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As chaves do reino: até onde vai a liberdade das mulheres sauditas?

Uma nova geração de mulheres sauditas pode trabalhar, divertir-se e, agora, até conduzir. Mas será esta liberdade recém-descoberta tudo o que parece?

Foto: Getty Images
04 de abril de 2019 às 15:44 Louise Callaghan

Desde que atingiu a puberdade, e muitas vezes antes disso, que os homens sempre disseram a Najlaa o que fazer. Os irmãos, o pai e os dois maridos sucessivos decidiram o que era melhor para ela. Mandaram-na cobrir o rosto com o niqab, um pano de chiffon negro com uma fita para cobrir a testa e dois fios para o atar atrás da cabeça. Quando queria viajar, diziam-lhe que sim ou que não e acompanhavam-na para o caso de acontecer qualquer coisa. Um dia, na passada primavera, ela decidiu que as coisas iriam ser diferentes. Aos 39 anos, iria sair à rua e mostrar o seu rosto em público.

Tudo começou com a filha Rama. Rama tem 14 anos e, nesse dia, tinha vestida uma T-shirt com o nome da revista californiana de skateboarding Thrasher, impresso com letras bem grandes, vermelhas e cor de laranja. O cabelo chegava-lhe às ancas em ondas frisadas sobre a sua abaya (um casaco comprido e largo usado pelas mulheres sauditas) bege, que estava aberta. Os seus óculos tinham armações circulares em metal. Rama disse à mãe que queria ir à Comic Con, um festival onde as pessoas se mascaram de personagens da banda desenhada ou de livros de fantasia, que iria ocorrer na cidade de Jidá, um afloramento cintilante na região de Hejaz, onde o Mar Vermelho se encontra com o deserto. Iriam sozinhas, sem acompanhantes masculinos. Rama dissera-lhe que havia uma secção reservada a mulheres. Havia, de facto, mas elas não ficaram lá. Foram para a zona mista, aguardando pacientemente em filas para cantar karaoke. À sua volta, passeavam raparigas vestidas de Harry Potter ("o manto é a única coisa que funciona como abaya, em termos de vestuário", disse uma) e várias extraterrestres. Algumas tinham maquilhagem esborratada no rosto, pois os guardas tinham-lhes pedido que a removessem. Estavam todas a divertir-se imenso. Raparigas guinchavam enquanto passavam a correr pelas bancas, agarrando-se umas às outras e sorrindo para os rapazes que usavam máscaras de Halloween cobertas de sangue. Música tocava. Homens e mulheres caminhavam lado a lado, comendo gelados. Najlaa sorria. Também estava muito nervosa. Vestindo uma abaya negra comprida e um lenço negro na cabeça, sentia-se nua sem o seu niqab. "Ela fez-me vir cá sem ele", disse Najlaa, acenando com a cabeça na direção de Rama, e levando novamente a mão à boca. "Estão todos a olhar para mim? Eu acho que estão todos a olhar para mim." "Está tudo bem", disse Rama, sorrindo. "Ninguém está a olhar para ti" E Najlaa subiu para o palco do karaoke.

O abismo que separa Najlaa e Rama é o abismo que separa o presente e o futuro na Arábia Saudita. Ainda há poucos anos, a mera ideia de uma mulher poder andar na rua sem os seus parentes do sexo masculino, com o rosto e a cabeça descobertos, vestida de feiticeiro (a magia é ilegal), ouvindo música, há muito considerada haram (proibida), e sobretudo cantando em público na Arábia Saudita teria sido considerada ridícula – tal como sugerir que o reino estava prestes a abrir uma sucursal da Wetherspoons [cadeia de pubs].

Durante grande parte do século passado, a Arábia Saudita tem sido um dos países mais isolados do mundo. Obsessivamente virado para dentro e fabulosamente rico, os seus dirigentes impuseram uma interpretação extremamente rigorosa do Islão que obriga à repressão e segregação das mulheres. Todas as mulheres, tenham cinco ou 50 anos, sejam estudantes ou médicas, têm um guardião que pode impedi-las de viajar para o estrangeiro ou de receber determinados tipos de tratamento clínico. Todas as mulheres usam a abaya, muitas usam o niqab e a esmagadora maioria, exceto algumas rebeldes, cobrem o cabelo. As regras foram aligeiradas nos últimos anos: sob o governo do rei Abdullah, que morreu em 2015, as mulheres começaram a trabalhar em lojas de lingerie e as leis de guarda tornaram-se gradualmente mais descontraídas. Desde o verão passado, porém, a mudança tem ocorrido a um ritmo nunca antes visto no reino, de uma forma que ninguém previra.

