Melânia Gomes retratada em exposição sobre abuso infantil: "Não se iludam, porque não há caras de agressores"
A atriz portuguesa é um dos rostos de "Shame - European Stories", com testemunhos reais de vítimas de abusos sexuais, físicos e de maus-tratos na infância.
De nacionalidades diferentes, com idades diferentes, em contextos diferentes, mas semelhantes. O que têm as pessoas retratadas na exposição Shame - European Stories em comum? A memória do abuso e dos maus-tratos dos quais foram vítimas na infância e o trauma que terão de carregar uma vida inteira, mesmo depois de muitos anos de ajuda, mas também uma sede por justiça e de abrir os olhos ao mundo, de consciencializar. São várias as histórias de quem deu o rosto a esta exposição, com testemunhos de quase 100 vítimas de abuso infantil em toda a Europa captados em fotografia e vídeo pelo fotojornalista Simone Padovani, atualmente a decorrer no centro Piso 1 do Centro Comercial Colombo, em Lisboa.
"A exposição fotográfica surgiu com o objetivo de interpelar todos sobre esta realidade que ainda nos custa encarar", explica Lúcia Mittermayer Saraiva, advogada e consultora técnica do Instituto de Apoio à Criança (IAC) no projeto Justice Initiative Portugal, promovido pela Fundação Guido Fluri. "Ao dar a cara, a vítima/sobrevivente (há muitas que preferem ser chamadas sobreviventes), passa uma mensagem muito forte no sentido de dizer ‘eu não sou um número, uma estatística, eu sou uma pessoa e a minha dignidade humana foi violada na minha infância’ enquanto era, para efeitos legais, sujeito titular de direitos especialmente vulnerável."
Melânia Gomes conhece esta realidade. Em março passado, a atriz portuguesa revelou que foi vítima de abuso sexual em criança, em contexto familiar, e que quando pediu ajuda ninguém fez nada com esperança que ela esquecesse o que tinha acontecido. Mas não esqueceu. À Máxima, a atriz de 38 anos revelou que após a entrevista que deu no programa Alta Definição, da SIC, recebeu milhares de mensagens de pessoas com histórias semelhantes à sua. "Eu sabia que a realidade era esmagadora e que os casos eram muito piores do que se sabe, mas mesmo assim fiquei surpreendida", confessa. Foi no decorrer de todo este boom que Melânia conheceu o trabalho da Justice Initiative, do IAC e da Fundação Guido Fluri, e dos depoimentos que Simone Padovani estava a recolher. "A minha decisão de falar publicamente sobre isto foi pensada, foi ponderada. Pode parecer que não, que sou muito espontânea, mas não sou, eu penso muito [antes de fazer alguma coisa] e sou mãe. Achei que era importante, era a altura certa, não se pode falar disto só de 20 em 20 anos", defende.
"Claro que, como disse aqui outra sobrevivente [durante a apresentação], a ferida não passa, mas é possível chegarmos ao estado de cicatriz. A cicatriz lembra-nos que algo aconteceu, e é nesse estado que penso que me encontro, e que me permite falar sobre isto. Chamar a atenção, acordar as pessoas de que isto pode acontecer em todo o lado e a qualquer pessoa. Acontece muito mais do que as pessoas imaginam."
Grande parte destes crimes acontece em espaços à partida seguros, em contextos de grande proximidade e confiança da família e/ou da criança: em família ou amigos da mesma; na escola com professores, cuidadores ou auxiliares de educação; em instituições de acolhimento, como foi o caso de Marco; ou em grupos de pertença como a Igreja, como foi o caso de Filipa, portugueses que também partilham as suas histórias na exposição. "Nunca esquecer que estamos a falar de predadores que estudam hábitos e comportamentos da criança e atuam de forma inteligente para garantir o silêncio da vítima. Normalmente, os abusadores são pessoas de quem não se desconfia e por isso a criança fica ela mesma confusa sobre se sofreu um abuso ou não", esclarece Lúcia Mittermayer Saraiva, que sofreu uma tentativa de abuso sexual a caminho da missa, já em adulta, uma memória que vai carregar para sempre.
À confusão e ao medo juntam-se a vergonha e o sentimento de culpa, que muitas vezes impede as vítimas de confrontarem os seus predadores. "Vejam a história recente da Igreja em que a maioria desejou ser anónima. O Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude tentou passar uma mensagem forte, ao receber as vítimas no primeiro dia em que chegou a Portugal. Essa atitude foi dignificante para todas, pois foi reconhecido por ele que este é um assunto que deve merecer uma escuta e atenção prioritária. Mas o medo e a vergonha são dois aliados muito confortáveis para os abusadores e, por isso, são por eles alimentados. Muitas vezes, com ameaças concretas (exemplos: 'se disseres a alguém meto as tuas fotos na tua rede de amigos e família'; 'acuso-te de difamação'; a' culpa foi tua, tu gostaste e não recusaste'), desta forma garantem outro elemento fundamental deste ecossistema: o silêncio das vítimas e dos que a rodeiam", afirma a advogada.
