"Vá trabalhar, arranje-se, vá tomar banho e não há cá pijamas, não pode, está proibido!"
O confinamento revelou a fragilidade e a força emocional e psicológica de cada um de nós. Conversámos com o psicólogo Nuno Mendes Duarte sobre o que estamos a passar e estratégias para o contornar.

Se há coisa que esta pandemia nos tem ensinado é o desafio do isolamento, aprender a estarmos connosco, a bastarmo-nos na falta do outro ou a gerir uma família em confinamento. E ficámos a saber o que nos sobra de autosuficiência emocional, uma aprendizagem da humildade e da descoberta de espaços interiores, dos mais sombrios aos mais luminosos. Fomos conversar com Nuno Mendes Duarte, da direção clínica da Oficina da Psicologia, sobre como é isto de viver num labirinto particular, como canta Marisa Monte.
Ninguém se sente bem com a pandemia e o confinamento, alguns estão mesmo a "fritar".

Estamos a fritar pelo espaço que o stress ocupa. O stress na essência é teres de te adaptar a um desafio. Pode ser positivo ou negativo, casar, ser promovido ou ter um aumento são factores de stress positivo, estão a pedir uma mudança grande. Ganhar o Euromilhões é uma situação de stress positivo fortíssimo porque obrigada à reestruturação de um sistema. Agora, com a adaptação às novas plataformas online, à redução dos contactos sociais próximos, à incerteza no nosso espaço de trabalho, aos miúdos em casa e às rotinas… isto tudo são fatores de stress que, de forma acumulada, podem funcionar como vulnerabilidades para aparecerem perturbações ou para se agravarem perturbações já existentes.

E o que é acontece? Do ponto de vista do funcionamento humano, é muito difícil gerirmos factores de stress que não têm uma dimensão temporal fixa. Uma coisa é dizerem-te: "Vais correr uma maratona, podes partir-te todo, vai ser difícil, mas sabes onde está a meta." Mas estamos a viver numa zona muito difícil porque houve um vislumbre de meta que não sabemos onde está. Começámos a pôr balizas na cabeça, ajudou porque as pessoas conseguiram gerir alguma incerteza, mas depois perceberam que não havia baliza e não sabes quanto tempo é que vai durar.

Uma das questões centrais no stress é a nossa percepção de controlo. Se estou perante uma coisa muito grande e muito incerta e não consigo perceber uma lógica temporal e como vou funcionar, agrava-se a resposta de stress. E o mais difícil é a tendência humana para olhar para questões sobre as quais não temos controlo. Qualquer psicólogo vai dizer: vamos partir uma coisa gigante em pequeninas fatias que sejam comestíveis e vamos ganhar uma perceção de controlo, mesmo que não se tenha controlo nenhum. É absolutamente essencial. Só começamos a fritar quando a nossa percepção de controlo começa a baixar e começamos a ter dificuldade em gerir vários blocos que permitem que a resposta de stress agudo não se comece a tornar numa resposta de stress crónico.
A ansiedade é mais comum?
Habituamo-nos a chamar stress a tudo o que é ansiedade e são categorias distintas. Todos temos ansiedade, em maior ou menos grau, mas funcionamos com essa ansiedade, depois temos a possibilidade de ter perturbações ansiosas, como a ansiedade social ou as perturbações de pânico, até fobias específicas como a claustrofobia e esse tipo de coisas. E depois temos as depressões de humor e a depressão, que tem várias formas.

No stress falamos de desafio, adaptação, mudança, capacidade de reação e perceção de controlo sobre o que nos está a ser pedido. A ansiedade é uma emoção relativamente normal em todos nós e é a antecipação de um perigo que não existe. A nossa resposta física é muito semelhante à do medo. O medo é uma resposta normal a um perigo real e que está à nossa frente, a velha história do urso que está esfomeado e quer-me comer, é uma reação a uma questão que está ali, vivida, bastante clara. A ansiedade é a nossa construção de possibilidade ou potencial de perigo que não existe, uma preocupação que começa a gerar questões "será que" ou "e depois": E depois da pandemia, será que serei suficientemente bom para ficar na empresa? Eu e a minha mulher vamos superar isto? Será que vai traumatizar os miúdos? Começam as perguntas muito abertas típicas da ansiedade, as pessoas começam a pôr questões sobre si próprias que não são para serem respondidas, de facto, estão a ser trazidas a reboque da ansiedade.
Questões existencialistas para uma vida inteira.
Isso é o mau sinal. Se há coisas que nós sabemos do ponto de vista psicológico é que quando existe forte instabilidade emocional convém focarmo-nos no que dá controlo e estabilidade e na capacidade de resolução de problemas concretos, em vez de abrir espaço a frentes de combate impossíveis de combater. Ajudar as pessoas é dizer-lhes: "Cuidado, essas questões têm a ver com o que estás a experienciar neste momento, não ajudam na tua decisão, ainda mais nesta fase".

