“A primeira vez que o Eduardo me fez sentir sozinha foi antes de uma consulta”
“O Eduardo tinha-me dito que tudo tinha sido um erro e que o melhor era separarmo-nos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Eu não sei se vocês sabem o que é estar sozinha. Mas completamente sozinha. Sozinha ao ponto de passar duas, três, quatro horas por dia fora de casa com temperaturas de 15 e 20 graus negativos, entre bibliotecas, cafés, livrarias e supermercados, pontualmente um banco de jardim - onde não consegues estar sentada mais de dez minutos, senão o teu nariz congela - que escolhes para te sentares e telefonar a uma amiga. Muitas vezes, nem sabes que horas são para essa amiga quando lhe ligas, porque estás num fuso horário com oito horas de diferença e não estás capaz de fazer contas de cabeça - serão oito horas mais tarde, oito horas mais cedo? Se for mais cedo, quantas horas serão lá? E se for mais tarde? A Terra gira em que sentido? O que é que eu estou aqui a fazer? "Tenho saudades de Portugal." "Preciso de voltar urgentemente." Todos os pensamentos se atropelam e só consegues dizer "então, amiga? Como é que tu estás?" E depois choras um bocadinho, mas tentas que pareça comoção por lhe ouvires a voz e o sotaque, de maneira a que ela não perceba que estás de rastos, um farrapo de pessoa, um resquício daquela que ela conheceu. E que estás sozinha.
A primeira vez que o Eduardo me fez sentir sozinha foi antes de uma consulta. Não era uma consulta fácil. Ir ao ginecologista não é propriamente uma atividade prazerosa, mas com o passar do tempo, com o amadurecimento e com o conhecimento crescente do médico, do teu corpo, das rotinas e de tudo o resto que envolve o teu sexo e o teu organismo, as coisas acabam por se revestir de uma certa normalidade. Vais ao ginecologista como vais ao dentista. Sabes que vai ser desconfortável, sabes que é possível que um procedimento qualquer acabe por te magoar nem que seja um bocadinho, mas também já tens idade para compreender que tudo isto é necessário e que mais vale aceitar do que espernear.
No meu caso, a maturidade e a experiência nunca foram bastantes para me fazer destemida diante daquelas cadeiras. Não tem a ver com ir ou não ir, despir ou não despir, nem sequer com o sentir-me aberta e remexida até ao limite do desconforto. O meu problema é diferente. Tão diferente que não é só um problema, é mesmo uma doença. Endometriose. A quem está familiarizado com o termo, a minha simpatia, a minha compreensão e a minha compaixão; a quem não está: que sorte a vossa.
Eu e o Eduardo falámos várias vezes de ter filhos. É normal. Eu estava quase a entrar nos trintas, ele é dez anos mais velho que eu. O assunto começou a surgir em conversa, às vezes de modo acidental, outras com alguma intenção, principalmente depois de termos ido viver juntos. A ideia inicial não era que nos juntássemos tão rapidamente - começámos a namorar, porque éramos amigos de amigos, e no meio de tantas amizades lá nos conhecemos e aproximámos. Demos por nós, tínhamos uma relação; demos pela relação, tínhamos cada um a sua casa, com as suas despesas - e com as suas chatices, no meu caso, que vivia numa casa partilhada. Fizemos o que era lógico, eu fui viver para casa dele. Passámos a dividir as contas, a cama, a sala e o tempo de que dispúnhamos todos os dias. Mesmo sem ter sido planeado, a solução pareceu razoável e as coisas corriam bem.

