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Sara Barros Leitão: "Quando se referem a mim como encenadora olho para trás para ver se estão a falar de outra pessoa"

Tem 30 anos, uma carreira como atriz e encenadora, um percurso como ativista de causas várias e um prémio que lhe permitiu criar ainda mais. Em entrevista à Máxima, Sara Barros Leitão revela o seu lado de acumuladora, a sua capacidade de olhar para o passado sem viver na nostalgia, e uma nova peça sobre o trabalho doméstico feminino.

Foto: Filipe Ferreira
26 de março de 2021 Joana Moreira

A chuva deu tréguas e Sara Barros Leitão fala-nos da sua varanda no Porto numa manhã soalheira. Ao fundo ouvem-se pontualmente gaivotas que não atropelam o discurso de quem fala com entusiasmo sobre o que lhe ocupa a mente. Desculpa-se da forma "caótica" com que o faz, sempre como quem acrescenta um ponto a um pensamento, uma vírgula a uma ideia, uma nota a uma opinião.

Fala sobre Heróides, o clube do livro feminista que criou após receber o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II [e que tem a sua próxima sessão este sábado, 27, e todos os meses até setembro]. Fala sobre o novo espetáculo que está a preparar, cuja digressão nacional arranca em novembro, em Lisboa. Fala sobre ser atriz, sobre os primeiros passos na encenação. Fala sobre livros, sobre a sua paixão sobre o ativismo que não sabe se nasceu antes ou depois dela própria. E fala sobre como todas estas coisas se cruzam umas com as outras.

Apresenta-se como encenadora e atriz ou atriz e encenadora? O que vem primeiro?

É uma ótima pergunta. Acho que por um lado cronológico vem atriz e depois encenadora. [Em relação à] forma como eu me vejo vem também atriz e encenadora, mas acho que isso também está ligado à coragem que nós vamos tendo para assumir algumas palavras que têm mais peso ou que achamos que têm mais peso. Quando comecei a trabalhar como atriz levei muito tempo para dizer que era atriz, demorei a assumir isso. Agora que estou a dar os primeiros passos na encenação quando as pessoas se referem a mim como encenadora olho para trás para ver se estão a falar de mim ou de outra pessoa. Ou seja, acho que é atriz encenadora no sentido de ser o caminho que vou fazendo.

Com o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II fundou um clube de leitura, Heróides – Clube do Livro Feminista. Era um projeto que já tinha em mente ou surgiu após o reconhecimento?

A ideia do clube de leitura é uma coisa que já tenho há muito tempo. Sempre tive esta vontade de querer fazer parte de um clube de leitura, que é muito do imaginário da mulher, porque durante muitos anos foi através dos clubes de leitura que as mulheres que estavam reduzidas ao espaço privado e que não habitavam o espaço público podiam encontrar o seu sítio seguro de conversa e de leitura. Eram lugares em que podiam estar com outras mulheres, a conversar sobre ideias, a ser contaminadas por outras ideias, a discutir as suas vidas. E nem sempre os livros que liam eram os que esperavam que elas lessem. Muitas vezes estavam a discutir política e a sua própria condição e os seus direitos.

Por outro lado, nunca encontrei um clube do livro onde fizesse sentido pertencer porque havia sempre questões de hierarquia que são também relações de poder, e todas as relações de poder são também de opressão. Esta coisa de vir alguém que fala de um livro e das pessoas que ouvem... Os espetadores, os leitores, ficam sempre reduzidos a um lugar de ouvir muito pouco participativo. Eu queria outra coisa. Queria mesmo que as pessoas encontrassem um lugar seguro para discutir realmente coisas.

Pode ter sido surpreendente ver uma atriz e encenadora a canalizar o valor de um prémio na área do teatro para um clube de leitura.

