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Histórias de Amor Moderno: “Disse-lhe que não gostava que ele me obrigasse a esse tipo de coisas, que me tinha sentido forçada a fazê-lo”

“O único método contraceptivo que usámos foi aquela prática antiga de que falávamos nas aulas de ciência, o coito interrompido.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

"Com o Micael fiz tudo. Não o fiz da maneira mais correta, nem tão pouco da mais prazerosa"
"Com o Micael fiz tudo. Não o fiz da maneira mais correta, nem tão pouco da mais prazerosa" Foto: "Fear" (IMDB)
02 de agosto de 2025 às 08:07 Maria Olívia Sebastião

O meu pai cruzou com estridência os talheres sobre o prato ainda cheio. Estava aborrecido, chateado com aquela conversa. “Esta casa não é nenhuma boîte, muito menos um bordel!” Dito isto, atirou o guardanapo para cima do prato - a minha mãe olhava-o com espanto, sem uma palavra, olhos muito abertos - e levantou-se. Foi-se embora.

O meu pai era um homem educado. Morreu cedo, há 8 anos. Não tinha ainda chegado aos 60. Não se pode dizer que fosse um velho, uma pessoa antiga, nem sequer à antiga. Mas havia assuntos que ele não tolerava à mesa. Sexo e sexualidade, sob que forma fosse, eram absolutamente proibidos. “Esta casa não é um bordel”, assim acabava invariavelmente a sua curta e definitiva intervenção sobre o tema.

Esta postura do meu pai teve consequências. Lá em casa, e após várias tentativas de abordar estes temas que invariavelmente eram condenadas ao silêncio púdico, deixámos de tentar falar sobre o assunto. Sexualidade era tabu.

Eu, a mais velha de três irmãs, fui quem mais sofreu com isso. Mas também as minhas irmãs foram muito prejudicadas e privadas do acesso a noções básicas, embora tenham beneficiado da minha experiência - toda ela adquirida à base da tentativa-e-erro, mais as migalhas que aprendia nas aulas de biologia ou ciências naturais acerca dos aparelhos reprodutores -, que eu partilhava com elas em segredo, em confidências de sussurros. Sim, porque mesmo que o meu pai não estivesse em casa, a minha mãe assumia o papel de guardiã dos bons-costumes: não queria conversas daquelas.

Tive o meu primeiro namorado aos 15 anos. Não falo de “primeiro namorado a sério”: primeiro namorado de todos e de todo o tipo. Nunca antes tinha dado um beijo até andar com o Micael. Nunca antes tinha tocado o corpo de alguém. E nunca antes alguém tinha tocado no meu, muito menos daquelas maneiras e naqueles sítios.

Em suma, quando começámos a dar beijinhos nos intervalos do liceu, abriu-se todo um novo mundo para mim, que eu desconhecia quase em absoluto. O que eu sabia acerca de namoros e relações era o que , ou que tinha ouvido colegas mais emancipadas contar umas às outras - nunca a mim, porque eu ficava de parte desses grupos femininos, ora porque me auto-excluía, ora porque me excluíam elas.

O único aspeto positivo desse fechamento que existia em casa era a possibilidade - e a necessidade - de contar às minhas irmãs o que ia acontecendo, que sumarentas aventuras tinha vivido, que novas descobertas tinha feito explorando esse universo em que a química e o físico fazem com que homem e mulher, especialmente se estiverem no pico adolescente da produção hormonal, cometam erros e arrisquem sem necessidade. Tudo é saboroso, tudo é cheio de fogo, paixão e desejo, tudo é instintivo. E tudo tem um preço.

Com o Micael fiz tudo. Não o fiz da maneira mais correta, nem tão pouco da mais prazerosa. Não tomámos as precauções que devíamos nem nos explorámos no recato de um quarto ou no conforto de uma cama. Amámo-nos por onde calhou, por onde foi possível. No carro de um amigo, numa casa de banho de um bar, num caminho escuro e pouco frequentado, detrás de uns prédios no limite do bairro.

Por sorte, não engravidei nessa altura. Mas foi só por sorte. O único método contraceptivo que usámos foi aquela prática antiga de que falávamos nas aulas de ciência, “o coito interrompido era muito usado antigamente, mas não era muito fiável, era pouco seguro”, explicava a professora. Contudo, era o que havia, parar o carrossel no momento certo e rezar para que tudo tivesse corrido bem. Nem tudo correu, como vim mais tarde a descobrir, mas pelo menos não fui mãe aos 15 anos.

