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Julião Sarmento, o artista sem medo

Acabamos de perder, aos 72 anos, um dos maiores, mais modernos, diversos e internacionais artistas portugueses. O seu legado atravessa a pintura, o desenho, a escultura, a fotografia, o filme, a instalação e a performance. E mais houvesse, Julião Sarmento era um exemplo de generosidade e abertura ao mundo. "Era muito intenso, tinha um lado emocional muito forte que ocupava em nós um grande espaço emocional também" lembra Delfim Sardo.

05 de maio de 2021 às 16:25 Patrícia Barnabé

Quando Serralves fez uma retrospetiva da sua obra, em 2012, Julião chamou-lhe Noites Brancas, a lembrar o pequeno grande livro de Dostóievski. Sentámo-nos num banco de jardim a conversar e ele descarta logo os raciocínios "intelectualóides", como lhes chamava. Era muito alegre, vivo, atento e honesto a desconstruir ideias cristalizadas. O texto começou na minha primeira impressão: "Julião Sarmento gosta de espreitar e é um artista sem medo".

Primeiro quis ser poeta,"tinha apetência pelas palavras e escrevia, escrevia, escrevia… Gostava do prazer de ouvir as palavras, interessava-me a elegância, o ritmo, e como as coisas funcionavam", contou-nos, na altura. O mesmo ritmo e instinto que levou para os instantâneos da sua arte, feita de camadas, relances, momentos espreitados e roubados, ausência-presença, olhares de sensibilidade e subtileza, de acutilância e violência, de intimidade. "Gosto muito dos pequenos instantes. Gosto do espaço entre o que se passou e o que vem a seguir. Que não é exatamente o presente, não é? É o que fica imediatamente antes daquilo que estou a ver, mas para o qual eu não estava com atenção. É isso, é isso que me interessa, o deadpan, isto é, as coisas que se passam à volta daquilo que parece que não é nada." Por isso, dizia que o seu trabalho era "muito doméstico", o pequeno quotidiano interessou-o "desde miúdo."

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Estudou Pintura e Arquitetura nas Belas-Artes, mas agarrou um emprego de escritório no Ministério da Cultura e só "tardiamente", dizia, se tornou artista plástico a tempo inteiro. A sua primeira exposição foi em 1967, e depois disso deu a volta o mundo umas tantas vezes, e ao mundo das artes também, era um artista irrequieto, curioso, um experimentador e um trabalhador incansável: "Isto é um pouco como a história do escritor que escreve sempre o mesmo livro, eu faço sempre a mesma coisa, de maneiras diferentes e com factos diferentes. O core é sempre o mesmo. Claro que as pessoas mudam e evoluem, mas há lá uma parte delas, aquela parte negra, que é sempre a mesma, não?"

Há muito de pulsões, sensualidade e mistério na obra de Julião Sarmento, o que está implícito, velado. Interessava-se "por aquilo que é proibido, exatamente por estar associado ao interdito, pelo sentido da inacessibilidade. Tudo o que é apercebido em termos de negação, ou seja, o ilegal, o que não pode. A negação é uma coisa que me interessa exatamente para saltar para o outro lado, percebes? Interessa-me para a ultrapassar". Amoral e sensorial, no seu trabalho encontramos um grande ensaio sobre o desejo, o que não se fala: "Quando se fala tudo perde a graça! (risos) Por isso é que eu faço as coisas, não as verbalizo. Mas claro que me interessa, a grande diferença é que assumo esse interesse e atiro-o à cara das pessoas de uma forma mais aberta e mais violenta. E as pessoas não assumem, escondem, põem atrás da porta, são portanto, também, muito mais maceradas e mais traumatizadas porque não têm nenhuma catarse."

Há muitos recantos na obra de Julião Sarmento: a Natureza, o Cinema, a Fotografia, a Arquitetura, a Moda. No caso desta, "deve ser, provavelmente, a mais presente de todas as artes", disse-nos. Filho do seu tempo, sempre admirou os designers japoneses, de Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo, depois Tom Ford e Marc Jacobs, mas vestia quase sempre Prada, "um exemplo de genialidade de construção das coisas, do que é mainstream e do que não é mainstream. Gosto de tudo o que ela faz, tudo." As artes eram para ele "estratégias visuais" para se fazer entender e comunicar melhor: "Nada para mim é mais importante que nada. A importância das coisas é toda muito relativa e é toda igualmente importante. De uma maneira geral gosto de tudo por razões diferentes".