Quando o relógio atingiu a meia-noite no dia 23 de junho deste ano, vi as luzes de câmaras iluminarem os rostos de mulheres reluzentes de felicidade enquanto se sentavam atrás do volante dos seus veículos 4x4 e iniciavam lentamente a marcha. As filhas e amigos aplaudiam enquanto elas conduziam pela noite dentro, em Jidá. Uma mulher exigiu um café grátis num restaurante drive-through, com o carro cheio de parentes suas, todas a rirem-se perante a temeridade da situação. O homem que estava atrás do balcão tirou-lhes uma fotografia para enviar à mulher.

Alguns conservadores tinham previsto que pôr fim à proibição que impedia as mulheres de conduzir iria criar o caos nas estradas do reino. Pareciam ignorar, por completo, o facto de as autoestradas sauditas já serem altamente perigosas devido aos condutores incompetentes do sexo masculino. Em vez disso, tal como acontecera em todas as outras ocasiões em que os conservadores afirmaram que a modernização resultaria num colapso da sociedade ("Aconteceu a mesma coisa com os telefones com câmara", suspirou um amigo), correu tudo bem. Tão bem que até foi ligeiramente aborrecido.

As mudanças devem-se, essencialmente, a um homem: Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro, de 32 anos, que iniciou um projeto para remodelar o país. O monarca barbado aniquilou a oposição, aprisionando cerca de 200 dos cidadãos mais influentes da Arábia Saudita, muitos deles seus parentes, num hotel de luxo, em Riade, antes de alegadamente exigir somas elevadas em troca da sua liberdade. Até 2030, prometeu, irá revitalizar a economia dependente do petróleo da Arábia Saudita, construindo cidades de alta tecnologia no deserto para atrair investimento e aproveitando a energia solar para manter acesas as luzes do país.

Em setembro do ano passado, MbS, alcunha pela qual é conhecido, anunciou que as mulheres seriam autorizadas a conduzir. Em maio, porém, semanas antes de a proibição ser anulada, o governo ordenou a detenção das ativistas femininas mais conhecidas do reino, algumas das quais participavam, há décadas, em campanhas defendendo o direito das mulheres a conduzir. Para os observadores atentos à Arábia Saudita, as detenções não surpreenderam. MbS esclareceu, repetidamente, que não tem qualquer desejo de liberalizar a arena política saudita. Bem pelo contrário: com a sua subida em proeminência, dizem os observadores, o reino está a perder a governança de forma consensual. As decisões que costumavam ser tomadas após negociações demoradas com vários ramos da família são agora resolvidas através de uma conversa telefónica com MbS. Um homem, uma decisão. Ele pode ter-se reunido com Mark Zuckerberg, aberto salas de cinema e ditado que as mulheres não são obrigadas a usar a abaya, mas a liberalização ocorrerá a seu tempo. O entretenimento e as pequenas liberdades manterão a população feliz enquanto os preços do petróleo baixam, mas as detenções das ativistas pelo direito a conduzir tornaram bastante claro que qualquer pessoa que espere resultados das políticas de oposição do governo acabará atrás das barras.

Quando o pai, o rei Salman, nomeou MbS príncipe herdeiro, em junho de 2017, a Arábia Saudita já estava a mudar. Nos últimos anos, as ruas de Jidá e, em menor grau, de Riade, assistiram a uma explosão de tons de rosa e azul quando as mulheres penduraram as suas abayas pretas nos cabides, optando por versões pastel. Agora, muitas usam as abayas abertas, mostrando saias compridas ou calças de ganga skinny por baixo. Alguns estão a tirar os lenços da cabeça. No entanto, o príncipe foi ainda mais longe. Numa entrevista concedida a um canal de televisão norte-americano, este ano, ele disse que as mulheres eram iguais aos homens.

Se Mohammed bin Salman for bem-sucedido, reformulará o Médio Oriente. Se fracassar, toda a região ficará desestabilizada. No decorrer de várias visitas que fiz ao reino, este ano, falei com dezenas de sauditas – novos e velhos, homens e mulheres – sobre o que irá acontecer. Existem muitas dúvidas e críticas em relação às reformas. Mas houve uma coisa que se destacou acima das outras: esperança.

O centro comercial de Haifa, em Jidá, é um complexo iluminado com centenas de metros de comprimento, com uma atmosfera tão fria que congela o suor nos nossos braços. Tem lojas da Marks & Spencer, da New Look e da Starbucks. As mulheres fazem fila de um lado e os homens de outro para evitar qualquer comportamento imoral enquanto saboreiam bebidas. É o ponto de encontro mais popular da zona, cheio de grupos de raparigas risonhas com niqabs, experimentando coroas de flores e tirando selfies de grupo, e rapazes a pavonear-se como avestruzes.