Pensar em filhos não é assim tão extraordinário para mim. Prefiro conversar sobre o assunto de um modo razoável do que deparar-me com situações imprevistas - uma gravidez não planeada, um desejo não correspondido, uma incapacidade de que não se estava à espera. Pensar em filhos é só uma maneira natural e saudável de acautelar o futuro, seja ele qual for, com ou sem crianças. Pensar em filhos também pode ser concluir que não se quer tê-los. Não era o caso: ambos queríamos, ambos achávamos que seria só uma questão de tempo até que concretizássemos essa espécie de desejo - talvez desejo seja uma palavra demasiado forte, era menos do que isso, era uma possibilidade aconchegante no horizonte de uma vida a dois cuja ideia de alargamento a um terceiro elemento trazia felicidade.
Acontece que a endometriose, em certos casos, como o meu, pode causar dificuldades ou fazer prever obstáculos problemáticos durante a gravidez. É por isso que é preciso prevenir, antecipar situações, conhecer riscos, aprender tudo o que for possível sobre o assunto de maneira a minimizar dramas futuros. E é também por isso que a consulta a que eu ia era tão importante para mim - para mim e para nós, e para o futuro desse "nós" que se desenhava na minha imaginação e se consumava no meu dia a dia. E, sem que nada o fizesse prever, o Eduardo chegou a casa, isto um par de horas antes de sairmos para o médico, e disse-me "Maria, há qualquer coisa entre nós que não está bem". Disse-o com muita calma. Depois acrescentou "temos de conversar e temos de perceber o que queremos da vida". E eu ali, numa casa que era nossa mas que era dele, na verdade, sem ter onde me segurar, cinco minutos depois de conceber na minha cabeça uma família alargada, um bebé no meu ventre, um futuro feliz, tive de me sentar no chão para não cair. Disse-lhe que ia ter a consulta, disse-me que podia ir na mesma. Recusei. Fui sozinha. Precisava de estar sozinha. Mas fui na mesma.
Não chegámos a falar sobre esse dia, sobre esse momento. Nunca prosseguiu com a conversa. Achei que, chegando do médico, iria abordar-me, terminar o que começara. Mas não o fez. Perguntou-me o que disse o médico, não entrei em detalhes na resposta. Disse-lhe só que ia ser difícil ter filhos - e depois expliquei-lhe "difícil porque será doloroso e possivelmente arriscado para mim". "Que chatice", foi tudo o que ele disse.
A vida, entretanto, retomou a sua normalidade. A minha mágoa e o meu susto acalmaram-se, depois desvaneceram-se. Ao fim de umas semanas, nem me lembrava do sucedido. E foi nessa altura que outro projeto surgiu: em breve, o Eduardo teria de ir para o Canadá. Era qualquer coisa a ver com o visto de residência, não me recordo inteiramente dos contornos. Só sei que ele teria de se mudar temporariamente para o Canadá durante pelo menos seis meses e que tinha de lá chegar, no máximo, até março seguinte - estávamos em novembro. Perguntou-me se queria ficar em Portugal, disse-lhe que não, que queria ir com ele. Era aquilo que eu verdadeiramente queria: estar com ele, viver com ele, morar com ele. Acertámos tudo, programámos viagem e mudança: no início de janeiro, iríamos, juntos, para Vancouver, onde o Eduardo tem amigos e família. Seria fácil encontrar trabalho, seria fácil encontrar casa, seria fácil começar tudo sem ser do zero. E assim fomos.

Passado quatro semanas, estava eu sentada num banco numa praça de que nem me lembro o nome, com dez ou quinze graus negativos, a ligar para a minha amiga Alexandra, que me atendeu com voz de sono e perguntou se estava tudo bem. E eu só lhe disse "sim, amiga, acordei-te?", e ela "sim, são duas da manhã", e então pedi-lhe desculpa e desfiz-me em lágrimas, justificando atabalhoadamente que era das saudades, que era da comoção por ouvi-la que era de ainda me estar a adaptar. "Foi esse estúpido que te tratou mal, não foi?" Neguei. Neguei tudo. Mas era verdade. O Eduardo tinha-me dito que tudo tinha sido um erro e que o melhor era separarmo-nos - ali, em plena costa Oeste do Canadá, a milhares e milhares de quilómetros de casa, quatro semanas depois de eu ter deixado tudo para trás só para poder estar com ele. E, desde esse dia e até conseguir voar para Toronto, onde ainda tenho familiares, dormi no sofá e passei todo o tempo fora de casa só para não me cruzar com ele. Estou em Portugal, estou de volta. Estou bem. Mas não sou a mesma pessoa. Depois de sentirmos a solidão extrema, não voltamos a confiar nos outros. Não da mesma maneira.

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