É muito referido o seu amor às mulheres, a sua curiosidade por elas. Chegou a fotografar o seu círculo próximo em 62 fotografias, 31 mulheres, 42 anos, que expôs na Fundação Vieira da Silva-Arpad Szenes. "Para já são a outra metade… e depois eu sou furiosamente heterosexual!", disse-nos a rir. "Sou naturalmente assim, obcecado por mulheres, sempre fui." Pausa. "É curioso quando penso nisso, claro que fui criado por mulheres. A minha tia era um personagem muito forte na minha vida, a minha mãe, e as pessoas procuram nas coisas que lhes são caras, ou que lhes interessam, os leit motifs para aquilo que fazem." E a mulher é dos mais antigos temas da arte: "Não há nada mais comum e mais belo do que a representação feminina, desde a Vénus de Willendorf, passando pela Vénus de Urbino do Ticiano… Sou atraído por uma feia como um camafeu, mas muita esperta? Não, porque se calhar nem chego a perceber que ela é muito esperta se for um camafeu, mas se, por uma questão social, eu tiver de falar com ela e perceber que é uma mente brilhante, sou capaz de ficar atraidíssimo."

"Éramos muito chegados, sim", diz-nos ao telefone Delfim Sardo, reconhecido curador, ensaísta e professor, um dos maiores amigos de Julião Sarmento. Conheceram-se em 1983, através de um amigo comum, o Gido, nos Três Pastorinhos, no Bairro Alto. "O Julião nem se lembrava dessa primeira vez, depois passou muito tempo e o [artista plástico] Fernando Calhau é que nos aproximou e, a partir de 1990, ficámos mais próximos". Conhece profundamente a obra de Julião Sarmento e diz-nos que o que fica, "mais do que o desejo e a representação da mulher, que são ferramentas para falar do que é realmente importante para ele, é a memória, o refazer e o reconstruir da memória." Uma vez foi fazer uma conferência a Serralves sobre a obra de Julião, conta: "Disse-lhe: ‘Aposto que vou falar sobre o teu trabalho durante uma hora e meia sem usar a palavra desejo ou mulher’. E consegui, não foi difícil."

Julião Sarmento será sempre lembrado "pela enorme intensidade da sua presença e pelo seu trabalho, que vai ser muito revisitado", acredita Delfim Sardo. "Até porque quando olhas para a sua obra, uma parte foi esquecida, como a parte expressionista dos anos 80, há muitas peças suas que ainda não foram mostradas." O que o distinguia, diz, "eram muitas coisas: tinha uma capacidade enorme de produzir imagens que funcionavam como projeções para nós, com as quais nos era fácil identificar, os nossos desejos, as nossas memórias. Sempre trabalhou imenso sobre a memória, a individual e a coletiva, por isso a sua obra interessava-se muito pelo Cinema, pela Pintura, pela Escultura." Depois, ressalta, "era muito atento ao trabalho dos outros, tinha uma grande argúcia visual e estava permanentemente aberto", ao mesmo tempo que tinha "uma atitude muito reflexiva em relação ao seu trabalho, reinventava-se permanentemente."

Das várias qualidades de Julião Sarmento, são unânimes a generosidade e a atenção que dava à frescura das novas gerações. O artista plástico João Louro também o conheceu nos idos dos anos 90: "Todos nós queremos matar o pai. Ele pertencia à geração de 80, eu como jovem artista tinha a obrigação de enfrentar os artistas que tinham ganho esse protagonismo. Nessa luta - e ainda bem que aconteceu - num determinado momento, em que o raio de ação nos foi aproximando inevitavelmente, conhecemo-nos e ficámos amigos. Essa amizade perdurou até hoje. Posso dizer que estava unido ao Julião como se fosse família. Ele era da minha família. E assim continuará a ser!" O que mais admirava nele era a sua energia e ecletismo: "Era um ser naturalmente irrequieto, ávido, não conseguia, nem queria, fixar-se a nenhum media. É nessa viagem, nessa deriva, em que se expressa melhor. Isso era o que mais admirava nele, o facto de não ter um pensamento sedentário". 

