Miguel Flor, a moda como fonte da juventude
Miguel Flor é pivot central na moda portuguesa. Designer e diretor criativo, renova estéticas na revista Prinçipal e lança novos talentos, inspirado pela frescura da juventude. A ela dedica o seu primeiro livro de fotografia, Boys Appetite.

Raramente o vemos sob holofotes. Ora nos bastidores, ora na linha da frente, é uma personagem diáfana que gosta de estar em movimento, como o tempo, sempre a caminho de coisas novas. É, por isso, muito seguido pelas novas gerações, que são hoje "mega atentas", e não têm "medo em investir e apostar em quem está a começar, até me dá muito prazer", diz.
Miguel nasceu em Trás-os-Montes, na vila donde retirou o petit non Flor. Estudou design na Academia de Moda do Porto e arrebatou o primeiro prémio no concurso Sangue Novo da ModaLisboa, em 1996. Hoje é seu júri residente. Até finais de 1999 trabalhou na mirabolante Maison Margiela, em Paris, e no regresso criou a sua marca. Já nos anos zero, começou a desenhar para outras marcas, como a Vicri, e a dar aulas na Escola de Moda do Porto e na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. É nesta altura que começa a cruzar designers jovens e estabelecidos "para que possam comunicar, trocar aprendizagem". Em 2010 cria no Portugal Fashion a plataforma Bloom para jovens criadores. Hoje dirige a Prinçipal - Moda Portugal, uma revista de moda apoiada pelo Cenit, Centro de Inteligência Textil, bilingue, moderna, onde exercita o seu olho de curador e a fotografia mais arty. Deste último nasce Boys Appetite, editado pela Stolen Books, o ponto de partida para uma conversa de sofá, em frente a um chá de gengibre, na sua casa no Chiado, onde nos recebem chariots de roupa e uma selva de plantas.

Falas sempre na linguagem dos mais jovens, é uma vontade de abrir caminho?

No meu trabalho tenho muito esta coisa da fonte da juventude. É uma forma de me manter alimentado, uma base para a criatividade. Repara, o Karl Lagerfeld nunca foi datado. Estou sempre de olho aberto sobre tudo o que se está a gerar e vou sem grande medo ter com as pessoas encomendar-lhes trabalho. Por exemplo, para a Prinçipal, fizémos em tempos um calendário só com fotógrafos emergentes (exceto o Rui Aguiar, mas que tem já uma emergência dentro dele, e também se rodeia de miúdos), foi das primeiras vezes do Moura Simão, do Rui Palma, do José Pedro Cortes, que inspirou muito o meu trabalho. Gosto de não ter fronteiras. Da mesma forma que para o livro da Prinçipal fui buscar fotografias do Pedro Cláudio e da Inês Gonsalves [pioneiros da fotografia de moda portuguesa]. Uma vontade de saber, perceber e consumir imagem fez com que ganhasse esta cultura. A Prinçipal é a caixa de Pandora que me deixa fazer tudo isto, dão-me uma liberdade criativa muito grande, confiam no meu know-how. Muitas vezes perguntam-me: "Esta é a linguagem dos industriais?" Não, mas se a Prinçipal tem o objetivo muito claro de promover a moda nacional, tens de promovê-la numa montra internacional. Acabas por educar no bom sentido, não de uma forma pretenciosa. Quantas pessoas compram a i-D, a Hunter, a Muse e tantas outras revistas? Uma revista é muito diferente do Pinterest ou de uma pesquisa no Google, é um objeto com princípio, meio e fim, é um espaço, um contentor que percorres e percebes de outra forma, gosto muito disso.
É claro que a cultura visual e a fotografia cresceram contigo.
Entram na minha vida com a revista Bravo, a única que comprava em miúdo, vivia em Trás-os-Montes, não havia mais nada. Não percebia nada de alemão, mas descobria bandas como os Depeche Mode: "Deixa ver quem são estes que se vestem assim" E gravava cassettes, fazia playlists, esperava horas para que a música tocasse na radio para gravar, às vezes ainda se ouvia o locutor (risos). Eram os meus diários, o visual, o musical, nunca escrevi porque nunca tive jeito, e a música foi o clique para tudo, os vídeos, e o cinema, em geral. Depois quando comecei a estudar moda, obviamente que a minhas bíblias eram a i-D e a The Face, e dividi casa com o Fernando Bastos Ferreira [stylist] que comprava imensas revistas, e a Nana [Benjamim, maquilhadora]. Dividir casa com pessoas criativas é super importante. Tudo começou ali. E depois, obviamente, toda essa ideia do que é um autor. Apesar de gostar imenso do digital, não uso Pinterest, vou ao site dos próprios autores ou descubro-os em publicações, porque recebes aquilo que queres e não o que o motor de busca te quer dar. Gosto de ir à profundidade das coisas, os livros e o papel fazem-me mais sentido.


