na nossa cama e dormíamos no sofá à entrada, e ele no seu quarto, para estarmos mais longe. Foi um mês e meio a dormir ‘às prestações’". "É possível fazer uma vindima assim?", perguntámos. A resposta de Paula foi simples e assertiva: "Claro que sim, está feita, não está? E o vinho foi engarrafado. Mas não vale a pena forçar fazer ao nosso ritmo, porque esta fase do bebé é tão aleatória nas horas de comer ou de dormir, que temos de abraçar essa aleatoriedade e não stressar por isso. Quando é preciso vais, e quando podes trabalhar, trabalhas. E as coisas também se fazem desta forma".


Uma lição de vidaA velocidade da vida e a pressão profissional fazem-nos sentir que estamos constantemente em falta, ou que temos de chegar a todo lado e de forma perfeita. Isto acentua-se ainda mais com a maternidade, que para Paula foi uma autêntica lição. "É cada vez mais importante percebermos que não vamos poder estar sempre lá. É importante sabermos, e sobretudo aceitarmos, que podemos delegar. Aceitar também que se te esqueceste de fazer uma coisa, paciência, está esquecido, o mundo não vai desmoronar por causa disso. Se o resultado não é igual, fica diferente ou parecido, mas não fica obrigatoriamente pior. E se ficar pior, também não faz mal. Sempre me habituei a ter tudo muito organizado, com tudo escrito, ordenado e planeado. De repente, aparece um elemento desorganizador, um ser que vem trazer imprevisibilidade à tua vida e coisas que não consegues controlar. Nesse aspeto, ser mãe é mesmo uma lição para a vida".


Algo de que muitas mães recentes se queixam, é de que as pessoas têm muitas opiniões sobre o que é suposto ou não fazer com os bebés, e impõem essas opiniões a quem já está, como é natural, num momento vulnerável e desafiante. Paula Bragança, por sua vez, não acredita em fórmulas. "Se calhar também não fiz, nas alturas mais caóticas, tudo o que queria fazer com o meu filho, mas está tudo bem, ele está ótimo, lindo, saudável e feliz na mesma. Talvez houvesse dias em que não querias nem por nada que o teu filho comesse ‘fruta do pacote’, mas se nesses dias é mais fácil para ti e resolve um problema, o teu bebé também ficará bem porque tu ficaste bem, sem qualquer dúvida. Não é por esse tipo de coisas que és má mãe. Nem és má mãe por alguém ficar a tomar conta dele e tu ires descansar.

Pelo contrário. Se descansares, consegues tratar melhor dele, e a saturação só faz mal aos dois. Não pedir ajuda é, provavelmente, o erro número um de praticamente todas as mães, sobretudo no primeiro filho. Não é vergonha nenhuma, e quem está a ajudar está a fazê-lo com todo o gosto e sem julgamentos. Esta é das poucas coisas que eu, se pudesse voltar atrás, faria diferente, perderia o orgulho e deixava que, por exemplo, a minha mãe tomasse conta do Zé Tomás ou fizesse alguma coisa por mim", desabafa. Não é que achasse que as outras pessoas não faziam tão bem como ela, mas sentia-se culpada por se sentar e alguém estar a tratar do seu bebé por si. "Mas há uma coisa que todas as mães deviam saber", conclui, "a mãe perfeita não é um conceito absoluto, é a melhor mãe que tu consegues ser…".
