Crónica Saltos na Calçada

A ditadura da maioria ou o triunfo dos deslumbrados

Jojo Rabbit (2019).
Jojo Rabbit (2019). Foto: IMDB
18 de julho de 2023 Patrícia Barnabé

Sempre gostei da ideia de grupo, de equipa e comunidade, é onde estão os desafios e os afetos, o instinto mais puro e o nosso crescimento como seres humanos, já que não somos ilhas. É no grupo que acontece o debate, a discussão, a superação, a construção e a possível maravilha. Sou pessoa de pessoas, sempre trabalhei para e por elas, como convém à nobre profissão (em extinção) do jornalista, que muitas vezes começa apenas por ser um humanista feroz e um observador social, que depois se torna num agregador de memórias e civilização. Adoramos que as pessoas não sejam nada iguais, sejam estórias para contar, ideias que se partilham. Imagine-se sermos todos iguais, seria aborrecidíssimo.

Mas há um perigo nos grupos, quanto maiores eles forem. Quanto mais pessoas se juntam, mais baixam o denominador comum e os parâmetros da qualidade. Por isso, é cada vez mais difícil a qualidade e a sofisticação quando todos falam ao mesmo tempo. Até porque já sabemos que o bom gosto, muito menos a modernidade, provêm da maioria. Assim, numa era que apregoa, e bem, a alegria da diversidade e a possibilidade de todos aparecerem, onde fica a qualidade? Soterrada na uniformização?

Se não, vejamos. Diz-se que estamos mais variados no vestir, mas ou não ando nos sítios certos ou não vejo mais pessoas originais na rua do que viam nos excêntricos anos 80 e 90 e zero, quando os que saíam da caixa saíam mesmo. O estilo é personalidade própria e se existem mais pessoas independentes, isso não significa que pensem mais por si ou tenham mais coisas para dizer. Da mesma forma, nem tudo o que é novo é necessariamente um avanço social. E é fácil ver o recuo em tantos recantos. E não sei se tem assim tanta graça o mundo inteiro inspirar-se nos mesmos ícones de moda ocidentais, até porque a fábrica de ídolos estratosféricos do analógico, que têm estado todos a desaparecer entretanto, já parece ter fechado. Ainda assim, a cultura pop tem uma força agregadora que é a mesma que a mata a seguir.

Também estamos a construir cidades iguais umas às outras, tipo linha de montagem com os mesmos lattes, provavelmente comprados num Starbucks igual a todos os outros. Agora que estamos todos ligados por redes, estamos a perder a autenticidade a uma velocidade galopante. E quando se perde o autêntico, perde-se uma boa parte da graça. As redes socias, e a internet em geral, trouxeram uma nova e positiva democratização, claro, mas também baixaram consideravelmente os padrões, nivelando o discurso por baixo, para chegar a todos: bem-vindos ao mundo da sensação e do entretenimento, agora tudo pode ser vendido – daí o sucesso do influencing, que nada é mais do que uma montra viva que multiplica lucros. É uma retórica que nada distingue, distinguindo todos à molhada, numa espécie de olhar capitalista sobre o humano. The more the merrier the market.

Até gosto da ideia de dar às pessoas o que elas querem, volto à alma de jornalista, mas qual é a piada dos rebanhos irracionais, os que só lêem as gordas? E, pior, o amadorismo com que somos agora presenteados em todas as áreas? Que premeia, mais do que o talento ou o trabalho, os fascinados deste mundo que fizeram de tudo para lá chegar. Resta saber se bom. Agora toda a gente pode ser tudo, só porque gosta e lhe apetece. Tem um lado ótimo quando se descobre um ou outro talento, raro, o resto fazem lembrar uma época em que todas miúdas queriam ser modelos, e encheram os bolsos de pequenas agências que apareceram na altura para lucrar com o sonho e a falta de noção. Agora todos são fotógrafos, videógrafos, chefs, Djs, todos escrevem e entrevistam e fazem podcasts, todos fazem comunicação quando não sabem o que fazer com os seus cursos. Quanto mais gira for a área, mais fascinados tem à sua volta, traças à volta da luz.

Todos sabemos que demasiada oferta não promove melhores escolhas. As massas abalroaram o sistema, a minha alma punk gosta disso, mas o problema é que não se fez nenhuma revolução, como no século XX: não há mensagem, nem debate, nem se pregam valores mais altos. Nunca fomos tão pouco politizados, até superficiais, mesmo nas grandes causas. E o que é um perigo evidente na ascensão da extrema-direita. As causas estão todas aí, a fazer o seu caminho, agora mais às claras, obrigada deuses, mas as revoluções de hoje quase parecem brincadeira de meninos: todos a mandar bitaites atrás de uma máquina e tão poucas ideias. E enquanto a tecnologia galga a nossa vida ao ponto de mandar nela, a modernidade das cabeças ainda deixa tanto a desejar... Agora quer pertencer-se pela mesma razão que se vai aos festivais, onde a maioria não é fã de música sequer, quer festa e badalação, por isso, no pequeno Portugal, é tudo a meter cunhas para receber um bilhete de borla e os fãs das bandas que chegassem mais cedo.

Este "porque sim", sem noção, atributos ou critério, nem que seja à força e que tem invadido o mundo da moda de celebridades e ofuscados ao ponto de este estar a perder a graça, já para não falar do conteúdo, do talento e da arte. Uma das grandes conquista dos tempos modernos é a individualidade I don't give a damn, que quando pensa, pode ser arrebatadora, quando não pensa, é só mal-educada. Só perdoamos certas coisas aos génios e aos outros que fazem isto andar. A maioria de nós tem de "give a damn". Mas não, o pequeno palco das redes está a criar pequenos monstrinhos egoístas e desinteressados pelo outro. Nunca se viu tanto artifício e ambição desmedida, e tão cedo na vida. Parecemos todos correr à frente da iminência do fim do mundo.

Durante uma vida, ter um gosto diferente, ser original, era para os maluquinhos. Ter uma grande pinta era para quem tinha estilo, que não se ensina, só o gosto. Ter dinheiro também era só para quem tinha trabalhado – ou roubado – para isso. Agora todos querem ser tudo. E querem parecer diferentes só que se esquecem que sem conteúdo não há verdadeira originalidade. Podemos tentar fazer corta-matos, mas notam-se sempre os fios da marioneta. E não me venham com o discurso do privilégio, que hoje serve para tudo. E é outra forma de aplacagem, de nivelamento por baixo. Se não és verdadeiramente desgraçado, tens uma doença ou és uma minoria étnica, és privilegiado. E se os portugueses adoram a retórica da culpa. Quase que tens de pedir desculpa ao mundo por teres conquistado meia dúzia de sortes que, como sabemos, é trabalho. Já nem uma piada se pode atirar inconsequentemente, só pela graça infantil de se poder ser parvo – há sempre um escuteiro, um moralista, um teórico de bancada, alguém que se benze e encontra uma ponta de maldade no que se diz sem maldade alguma.

Vive-se um novo moralismo que é uma forma de pôr de parte todos os que não pensam como a maioria. Mais uma vez. Mata-se o diálogo e a diferença de opiniões, como se houvesse uma verdade suprema superior. Só que não é. A maioria das pessoas, venham de onde vierem, quando tocam ao de leve no privilégio fazem exatamente o que todas fazem. Basta observar os cantores de hip-hop a gritarem a dor do guetto em videoclipes que metem mega carros e iates e casas com piscina. Serão mais humanos e fraternos quando enriquecem? Melhor: conhecem algum ex pobre que não copie tudo o que os ricos são? Se conhecerem, apresentem-me que eu gosto de pessoas originais.

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