Mais de 70 por cento da população da Arábia Saudita tem menos de 30 anos e quase todos estão mortos de tédio. Durante a maior parte do ano, está demasiado calor para se passar muito tempo na rua. Até este ano, não havia cinemas. Pratica-se segregação de género nos cafés e nos restaurantes. Logisticamente, é muito difícil conhecer pessoas do sexo oposto. Perante a ausência de parques, de concertos ou de clubes, vão para os centros comerciais: há sempre um pretexto para lá ir e evita-se o calor. Ao passearem pelo centro comercial de Haifa, os rapazes e as raparigas sorriem uns aos outros e, por vezes, param para trocar números de telefone ou perfis de Facebook. Outros recorrem a abordagens mais criativas.

"Eu tinha um amigo que se tornou motorista da Uber para poder conhecer raparigas", disse-me um representante de Relações Públicas com vinte e tal anos. "Uma vez, eu estava a conversar com uma passageira e ela perguntou-lhe: ‘Queres ir curtir para qualquer lado fora da cidade?’ E foram."

Acima de tudo, porém, os jovens sauditas vivem online. A Internet mudou as suas vidas para além do que é possível imaginar. Nos seus telefones, conversam até altas horas da noite, como qualquer outro adolescente. Descobrem as tendências de moda, as bandas musicais e os filmes ao mesmo tempo que o resto do mundo. E o mais importante de tudo: podem ser eles próprios. "Eu não sei o que fazia antes de ter um telefone com Internet", disse-me uma aluna de mestrado, com 27 anos. "Eu ficava sentada num sítio com ar condicionado e comia. Era basicamente isso. Não tinha amigos homens. Não sabia nada. Era tão estupidamente aborrecido."

Online, algumas raparigas que cobrem o rosto em público partilham fotografias suas vestindo calções e T-shirts. Experimentam técnicas sofisticadas de contouring com maquilhagem que aprenderam em tutorais do YouTube e criam álbuns inteiros de selfies. O seu cabelo é comprido como o das princesas da Disney. Nem aquelas que permaneceram cobertas resistem aos encantos das redes sociais. Algumas publicam fotografias com o rosto completamente obscurecido com um emoji sobreposto.

Para estas pessoas, as mudanças introduzidas por MbS salvaram-lhes a vida. Pelo menos, puderam começar a ir ao cinema, onde existe oportunidade para misturas de género furtivas, nas últimas filas. Acima de tudo, podem conviver em público sem temer a polícia religiosa que costumava mandar dispersar grupos de homens e de mulheres solteiros, e, por vezes, até separar os casais que caminhavam juntos na rua, interrogando-os individualmente sobre onde se tinham conhecido, quando se tinham casado e qual era a cor dos seus lençóis. Desde abril de 2016, quando MbS lhes retirou o poder para deter pessoas, os agentes policiais têm-se resignado a andar pelas cidades, mandando ocasionalmente uma mulher cobrir o cabelo. Frequentemente, são ignorados. No entanto, por mais rigorosas que as leis permaneçam, os jovens encontram sempre uma maneira de as contornar.

Enquanto música de ritmo latino toca no sistema de som, Ahmed, de 26 anos, dá mais um gole no seu vinho de tâmara caseiro. Esta sala, no apartamento de um amigo, é usada por ele e pelos seus companheiros para dar festas. Uma bola de espelhos salpicava de luz os sacos de batatas fritas, a televisão de ecrã plano e a garrafa de vinho solitária. "Existe tanta vontade de ir a festas", disse Ahmed. "As pessoas vão a festas durante o dia para as famílias não repararem. Costumamos acabar por volta das 11 horas. É pouquíssimo tempo quando estamos a tentar conhecer raparigas." A sala é completamente à prova de som para os vizinhos não se queixarem. Para Ahmed e os amigos, a maioria dos quais estudou nos EUA com bolsas de estudo do governo saudita, ir a festas é uma forma de aliviar o tédio do regresso a casa. Mas conhecer raparigas ainda pode ser difícil. Por mais liberais que muitos jovens sauditas sejam, as velhas convenções sociais ainda conservam a sua força. "Nos EUA há regras, sabes? Tipo, se conheceres uma rapariga e gostares dela, talvez durmas com ela e nunca mais voltes a vê-la ou talvez venha a ser tua namorada", disse Ahmed, batendo, ao de leve, com o pé no chão ao ritmo da música. "Aqui há tanta vergonha. As pessoas não sabem o que querem. Se dormires com uma miúda, ela pode nunca mais te falar só porque tem vergonha."