Soube do prémio em março, mas ele só me foi entregue em dezembro, então tive de guardar este segredo durante quase um ano. Soube duas semanas antes da pandemia começar. A entrega foi sendo adiada, adiada, então tive muito tempo para pensar no que ia fazer com este prémio. Juntei um projeto que queria fazer há algum tempo, o clube de leitura, com um financiamento que me é dado. Concordo que não é muito expectável que uma atriz e encenadora que recebe um prémio num contexto de teatro o reverta num clube do livro, mas para mim as coisas misturam-se todas, e os livros estão na base daquilo que eu sou e como eu penso. Acho que é a partir dos livros que se começa a transformar o mundo. Ao mesmo tempo, percebo que estamos numa fase do mundo muito estranha, em que os livros são a porta para a nossa imaginação já que tudo nos é negado à volta. Não temos acesso neste momento a coisas fundamentais, como o espaço público, os lugares coletivos, de partilha, não temos sequer [o mesmo] acesso às bibliotecas, aos teatros, aos bares, às praças onde discutimos. E por isso temos de preservar os livros nesse contexto. E também estava muito chocada com o universo livreiro em Portugal, porque os livros são muito caros, o IVA é absurdo, e eu que estou muito envolvida nas lutas pelos trabalhadores da cultura não me podia esquecer deste setor, muito prejudicado, sobretudo os livreiros independentes, que têm tido muito pouco apoio. Por isso era também uma forma de conseguir criar uma massa de pessoas de forma a que pudessem comprar livros e incentivar algum gosto pela leitura de forma a poder estimular também os livreiros independentes.

Sara Barros Leitão durante o ensaio aberto de Rei Lear
Sara Barros Leitão durante o ensaio aberto de Rei Lear Foto: Pedro Santasmarinas/Instagram @sarahoneypie

Alguns dos livros na lista das leituras para os próximos meses já estão esgotados. Há uma sensação de missão cumprida?

Fico comovida. Falava com uma amiga que trabalha com livros a semana passada sobre isto e ela dizia na brincadeira que na área dos livros se discute muito sobre criar estratégias para criar leitores, para vender livros, para as pessoas lerem. E já se tentou muita coisa, muitas delas com muito sucesso. Mas de facto é a pergunta para 5 mil euros: como é que nós pomos as pessoas a ler? Penso que neste projeto não há grande ciência nem grande segredo. Acho que a única coisa

que ele tem de interessante é propor uma conversa de forma horizontal sobre os livros. O mundo deve caminhar para uma horizontalidade nas relações e não para uma verticalidade em que há alguém que sabe e alguém que não sabe, alguém que fala e alguém que ouve. Acho mesmo que o caminho é o da escuta e do diálogo. Fico muito comovida porque não estava à espera desta recetividade. Ao mesmo tempo também acho que o facto de discutirmos os livros de um ponto de vista feminista traz uma agenda que me comove porque percebo que as pessoas estão mesmo interessadas no feminismo como uma forma de pensar o mundo e isso é muito comovente também. Neste momento temos 600 pessoas inscritas para o próximo mês, mais 100 do que aquilo que podemos ter, mas que estão em lista de espera. Portanto temos 600 pessoas a ler o próximo livro. Tenho muitos livreiros que já me contactaram com livros que esgotaram, entretanto...

O ativismo é hoje indissociável do nome Sara Barros Leitão. Isso partiu de uma confrontação recente ou sempre houve algum espírito de justiça?

Sempre esteve de alguma maneira. O ativismo é quase como um vírus, que quando apanhas já não consegues olhar para o mundo de outra maneira. Ele fica presente em ti em todas as coisas que tu fazes. Tem a ver com a forma como nós olhamos para o mundo e como achamos que devemos agir sobre o mundo. Ele está nas ações mais quotidianas ou nas ações mais macro cósmicas. Está na conversa na mercearia, está na forma como trato as pessoas que conheço, está na forma como voto, está na forma como faço espetáculos, está na forma como trabalho.

Ou seja, acaba por ser uma luta de todos os dias, está naquilo que escolho comprar, não comprar. É um caminho. Não sei muito bem se ele nasce primeiro que eu ou se eu nasço primeiro que o ativismo, mas é um bocado indissociável daquilo que sou. Obviamente que pode começar a ter mais expressão pública porque as pessoas também são o seu caminho e, à medida que o tempo passa, vão-se juntando causas, notoriedade e posicionamentos. Isso é uma coisa que é natural. Mas isso sempre esteve em mim. Aliás, fui delegada de turma na primeira classe. Por alguma razão era sempre eleita (risos).

Na representação, os atores ganham com a reivindicação ou é um pau de dois bicos?