A exposição "Shame - European Stories" vai estar no Centro Comercial Colombo, em Lisboa, até 31 de agosto.
Foto: Simone Padovani/Guido Fluri Foundation
São traumas que alteram para sempre o futuro das crianças que os sofrem. "Mesmo que não haja consciência total do que está a acontecer ou do que aconteceu uma vez, ela tem necessidade de acompanhamento nem que seja no futuro, na idade adulta ou na adolescência quando se apercebe realmente de que foi vítima. E esse processo pessoal é fundamental para a reparação do dano e do trauma. Esta exposição é um passo importante para a prevenção, sensibilização e informação da sociedade civil. No sentido de entender que em todos os contextos é fundamental a escuta atenta, e a abertura ao diálogo por parte dos adultos em relação às crianças. (...) Os adultos não podem minimizar nunca este tipo de denúncias verbais ou não verbais", avança Lúcia num apelo que também Melânia defende com garra.
Em fevereiro, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa concluiu que perto de cinco mil rapazes e raparigas terão sido vítimas de abuso desde 1950, a maioria com idades entre os 10 e os 14 anos.
Foto: Simone Padovani/Guido Fluri Foundation
"Se uma criança pedir ajuda, ela deve ser acolhida e não ter a clássica pergunta ‘tens a certeza?’, porque muitas delas ensaiam durante anos esse pedido de ajuda, e hoje em dia, com toda a informação gratuita que existe sobre o tema… A educação sexual também deve ser ensinada desde cedo às crianças, (...) para elas perceberem quais são os toques bons e os toques maus, quais são as suas partes íntimas, que só eles podem mexer aí", que não podem mexer nas dos outros. "A educação sexual, estruturada, tem de ser adequada à idade da criança, deve ser feita em casa, deve ser acompanhada nas escolas, nas creches, toda a gente deve ter a mesma linguagem comum, porque se alguma coisa acontecer fora da regra, elas vão perceber que algo está errado e vão pedir ajuda. Então a mentalidade tem de mudar, tem de haver esse cuidado, esse respeito."
E isto também vale no que toca à violência. "As palmadas, os castigos, todo esse desrespeito com o corpo da criança, validam abusos no futuro, validam as ameaças que os predadores fazem. E não se iludam, porque não há caras de agressores. Normalmente até são sempre pessoas muito simpáticas, muito respeitáveis", alerta a atriz.
Ensinar estas coisas é a mesma coisa que ensinar o "não metas o vidro na boca que te cortas" ou o "não mexas no fogão". "É mesmo básico, podemos fazê-lo sempre, mesmo com os bebés. ‘Olha vou lavar-te os dentes’ ou ‘vou escovar-te o cabelo com cuidado’, não é com puxões, porque não podemos normalizar a dor e o sofrimento" dos nossos filhos. "A responsabilidade começa no adulto", afirma, tanto na vida real como na digital. "Atenção, não partilhem imagens dos filhos nas redes sociais", apela ainda. "Eu fiquei chocada, não sabia, mas existem manuais na dark web a ensinar como é que os predadores se devem aproximar das crianças, é doentio, e a petição [da Justice Initiative] pretende terminar com todo este tipo de material online."
A realidade em Portugal
"Há ainda um longo caminho a percorrer. Mas passos muito importantes já foram dados, inclusive, com o apoio do IAC. Porém, devo dizer que raramente tenho visto os tribunais dar o devido valor às vítimas como sujeitos indispensáveis à descoberta da verdade no processo. Ainda estamos a anos luz de um verdadeiro respeito pela dignidade de qualquer vítima de um crime, em Portugal!", defende Lúcia.
Foi apresentada ao Conselho da Europa uma moção para estabelecer um padrão mínimo para lidar com o abuso nos estados membros assente na verdade sobre os abusos infantis, reconhecimento oficial, formas de reparação e prevenção, uma réplica da iniciativa lançada e bem sucedida na Suíça pela Fundação Guido Fluri. Um dos pontos-chave da iniciativa é o fim da prescrição deste tipo de crimes, uma vez que o tempo de cada vítima é diferente. Em junho, o Público noticiava que o Parlamento tinha aprovado uma proposta de lei do Governo que visava aumentar a prescrição dos crimes de abuso sexual de menores e de mutilação genital feminina dos 23 para os 25 anos da vítima, sendo que o prazo apenas começa a contar a partir dos seus 18 anos.
A exposição Shame - European Stories está aberta ao público no centro comercial Colombo, em Lisboa, até 31 de agosto. Mais informações sobre a petição online disponível aqui e sobre a moção apresentada aqui.
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A medida pretende acabar com os inúmeros casos de bullying que têm assolado o país. Em março de 2022, a prática foi considerada uma infração punível com até dez anos de prisão em França.