Na Arábia Saudita, a reputação é importante. A maneira como as pessoas falam sobre raparigas que fizeram coisas "vergonhosas", como falar com um rapaz que não é seu parente, faz-me lembrar a minha avó britânica. Para ela, a virtude era algo a manter e as "meninas como deve ser" eram pudicas e falavam baixo e delicadamente. O niqab é a derradeira iteração desta atitude. Para muitas famílias sauditas, cobrir o rosto é considerado uma forma de evitar a vergonha e preservar a reputação, e não um mero sinal de piedade religiosa. O mesmo se aplica aos maridos que querem manter a "integridade" da família pedindo às mulheres que cubram o rosto.

Nem sempre foi assim. Alguns Hejazis, que eram governados pelo império otomano até à Revolta Árabe, ocorrida na I Guerra Mundial, gostam de afirmar que o niqab é originário de Najd, a região central da Arábia Saudita, o lar e sede de poder da família al-Saud. No entanto, durante o seu governo, um artigo sobre vestuário que fora em tempos reservado à cultura beduína ultra-rigorosa generalizou-se pelo Golfo e grande parte do mundo. Conversei com mais de 30 mulheres, em Riade e em Jidá, em zonas ricas e pobres, sobre as razões pelas quais usavam o niqab. Três disseram-me que era por causa da sua religião – embora, evidentemente, a reação pudesse ser diferente se eu tivesse falado com mulheres que vivessem em aldeias. A grande maioria disse a mesma coisa: porque os irmãos (ou o pai) as mandaram.

Numa noite húmida em Jidá, na primavera passada, Haifa, de 25 anos, e as amigas estavam a caminhar no passeio junto à costa. Tinham vindo até à cidade para um casamento e sabiam que os irmãos só as deixariam dar uma volta para conhecer a cidade se usassem o niqab. Tendo em conta as circunstâncias, fizeram o que podiam com aquilo que tinham. Os olhos de Haifa estavam fortemente delineados com eyeliner. Todas as amigas tinham lantejoulas subtilmente cozidas às bainhas das suas abayas.

Durante alguns dias, em Riade e Jidá, usei um niqab. Não foi tão mau como isso. Quando olhamos para as pessoas que o usam, elas parecem marginalizadas. Contudo, quando estamos a usá-lo, sentimo-nos protegidas. As pessoas não olham para nós. Ainda ali estamos, mas estamos a esconder algo do resto do mundo. Nesse sentido, eu compreendo que uma mulher se possa sentir poderosa. Nora, de 34 anos, usou esse poder para ganhar um pouco mais de liberdade. Depois de ter vivido no Canadá, onde usava um lenço na cabeça e calças de ganga, mudou-se de volta para a Arábia Saudita. Queria trabalhar, mas estava preocupada com o falatório entre as pessoas da sua comunidade e com o assédio masculino. "Eu só uso o niqab no trabalho", disse, enquanto arrumava o balcão de maquilhagem de onde estava a dar formação às funcionárias. "Ninguém sabe quem eu sou, ninguém pode dizer nada e ninguém tenta incomodar-me." Outra amiga disse-me que só usa o niqab quando vai às compras sozinha e para evitar os parentes do marido.

"Podemos passar mesmo à frente deles e eles não fazem ideia", disse, rindo-se. Com ou sem niqabs, é nos centros comerciais e nos edifícios de escritórios do reino que residem as melhores esperanças para as mulheres sauditas. Quando o país tinha uma riqueza incomensurável em petróleo havia poucas razões para as mulheres trabalharem. Contudo, em 2015, quando o preço do barril de petróleo desceu para 50 dólares o barril, quando os sauditas tinham previsto que se manteria a 100 dólares, os dirigentes do reino começaram a perceber que o ouro negro, que compunha 90 por cento das exportações sauditas, não iria sustentá-los para sempre. Agora, as mulheres estão a ser empurradas para fora de casa, para a vida pública, por necessidades económicas – esperando que o mercado livre as liberte.