É um pau de dois bicos, sem dúvida. Não acho que ser reivindicativo deva partir de uma coisa muito premeditada, acho que nunca vai correr bem tentar fazer uma construção. Acho que se as pessoas sentirem as injustiças e sentirem que devem lutar por elas está tudo bem e devem fazê-lo. Mas também sei, e acho que isso é muito importante, do sítio de onde eu parto. Sei que nem sempre tive a possibilidade de reivindicar tudo aquilo que achava. E muitas vezes dou passos em falso e aceito coisas que noutra fase da minha vida não aceitaria. Mas também porque

todas as pessoas são o seu contexto. E uma das coisas mais importantes para mim dos feminismos é perceber o contexto das pessoas e não julgar sem conhecer esse contexto. Aliás, não julgar de todo. Por isso não incentivo ninguém a ser de uma maneira ou de outra. Claro que há linhas vermelhas, discursos de ódio que simplesmente são uma linha vermelha para mim e que não são sequer uma opinião. É crime. Mas atores ou atrizes ou artistas, no geral, aceitarem condições de trabalho que não são as melhores para eles, estragarem o mercado no sentido de proporem valores que vão destruir trabalho que vem para trás... não julgo ninguém por fazer isso. Porque não sei o contexto de onde as pessoas partem para aceitar essas coisas. Não sei que dívidas têm, que pessoas têm a seu encargo, qual é a saúde mental que têm e às vezes aceitar um trabalho é salvar a tua cabeça, mais do que as condições em que o aceitas. Vou fazendo aquilo que acho que devo fazer, mas com todo o respeito e tolerância por quem faz um caminho diferente. Até porque acho que a diversidade é o mais importante e é este confronto de ideias que me interessa no mundo.

Alguma vez pensou que este papel de atriz ativista a pudesse impedir de fazer papéis com base na mera contemplação estética?

É interessante porque há dois anos encenei concertos para os Dias da Música no CCB. Encenei três concertos de Gil Vicente, no ano a seguir encenei o concerto do Rei Lear. Encenei Gil Vicente

e Shakespeare e não revejo nesses trabalhos nenhum tipo de questão mais panfletária ou política. Vou fazendo muitos trabalhos que não partem de nenhuma dessas inquietações que vou sentido e que são naturais. Ao mesmo tempo, também consigo reconhecer que no meu trabalho, para além de poder parecer panfletário, por um lado, há também uma grande preocupação estética e de inovação da forma. Acho que há espaço para tudo. Neste momento, enquanto criadora, quando escrevo os meus espetáculos tenho de partir daquilo que são as minhas inquietações. E as minhas inquietações são olhar para o público, ver problemas de desigualdade e trabalhar sobre eles. Mas, como artista, também faço encomendas e enceno coisas que me pedem. Na verdade, seria falso dizer que só faço estas coisas, porque não faço. Agora é interessante que para a opinião pública possa parecer que só faço isso, porque ao mesmo tempo em termos mediáticos é mais interessante para os media cobrirem este tipo de trabalhos porque são mais polémicos (risos). Acho que faço as duas coisas. Neste momento estou numa fase em que me apetece trabalhar sobre estas questões todas, mas acho que tem de haver espaço para todas as outras, para a contemplação, para a abstração, e tenho a noção que qualquer dia vou lá parar também.

Enquanto encenadora há mais margem para olhar para a estética?

Há artistas cuja estética é o seu ponto de partida. Não é o meu ponto de partida. É uma preocupação minha, grande, mas raramente parto da forma ou da estética, parto de outras coisas. Não é mesmo a minha praia. Mas sim, como encenadora tenho muito mais liberdade, aliás é-me exigido como encenadora que tenha essa preocupação, e como atriz não me é exigido isso. Se a tiver sou melhor atriz e colega, acho eu. Mas não é isso que se espera de mim como atriz. É isso que se espera de mim como encenadora, que tenha uma ideia e que tome decisões e que encontre um caminho para aquela criação.

As lutas laborais têm sido uma das suas grandes bandeiras. Foi isso que a moveu a criar este novo espetáculo, Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa?

