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Por que moro com meu ex-marido

Nara Vidal, escritora brasileira a viver em Londres há mais de 20 anos, conta como é viver “para sempre” com quem já não se ama.

Foto: Getty Images
15 de setembro de 2023 Nara Vidal

"Mas porquê?" ou "Nossa, que diferente, mas funciona?". São as frases mais recorrentes quando eu tenho que, por alguma razão, explicar a estrutura do meu estilo de vida. É verdade que ninguém precisa saber dessa configuração, mas também nunca fiz questão de esconder, provocando admiração, surpresa, estranhamento, rejeição, silêncio em todo o tipo de pessoas.

Já há dois anos que eu me separei do pai dos meus filhos, e há dois anos que vivemos na mesma casa estando separados. Também faz aniversário um texto que escrevi na revista Cláudia, do Brasil, sobre esse formato de se relacionar, conhecido como "nesting partners". Termo, aliás, que não satisfaz e que me soa equivocado para o formato adotado no meu caso. Qualquer pesquisa sobre o termo na internet supõe que nesting partner esteja associado a relações não-monogâmicas ou de poliamor. Não é o caso. Somos duas pessoas que se separaram, mas que se firmaram fortemente como amigos e não como par. É, de fato, uma configuração difícil de reconhecer que exista, mas que pode acontecer por trás do palco, na coxia, um casamento acabado, mas que por medo, culpa, conveniência se mantém.  É verdade que é difícil encontrar um termo que comporte e conceitue bem a montanha russa que é essa escolha e que, às vezes, é sentida não como tal, mas como uma imposição.

Não é só a questão financeira que se enrosca nos sonhos e projetos e que, tantas vezes, nos faz reféns do que se passa. É também uma relativa dependência de afetos. Durante muitos e muitos anos, vivemos aqui uma ideia de para todo o sempre. O casamento e a comercialização do amor romântico nos arrastam para, tantas vezes, relações de fachada, convencionais e que se enquadram com o que todos esperam. Mas, espera: e se essas convenções fossem apenas o monstro que criamos no escuro e que, na essência, quiséssemos nos libertar de modelos que já não se sustentam com o passar dos anos, com as transformações sociopolíticas e culturais? Por que o casamento romântico ainda é um produto tão consumido, ainda que tão cambaleante? Não me refiro a relações. As relações são esses elos que eu, particularmente, gosto muito de ter, de passar por elas. Ao mesmo tempo, não consigo tirar de mim uma certa melancolia quando vejo uma moça vestida de noiva. Eu fui uma. Aliás, fui duas. Duas vezes noiva, com vestido branco e outro bege, dois buquês, o primeiro de rosas, o segundo de hortênsias, cabelo solto, cabelo preso. Mas penso muito no que será que fazia ou pensava a minha mãe, quando eu tinha vinte e um anos, e ia à costureira provar meu vestido de casamento. Por que ela não me parou, nem que fosse a caminho do noivo? Porque ela não ia conseguir. Não ia conseguir porque acreditamos, eu e ela, que o casamento é um desembocar natural das relações duradouras, respeitosas e que assim as famílias nascem. Mas a grande surpresa é que não, não é assim. As relações são o que fazemos dos nossos laços. A maioria não dura para sempre, muitas perdem o respeito e acontece de haver muita infelicidade quando todos são esmagados dentro de uma caixa, em cujo rótulo se lê: amor eterno ou família feliz. Mas muitas permanecem. E acredito que consigam porque são maleáveis e generosas com quem está dentro dessas relações e não com quem as vê de fora.

Essas reflexões me fazem considerar formatos novos de viver uma relação familiar. Preciso mesmo de dizer que conheço muitos casamentos convencionais que são tão bonitos, alguns muito longos, filhos, netos, uma penca de amigos, uma construção de duas pessoas generosas mesmo, não nas palavras ou no papel, mas na rotina, o lugar mais difícil de ser feliz e generoso.

Então, meu questionamento não é sobre as relações boas e bonitas de casamento, mas a imposição cultural disso como se não tivéssemos escolha. Viver com o ex-marido talvez seja impensável para a maioria de nós que deseja uma separação. Acho natural que, ao decidir por uma separação, muita gente anseie por estar a sós, sem a voz e o corpo de alguém de quem não gostam mais ou por quem perderam o respeito. Porém, acontecem casos como o meu, em que temos crescente respeito um pelo outro e vamos, ao longo dos anos, ficando mais e mais amigos. É o nome dele que está na minha ficha de emergência, em caso de acidente. Os filhos também parecem apreciar. Ficamos todos no mesmo lugar, sob o mesmo teto, tomamos café juntos e jantamos os quatro. Eu sempre tento viver a vida que quero viver e ele também. Mas nem tudo são flores: há dias que gostaria profundamente de viver sozinha. Mas não vivo. Vivo com os meus filhos e o pai deles. Uma família comum como é a sua. Mas papai e mamãe não dormem juntos, têm quartos separados e relações independentes. Há imensa leveza também em encarar e esmagar a hipocrisia de uma fachada.

Ainda me faz rir quando penso numa amiga inglesa que perguntou como era a minha relação com o pai dos meus filhos. Depois de explicar a ela, ela diz: não sabia que tinha um nome para o que já vivo há mais de dez anos.

No fim das contas, talvez seja o caso de manter as aparências ou não. Mas seria bonito oferecer o respeito para as escolhas dos outros. Especialmente as que não conseguimos entender.  

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