Foto: Pedro Bettencourt

Por isso, terá sempre um lugar "no mundo da História da Arte. Foi pioneiro em muitas coisas, mas sobretudo internacionalizou a arte portuguesa. Ele disse que seria possível e provou que era". É curioso que um dos poucos artistas portugueses a expor mundo fora, da Tate Modern de Londres à Pinacoteca de São Paulo, do Museo Reina Sofía em Madrid ao Stedelijk de Amesterdão ou ao Guggenheim de Nova Iorque, para referir alguns, e representou Portugal na Documenta de Kassel ou na 47ª Bienal de Veneza, em 1997, mas nunca quis sair. "Gosto imenso do meu país. Pensava: quero é ser artista, trabalhar em todo o lado, mas viver aqui. Ninguém fazia isso, mas eu meti na cabeça e consegui."

Isabel Nogueira, crítica e professora de História de Arte conhece o artista mais tarde, em 2007, através de Albano da Silva Pereira, numa inauguração do Centro de Artes Visuais, em Coimbra. "Falámos um pouco na altura, eu estava a publicar o meu primeiro livro sobre arte contemporânea em Portugal e ele, claro, era uma presença importante no livro. Ficámos bons amigos desde então." Isabel Nogueira diz que a obra de Julião Sarmento impôs-se logo no início do seu percurso, no final dos anos 60, "com uma inequívoca modernidade artística e estética. Abraçou uma linguagem única, reconhecível, elegante, depurada e ousada, ao mesmo tempo. Percorreu muitos territórios, foi um verdadeiro artista experimental, teve afinidades com os movimentos minimal e conceptual, mas também com o regresso à pintura, nos anos 80. Esteve sempre na vanguarda artística." Depois, "era um entusiasta, um curioso, um eterno jovem, um aglutinador de pessoas. Era de uma enorme generosidade tanto no trabalho como a nível pessoal. Vou ter muitas saudades dele. Vai-nos fazer falta."

"Tinha uma generosidade nunca vista", sublinha Delfim Sardo. "Ninguém junta tanta gente à sua volta, permanentemente disponível, sempre a ajudar o colega mais novo, uma atitude que depois se refletia no seu trabalho e na sua relação com o mundo, que era sempre de uma grande abertura e generosidade. Tinha uma vontade enorme de estar com os outros. Todos os mais próximos sabem como ele era muito intenso, tinha um lado emocional muito forte que ocupava em nós um grande espaço emocional também, além da admiração que temos pela sua obra. Acho que todos temos a noção do oco coletivo que vamos sentir."

"O Julião será forever young. Era irrequieto e adorava a vida. Era latente! Era também muito acolhedor e amigo. Era gregário, juntava pessoas... É assim que o recordarei para sempre", diz-nos João Louro. Conta que quando representou Portugal na Bienal de Veneza, em 2015, a TAP estava em greve e as viagens para Itália estavam canceladas, mas "o Julião e a Isabel [sua mulher e mãe dos seus dois filhos] arranjaram forma de lá chegar. Não sei como, nunca lhe perguntei. E estivemos todos juntos, os poucos que chegaram de Portugal, significou muito para mim". 

Foto: The Berardo Collection

Julião Sarmento privou com os maiores artistas em Portugal e fora dele, adorava rodear-se de pessoas com quem gostasse de conversar. Tudo estava na proximidade: "É aí que se vai buscar mais, às pessoas, é onde se aprende", disse-nos naquela longa conversa. E o que te apaixona? "Montes de coisas, mas fundamentalmente a inteligência." As suas festas de anos, que oferecia na sua belíssima casa no Estoril, são absolutamente memoráveis. "Há uma coisa que acontecia quando íamos jantar a casa dele e se falava num episódio de um amigo, ele desaparecia e descia à cave e voltava com uma fotografia ou uma carta ou um desdobrável de uma exposição", conta-nos Delfim Sardo emocionado. "O Sarmento era demais, tinha tudo organizadinho, tinha-nos todos documentados ao longo dos anos." Conversar com ele era uma viagem, "tinha uma memória infinda de tudo: filmes, música, episódios pessoais… O Julião estava sempre a começar uma conversa."

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