É um título longo roubado clandestinamente às Novas Cartas Portuguesas, que é um livro que me acompanha há muito tempo e que eu acho que é muito pouco lido em relação àquilo que devia ser. É talvez um dos livros mais importantes da nossa literatura portuguesa, mas, apesar de academicamente ser muito reconhecido e unânime, de um modo geral para as pessoas ainda é bastante desconhecido. Tenho a certeza que o facto de ter três mulheres autoras tem também a ver com isso. Mas sim, as lutas laborais e a luta das classes, de alguma maneira, são talvez das lutas mais antigas do mundo, e para mim estão irmãmente ligadas as outras lutas, seja da crise climática, seja da luta antirracista. (...) Este espetáculo surge dessa preocupação macro que acho que vai continuar no meu trabalho nos próximos anos. As mulheres, para além de toda essa precarização, ainda têm um trabalho desde o início da sua vida, que é o trabalho doméstico e reprodutivo. A desigualdade entre homens e mulheres é grande porque se espera das mulheres não só todas estas lutas do mercado de trabalho, mas também todas as outras que os homens não passam. Nomeadamente todo o trabalho domestico não reconhecido, não remunerado, que se estima que seja em média uma hora e 40 minutos a duas horas a mais por dia do que os homens em planeamento familiar, almoços, jantares, fazer a mochila do filho, pôr a roupa a lavar, limpar a casa, etc. Queria neste espetáculo falar sobretudo sobre esse lado. (...) A certa altura encontramos no seculo XIX a frase nos livros de História: "após a Revolução Industrial a mulher começa a trabalhar". Como se a mulher nunca tivesse trabalhado antes. Lembro-me quando era criança de nos perguntarem as profissões dos pais na escola e de colegas que diziam ‘a minha mãe não trabalha’. Não trabalha? E chegava a casa e tinha a casa limpa e a roupa passada. Isto tudo se estivermos fora de casa num outro trabalho é um trabalho que temos de pagar para alguém fazer. Quando não pagamos para alguém fazer somos nós que fazemos, que acumulamos. Ou seja, antes de falar da luta laboral no espaço público e nas fábricas e nos sindicatos é preciso falar da luta laboral no interior de cada casa.

Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta (Dom Quixote)
Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta (Dom Quixote)

Já na peça Teoria das Três Idades (2018) estudou o arquivo do Teatro Experimental do Porto. Agora, uma vez mais, debruça-se sobre o arquivo. Qual é a importância da memória?

É uma importância da construção do futuro, ou seja, a memória tem o peso da construção do futuro. A nossa memória é seletiva, nós apagamos a dor, apagamos as memórias piores, dizem que se assim não fosse as mulheres não tinham mais do que um filho, se se conseguissem lembrar da dor do parto. É importante respeitar esta seleção da memória porque é assim que nós funcionamos. Por outro lado, também é importante arquivar a memória, porque ela constrói a história passada, mas futura. Caminhamos sempre com uma bagagem, nunca partimos de uma coisa que não existe. E as nossas bagagens às vezes são dolorosas, de sujeito colonizador, de sujeito opressor. Temos de saber lidar com elas. A memória, o que veio antes de nós, é importante para ajustarmos os caminhos do futuro. A minha relação com os arquivos não se fica na nostalgia, na melancolia e no revivalismo de "olha como era antes". Não há uma relação de enamoramento pelo antigo só por ser antigo, não me interessa sequer tudo o que é antigo. Interessa-me aquilo que me construiu, que muitas vezes abriu portas para eu estar aqui, isso interessa-me muito. E interessa-me muito o que aponta para o futuro e sobretudo interessa-me aquilo que achamos que foi a nossa memória. Interessa-me a ausência, aquilo que não está lá. Porque aquilo que escolhemos guardar também mostra o que é que escolhemos deitar fora e não registar.

É daí que vem o encantamento não só pela leitura dos livros, mas pela releitura?

Sim, acho que sim. Tem muito a ver com a minha própria essência, da minha natureza. Por exemplo, agora falo enquanto estou na varanda ao sol. Preciso muito na minha vida de ter uma manhã em que escrevo e trabalho a apanhar sol, físico. Mas ao mesmo tempo sou uma pessoa muito solitária, consigo passar muito tempo sozinha fechada numa biblioteca ou num arquivo, muitos meses, não tenho problema nenhum em estar nessa solidão. Depois sou uma pessoa que gosta muito do papel, de ficar a admirar a caligrafia, o papel. Não são coisas muito interessantes, são características minhas, h

á pessoas que gostam de outras coisas. Gosto de livros e tenho um problema que é: compro muito mais livros do que aqueles que alguma vez vou poder ler. Acho que todos os dias chegam livros a minha casa, estou prestes a mudar de casa porque não tenho espaço para eles. Não tem graça, acho que isto pode ser mesmo um problema. Mas sou acumuladora, guardo revistas, papéis, panfletos. Acho que isso faz parte da minha natureza, gosto de reler livros, arquivos, de ler e juntar coisas. Não é muito interessante, mas sou assim.