Eu e o Micael acabámos tudo ao fim de mais ou menos um ano de namoro. Certa noite em que ficámos no banco de trás do carro do irmão dele, ele quis fazer uma coisa que eu não queria. “Assim, podemos ir até ao fim”, dizia ele. Acabei por ceder, mas não foi bom. Quando contei às minhas irmãs, ficaram chocadas - e a mais nova um pouco enojada. , disse-me. Mais tarde, vim a confirmar que tinha toda a razão.

Falei com o Micael e disse-lhe que não tinha gostado do que tínhamos feito e que não gostava que ele me obrigasse a esse tipo de coisas, que me tinha sentido forçada a fazê-lo. Respondeu-me que “tudo bem, de qualquer modo não és nada de jeito, encontro por aí muito melhor”. Foi a penúltima vez que falámos.

A última vez que falámos foi mais ou menos dois anos depois. Nessa altura, eu namorava com o Tiago. Eu e o Tiago tínhamos uma relação boa, saudável, diferente daquela que tivera com o Micael. Mesmo a forma como tínhamos relações era diferente, mais carinhosa, mais confortável, menos clandestina. Os pais dele não se importavam que ele me levasse lá a casa e isso permitia-nos ter privacidade e um ambiente tranquilo.

Ao fim de alguns meses de namoro, o Tiago ficou muito preocupado com um sinal estranho que lhe apareceu. Uma espécie de verruga - no pénis. Alarmado, contou à mãe. A mãe, em pânico, marcou consulta. O diagnóstico: HPV. “O médico diz que, se eu tenho, o mais provável é que tenhas também”, disse-me o Tiago. Só que era impossível falar com a minha mãe sobre o assunto, pelo que pedi à mãe do Tiago se me podia marcar uma consulta. Perguntou-me quem era o meu ginecologista. Disse-lhe que não tinha um. “Quando foi a última vez que foste vista?” Fiquei embaraçada e não consegui responder, senti-me sozinha. Intimidada. Abraçou-me, foi muito carinhosa comigo e disse-me “não te preocupes, vou marcar com a minha médica”.

No final da, a médica explicou-me o que é o HPV ou Vírus do Papiloma Humano. Era o que eu tinha. “É preciso muito cuidado e muita atenção à evolução”, disse-me. Acrescentou que “o HPV é uma das principais causas de muitos males bem mais graves do que o aparecimento de verrugas genitais - estou a falar de cancros relacionados com o aparelho reprodutor feminino, por exemplo”. Apeteceu-me chorar. Quando me disse que devia ter cuidado sempre que mudava de parceiro, perguntei-lhe o que queria dizer com isso. “Teve muitas relações desprotegidas?”, perguntou. Disse-lhe que não, que o Tiago era o meu segundo namorado. “Então, fale com o seu companheiro.”

Assim fiz, falei. Garantiu-me que eu era a primeira pessoa da vida sexual dele. O Tiago não mentia. Só restava uma explicação: o Micael. Fui falar com ele, confrontei-o com a situação, pedi-lhe explicações. Não confessou tudo, mas disse-me que sim, que tinha tido outras mulheres. Perguntei-lhe quem, não respondeu. “Prostitutas, Micael?” Fechou-me a porta, foi-se embora. Nunca mais falámos na vida - nem quero -, pelo que nunca saberei a resposta, mas as pistas apontam numa direção, como é evidente.

A minha doença não tem cura, segundo os médicos. Posso tratá-la, reduzir os efeitos, e . Mas carregarei este fardo para o resto da vida. E só depois de ter sido infetada fiquei a saber uma série de coisas. Por exemplo, que podia ter tomado a vacina contra o HPV. Revoltou-me sabê-lo e ser demasiado tarde. Porque é que ninguém me disse? Porque é que nunca me instruíram, nunca explicaram?

Só depois da morte do meu pai ganhei coragem para contar à minha mãe o que me acontecera. Expliquei tudo abreviadamente, não detalhei em demasia. “Fui infetada pelo Micael, vou ter isto para sempre”, disse-lhe. Respondeu-me com duas frases, severamente ordenadas: “Primeiro, não quero conversas dessas aqui em casa, que as tuas irmãs podem ouvir; segundo, não tinhas nada que andar enrolada com os rapazes.” E nunca mais tocámos no assunto.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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