"Toda a gente precisa de trabalhar", disse Lamia Aleisa, de 23 anos, dona de metade da Lamb & Lu, um pop-up space e loja de joias sediada em Riade. "O estilo de vida com que fui criada só é sustentável numa casa com dois rendimentos. Estávamos a ‘viver na Lua’. Era ridículo viver com aquele tipo de subsídio governamental. Neste momento nós não somos uma sociedade produtiva e isso tem de mudar. Basicamente, nós fomos chamados à realidade e estamos a perceber isso." Tornou-se muito mais bem aceite entre as famílias sauditas que as mulheres devem trabalhar. No entanto, embora as mulheres componham mais de metade dos licenciados sauditas, um terço das mulheres em idade activa estão desempregadas – um valor cinco vezes superior ao dos homens. É um desafio gigantesco para qualquer governo, quanto mais para um que permite aos homens exercer controlo legal sobre as mulheres. Apesar de toda a retórica esperançosa e de todas as mudanças, a Arábia Saudita ainda não é um bom sítio para se ser mulher. A sua vida depende da sorte: se o pai ou irmão forem boas pessoas, deixam-nas fazer o que quiserem: podem trabalhar, viajar e, agora, conduzir. Mas se não forem, podem fazer a sua vida num inferno sem quaisquer repercussões.

Mesmo que as leis de guarda venham a desaparecer – e os boatos de bastidores indicam que isso vai mesmo acontecer – a cultura ultrapatriarcal saudita continuará na mesma. A palavra de uma mulher continuará a valer menos do que a de um homem. Devido ao extraordinário poder detido pelas famílias na Arábia Saudita, os parentes do sexo masculino continuarão a controlar as "suas" mulheres. "Se estiveres a ser espancada pelo teu marido e telefonares para a polícia, dizem-te que não podem fazer nada", afirmou-me uma mulher de meia-idade, em Riade. "Ou o teu marido pode dizer que estás a mentir porque és maluca. Mesmo que possas legalmente sair de casa ou casar-te, a tua família continua, na prática, a controlar a tua vida. O meu guardião é o meu filho. Ele tem 19 anos. Se um dia ele decidir que está zangado comigo, ou se eu não lhe der dinheiro ou se acontecer outra coisa qualquer, ele pode, simplesmente, impedir-me de viajar. É o meu próprio filhote. Não é de loucos?" Para uma proporção da sociedade saudita – é difícil avaliar a sua dimensão – esta é a ordem natural das coisas. A mudança, na sua opinião, não deve acontecer à custa dos valores tradicionais. "Eu não acho que seja boa ideia as mulheres conduzirem", disse Dalal Hazazi, de 38 anos, dona de casa num bairro de classe operária, em Riade. "Elas nunca o fizeram e vai ser difícil começar. Talvez seja bom para os não-muçulmanos, mas nós não deveríamos mudar."

As instruções impressas no bilhete do concerto eram claras: era estritamente proibido dançar ou abanar o corpo. Junto às bancadas, guardas do sexo feminino vestidas com abayas grenás examinavam o público, como numa versão muçulmana do Handmaid's Tale, procurando alguém que aplaudisse de forma demasiado ritmada. Todavia, os organizadores do evento não tinham avaliado bem quão excitadas seis mil sauditas poderiam ficar quando Tamer Hosny subisse ao palco. O cantor egípcio, vestido com um fato preto, percorreu o palco e apontou para o público: "Olá, Arábia Saudita!", gritou, antes de começar a cantar uma das suas – relativamente atrevidas – canções pop. Enquanto os homens presentes no espaço segregado estavam quase todos sentados em silêncio, filmando-se a si próprios ou a Hosny. As mulheres divertiram-se como se fosse o fim do mundo. O ar da noite ficou salpicado de luz quando levantaram os telefones e começaram a abanar o corpo. As lantejoulas das abayas, cuidadosamente escolhidas para essa noite rara, reluziam. Os seus olhos estavam carregados de pestanas falsas. Pensos aplicados sobre narizes recentemente operados [para atribuir traços fisionómicos mais ocidentais] estavam expostos com orgulho. Quando Hosny fazia pausas breves durante um coro, milhares de mulheres gritavam a letra da música e desmanchavam-se a rir. Uma a uma, começaram a aplaudir, levantando-se ocasionalmente dos seus lugares – fazendo as guardas correrem de um lado para o outro para as mandarem sentar-se. Também elas sorriam. Na Arábia Saudita, pouco mudou, de facto, para as mulheres. O governo permitiu algum entretenimento, pôs fim a algumas restrições e deixou as mulheres sentarem-se atrás do volante, mas permaneceu autocrático e extraordinariamente repressivo. Para algumas mulheres, porém, tudo mudou. Pela primeira vez, em muito tempo, há esperança. Eu não sei se estas mudanças serão para sempre ou se tudo vai voltar a ser como era antes", disse Noura, de 22 anos, enquanto os aplausos aumentavam. "Mas eu vou aproveitar. Vou aproveitar muito o que está a acontecer agora."

 

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