Teoria da Três Idades
Teoria da Três Idades Foto: Eduardo Breda

O clube de leitura propõe precisamente a releitura de livros sob um novo prisma, o feminista.

Sim, uma coisa que me faz muita confusão é ver livros fechados em armários. Às vezes até têm vidro, mas estão fechados. Acho uma coisa muito triste. Há uma barreira nesta coisa de pegar no livro. A minha mesa de café tem só livros que vou lendo. A minha secretária igual. Os livros levam-me uns aos outros e estou sempre a relê-los e a pôr post-its. A minha relação com os livros é física, de estar sempre a reler e a ir buscar outra vez. Muitas vezes nem leio um livro do princípio ao fim, não sou nada ortodoxa nisso, acho que há livros que não precisam de ser lidos do início ao fim, há tantos livros que são para ser consultados. Há livros que começas a ler e percebes que não estás preparada, e voltas a ele mais tarde, e está tudo bem. Acho que os livros não devem causar esse sofrimento. Acho que há uma relação mais orgânica. Para mim é como quem tira um copo de água e bebe, depois deixa ali e volta a beber.

Já partilhou ter passado por dificuldades, algo frequente na vida de muitos atores jovens e não jovens. Este momento de visibilidade coloca-lhe pressão, dá-lhe descanso ou esperança?

Esses relatos partem muito de perguntas que me fazem em entrevistas às quais objetivamente respondo. Se a vida não é fácil porque é que se vai dizer que é? Há uns tempos quando fiz 10 anos de trabalho resolvi fazer um texto a dizer que em 10 anos se passa por tanta coisa que é uma montanha russa. Uma pessoa faz isto, faz aquilo, recebe um cachet chorudo e depois está meses sem trabalhar. Escrevi não no sentido misericordioso, mas mesmo para dizer que isto é assim para os atores e para grande parte dos trabalhadores em Portugal e no mundo. É importante desconstruir esta ideia de que o próprio mercado neoliberal e capitalista nos tenta incutir que é "trabalha muito e vais conseguir subir na vida" ou esta coisa da meritocracia que é a forma mais perversa de perpetuar desigualdades. Não existe meritocracia, isso é mentira, uma falsidade. Escrevi o texto um bocado nesse sentido de: "gente, podem trabalhar muito, mas pode nunca aparecer essa oportunidade". Isto é real. Claro que se trabalharem muito é mais provável que aconteça. Mas não é pelo mérito que as coisas acontecem. Ou só pelo mérito. As pessoas partem de sítios de privilégio para as situações. Essa publicação tornou-se um bocado viral mais do que aquilo que esperava ou gostava, porque as pessoas gostam de perverter aquilo que se diz. Mas disse aquilo sem nenhum peso. Recebi mensagens muito interessantes de atores e de trabalhadores do espetáculo que agradeceram a sinceridade, como um sinal de que não estavam sozinhos. Acho que onde estou agora é só uma fase, nem sei bem onde estou, não é boa nem má, é o que é, é para onde trabalhei estar, mas também para onde a sorte e a vida me proporcionaram estar. Não quer dizer que queira fazer isto para o resto da vida porque provavelmente não quero. Posso querer mudar de profissão a qualquer momento, acho que é normal. Já não existe esta coisa da profissão para toda a vida.

Enquanto alguém que se dedica tanto a arquivos, ao papel e aos retratos do tempo, o que é que gostava que encontrassem nos seus textos e arquivos daqui a um século?

É uma pergunta difícil porque me coloca num sítio não muito confortável que é ver-me de fora e pensar em mim no futuro. Tenho alguma dificuldade, por pudor, em colocar-me nesse sítio. Não sei o que é que gostava que as pessoas vissem, acho que gostava de ser surpreendida, de perceber o que é que viram no que fui fazendo. Gostava de ter essa surpresa. Gostava que as pessoas que remexessem nos meus cadernos, nos meus arquivos, encontrassem alguém que conseguiu abrir portas para que as pessoas que estão a remexer naquelas coisas pudessem ter melhores condições, mais igualdade. Tal como agora remexo nalgumas coisas e penso ‘esta mulher abriu portas para eu estar aqui a escrever e a fazer isto’. Se há coisa que gostava de deixar era o continuar a abrir outras portas que ainda não estão abertas, para outras mulheres e outras pessoas.

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