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Atual

O novo moralismo

“A sociedade adora pessoas mansas, que encaixam, um bom público sorridente e solícito. Por isso é corajoso, sexy até, ser-se politicamente incorrecto e o tresmalhado do rebanho.”

Foto: Getty Images
27 de abril de 2021 às 16:22 Patrícia Barnabé

Digo o que penso porque sempre quis receber essa verdade dos outros. Adoro pessoas que não fazem sala para além da gentileza fundamental, adoro ainda mais o sentido crítico e de observação mordaz que não tem medo de falar sobre temas desconcertantes e polémicos. Nunca perguntem uma opinião que não querem ouvir, com o que isso tem de frágil, de humano, até de errado – mas de nobre. Dizer o que se pensa, no lugar e no tempo certo, é uma grande generosidade, ainda que para a maioria esta não pareça especialmente divertida. São as pessoas mais confiáveis que tenho conhecido, normalmente não se amanhece com uma faca nas costas ou a fazer o que eles querem. Os desbocados são mais livres e dormem noites descansadas. É claro que a liberdade tem um preço, e é alto, como tudo o que é bom. "A vertigem da liberdade", como escreveu Soren Kierkegaard, pode ser viciante e inspiradora.

Cresci numa casa onde não há segredos, para além dos naturais, naturalmente, nem meias verdades. Por isso, sempre admirei a franqueza, o debate de ideias para o qual fui estimulada - saber que crescemos e evoluímos na reflexão, mas também a pensar alto uns com os outros. A sociedade continua a valorizar o parecer e quanto mais codificados, mais os meios se parecem com aldeias. Não no seu encanto, mas na sua cristalização. Numa edição passada do semanário Expresso, Miguel Poiares Maduro escrevia sobre o fetichismo político da estabilidade, que em nada promove o desenvolvimento (Portugal está no 15º lugar do ranking da estabilidade política, a Holanda no 43º e a Alemanha no 60º e Israel no 193º). E isso é verdade para a sociedade em geral, seja em equipa ou em casal. A estabilidade não diz nada do sucesso, muito menos da felicidade.

A sociedade adora pessoas mansas, que encaixam, um bom público sorridente e solícito, que nunca levanta ondas ou faz perguntas desconfortáveis. E os pilares sociais do Estado, da Igreja, da família e da escola ajudaram a educar gerações e gerações para a pertença, não para a independência; para a formatação não para a criação; para o preto ou branco, não para infinitas nuances do cinzento. Por isso é corajoso, sexy até, ser-se politicamente incorrecto e o tresmalhado do rebanho.

E agora ainda é mais. Atravessamos uma era de moralismo pobre, que nem a pandemia parece suavizar. Vindo da opinião geral e generalizada das redes sociais, que nunca pensou real e profundamente sobre muitos temas, mas adora uma boa escaramuça de secretária. Marguerite Yourcenar é que dizia: "Exagerais a hipocrisia do homem. A maioria pensa demasiado pouco para se dar ao luxo de pensar a dobrar". Mas eu que gosto de acreditar, de nivelar por cima as qualidades dos outros, até para as perceber melhor, acho que o pior destes debates de praça pública é a perda de tempo e o que se lhes escapa de humor (sarcasmo, então, é para esquecer). Lá está, o que vale é cair em graça. Mesmo que o espectáculo seja um pouco parvo, precisamos é de nos distrair das vidas duras que levamos. Para quê cansar neurónios a pensar porque é que são duras?

Foto: Getty Images

A internet trouxe um fascinante mundo novo, de acesso à informação, mas também uma horda dos fascinados de sempre à procura de tribuna ou palco. Há os que têm opinião sobre tudo, os entertainers que fazem vídeos óptimos e os mais perigosos, porque mais inteligentes: os intelectuais moralistas. Como se acham sempre do lado certo da vida, pimba de linchamento social e cultura de cancelamento. Que mais parecem vindos da idade das trevas, da caça às bruxas ou das ditaduras alimentadas por fulanizadores. Mas o escândalo anda aí à solta ao mais leve comentário fora do rebanho. E, no final, fica tudo nivelado por baixo, sem camadas, sem todo um prisma de pontos de vista,  

Mas multiplicam-se os debates, os opinadores de bancada, nascem podcasters debaixo das pedras – todos querem aparecer e dizer coisas, mesmo que banalidades. Assim nasceu uma nova vaga de candidatos a pensadores, mas que querem chegar a grandes conclusões, mas via corta-mato. A internet é uma cacofonia. Faz lembrar o momento em que todos passaram a escrever livros antes de ter coisas para dizer. Até seria enternecedor, não fosse pura vaidade ou vontade de se ser famoso por 15 minutos como vaticinava o rei das redes sociais Andy Warhol. Mas porque é que alguém quer ser famoso?

As grandes causas do momento, um grande bem-haja para elas que só pecam pela demora, nascidas de movimentos como o #metoo, contra o assédio sexual e o machismo e todas as formas de violência sobre as mulheres, da doméstica à profissional e velada socialmente (que traz atrás de si todas as questões de género, como se os homens não fossem um género também); ou o #blacklivesmatter, gritante depois da violência policial que matou George Floyd. Estes são os temas inflamados agora. O planeta e os animais também, mas ainda ninguém está realmente preparado para mudar hábitos na sua vida real – tenho longas conversas sobre bifes e alheiras de caça e sapatos a mais – por isso chutam-se as culpas para os governos e as grandes empresas, e a consciência fica mais tranquila. Sempre achei piada à priorização das causas, tipo porque é que os rapazes são mais anti-racistas do que feministas, por exemplo? Porque é que as crianças são mais protegidas do que os velhos?

Bom, antes existirem causas por ordem do que sem ordem ou sem existência sequer. É o que temos. E agora as causas nunca estiveram tão inflamadas. Deixa-me imensamente feliz, acho maravilhosa esta nova consciência da História, que nunca é muito bem contada, mas pergunto: o que fazemos todos os dias para mudá-la? Essa é a grande questão. Já não aguento a cultura do extremismo que não suja os sapatos para ver como é, de facto. Se calhar é defeito de jornalista que mete sempre o nariz, mas não é da bancada que se vê melhor o concerto, é lá à frente.

O que mais chateia no extremismo é que embora seja clarificador, e até activista, boa, não tende a ser construtivo, muito menos agregador. Logo, é ineficiente. Se lanças charme és machista, mas se és um imaturo mimado pela mãe já não és. Se gostas de cenas africanas, és cool, se gostas de cenas nórdicas, és elitista. Se não comes carne há anos há sempre alguém que te pergunta porque usas sapatos de pele ou se as couves têm sentimentos. E usa-se a palavra privilegiado por tudo e por nada. Quando, no fundo, o que devemos é trabalhar para sermos todos privilegiados, fazer tudo o que podemos e sempre que podemos. Porque o mundo muda-se com cada um de nós a mudar à nossa volta. A grande mudança começa aí, não na bravata de café ou no paleio das redes que normalmente acaba em gritaria extrema e ninguém se ouve, muito menos aprende ou resolve. Depois diz-se mal nas costas e fica tudo como está, à superfície, sem densidade ou futuro, tranquilo, preguiçoso e barrigudo como um lago cheio de crocodilos mas coberto de nenúfares. E a culpa é da sinceridade.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

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