As preocupações são uma espécie de clique que nos leva para a ação, como tudo, é para isso que servem, para implementar um plano de resolução do problema. Quando damos por nós em questões existencialistas significa que não estamos a movimentarmo-nos no sentido adaptativo, a angústia que está a ser gerada por essa pergunta não tem um plano ou uma tentaiva de definição ou resolução do problema, está a dizer: deixa ver se sinto que isto é a coisa certa. Normalmente temos muita dificuldade em fazer um check e dizer: sim senhor, está aqui a decisão certa. E é tendencialmente mais depressivo quando começamos a ruminar sobre escolhas que fizemos lá atrás. Se a preocupação é a amiga favorita da ansiedade, a ruminação é a amiga favorita da depressão, isto em traços muito largos.
E a depressão é a linha vermelha preocupante?
São tudo coisas paralelas, não há uma gradação propriamente. O stress é o empurrão para a zona de ansiedade ou de depressão que possa surgir, o organismo pode responder e ficar muito perturbado. Estás há três meses constantemente preocupado com a tua vida? Sentes cansaço, tensão muscular, tens tido problemas gastrointestinais? Não te consegues concentrar nas coisas? É muito provável que tenhas uma perturbação de ansiedade generalizada. O tempo, a frequência e a intensidade dos sintomas são os critérios de diagnóstico. Estar chochinho é comum, mas se há seis meses que as atividade que te davam prazer já não te dão, se te sentes desconectado… são indicadores de que se pode ter uma depressão instalada. E que pode ser moderada, as pessoas associam sempre a depressão a coisas muito intensas.

Neste momento particular da pandemia, existe agravamento do processo depressivo fundamentalmente pela retirada dos elementos protetores, sentimo-nos deligados porque não estamos a ser capazes, mas porque nos estão a ser retiradas, consecutivamente, coisas que nos permitiam ter prazer e bem-estar. Por exemplo, as pessoas que vivem sozinhas, como é que elas estão a lidar com o facto de estarem permanentemente sozinhas? E o humor pode ter variações e começar a entrar em declínio.
A primeira fase do confinamento até soube bem: o sono em dia, a casa arrumada, tivemos o tempo que nunca temos…
Na primeira fase também veio logo o verão, que foi uma descompressão. Tinhas mais pessoas com as garras de fora, estávamos em modo ameaça, agora estamos um bocado esvaziados. Agora estou fartinho, já não há mais nada para reinventar ou para me entreter, já foi com a primeira vaga. Inventar coisas para fazer é protetor, enquanto formos capazes de inventar estamos ligados: encontrar espaços e coisas que nos permitem manter a sensação de ter um determinado propósito, mesmo que pequenino. A percepção de controlo e a necessidade de criar rotinas, do cuidar, da sensação de estar bem, o exercício físico e o sono são fundamentais para gerir o stress, que depende muito da fisiologia.

O risco é de quem começa a ficar esgotado deixa de promover espaço para criar, de contacto e de ligação, o happening. Do ponto de vista do humor é tudo o que tenha a ver com ligação, nem que seja as tertúlias às quartas, todos em Zoom com um copo de vinho, está ótimo, é uma reinvenção da ligação social. Ou, com os miúdos em casa, vamos todos ao cinema ao sábado: fecham-se as luzes, imprimem-se os bilhetes, temos lugares marcados, fazem-se pipocas. Isto é um happening que nos mantém ligados a coisas que nos dão prazer, estamos a proteger o nosso humor. Coisas como ir ao supermercado hoje é um happening, de repente vou-me arranjar para ir ao supermercado.
E usar batom debaixo da máscara.
É isso! Indicadores que evitam começarmos a derrapar, não posso deixar cair os mínimos, os meus hábitos, tenho de garantir a sustentabilidade do sistema. Portanto, vai trabalhar, arranja-se, vai tomar banho e não há cá pijamas, não pode, está proibido! Porquê? Para criar zonas de transição e dizer: este é o meu espaço de trabalho, vou com uma determinada atitude. Vou cuidar de mim. Para quem? Para mim. E mesmo que esteja em confinamento, é importante ter contacto com o espaço exterior, não passar uma semana enfiado em casa ou dois dias sem tomar banho e nem dar por isso. Parece óbvio, mas há muita gente a fazer o oposto e a ter hábitos pouco protetores do humor que se vão instalando de forma insidiosa, e esse é o grande perigo. Ninguém acorda um dia e diz: "Estou deprimido, estou desgraçado, fui dormir e acordei assim". Este é o problema das perturbações psicológicas, é não olharmos para elas com traumatismo como olhamos para uma coisa evidente como um enfarte. Por isso, no diagnóstico pomos uma baliza temporal: há quantos dias não tomo banho? Muitas vezes a narrativa é contada depois e não durante o processo, porque as pessoas não percebem o que lhes está a acontecer.
Entre outras formações, dá workshops de mindfulness, uma técnica inspirada na meditação que mostra a importância de estar aqui e agora.
A prática do mindfulness é um hábito de reconhecimento. O estar em casa agrava ainda mais os pensamentos em piloto automático, ou seja, temos poucos espaços para nos lembrarmos de que estamos a insistir e a ir permanentemente atrás daquilo que a ansiedade ou o humor depressivo está a atrair. Eu diria que é a capacidade de estar naquelas que são as atividades do momento presente, e a prática da meditação serve para identificar a qualidade dos pensamentos: em que é que isto me está a ser útil? Ver as notícias ajuda-me? É a consciência do que é que estou a fazer comigo neste momento, e de que forma é que isso tem impacto em mim. Estou mais ansioso? Em que é que pensei que me deixou assim? Deixa-me respirar fundo ou ir ali à janela ver passar um passarinho, e outro passarinho, ancorar-me no momento presente em vez de estar sempre a pensar quando é que isto acaba. Não é negação do sofrimento, estamos todos a sofrer e numa zona de grande imprevisibilidade, mas é mais importante termos todas as competências a funcionar para cuidarmos de nós a cada momento. E neste momento é ainda mais importante um exercício de consciência diário.