Como nasceu a vontade de fotografar?
Sou um autodidata e há skills técnicos que me faltam, mas o que me interessa é a imagem e eu resolvo-a. Sempre tive a coisa da fotografia, a minha irmã também e os meus pais tiravam-nos imensas fotografias. Quando comecei a fazer roupa, queria documentar aquilo que estava a fazer à minha maneira, em polairoids. Na altura havia um estilo mais autoral, e eu estava sempre atrás dos fotógrafos a dizer "faz assim", o que é horrível. Fotograva roupa e já fotografava rapazes, porque na altura as agências não tinham rapazes com um fit para a minha roupa, os manequins eram mais velhos e encorpados, eu tinha um casting mais à Raf Simons, havia mais youthness na roupa e uma certa androginia, que não havia muito nas agências. Hoje até faz falta o contrário, há muitos miúdos e os miúdos têm menos estereótipos, são mais diversos. E fazia casting de rua, via um miúdo giro: "Queres ser manequim? Eu sou designer." Vinha ao atelier, tirava medidas e fotografava; se fosse fixe, desfilava e se fosse fixe a desfilar entrava para uma agência, como entraram os gémeos Guedes, o primeiro desfile que fizeram foi para mim. No outro dia estava a ver uns slides e pensei: "Que giro, já fazia Boys Appetite aqui. Tem a ver com o corpo e a moda, foi aí que começou.

Hoje fotografas os editoriais de moda da tua revista, a Prinçipal e tens uma costela autoral, que parece muito espontânea.

O digital é muito mais fácil, clicas mais, experimentas mais, é alive and kicking, a surpresa da revelação tem piada para quem tem dinheiro e tempo para errar, ou quer outro tipo de coisa. Já fiz backstage da ModaLisboa para fazer Boys Appetite e levo uma polairoid, mas interessa-me menos o meio em si e mais o que sai e qual o objetivo das imagens. Como o meu trabalho é extremamente espontâneo, não posso arriscar. Os Boys Appetite são, na sua maioria fotografias roubadas de pessoas que não conheço, vejo uma parte do corpo, uma atitude, etc, e faço uma imagem desse momento, e para captá-lo não posso estar a regular imagens. Também não tenho a minha digital em automático, mas quero errar menos, há ali um momento que não quero perder.
O relance, no fundo, tem muito a ver com o desejo, andas na rua, as pessoas atraem-te, é um universo pessoal, íntimo, tão animal como contemplativo.
Tenho esta coisa de contemplar, mas é um desejo e por isso é que se chama apetite, porque não é consumado, não chega aí.
É mais poético.

É extremamente poético, tem muito a ver com a forma de captar esse momento que é profundamente erótico, esta pessoa que passou, está parada ou a avançar à minha frente, é isso que me interessa.

E às vezes sacas do telemóvel na rua.
Claramente saco do telemóvel. Mas depois, quando preciso de ampliar, de imprimir, etc, tens de ter mais qualidade. É todo um processo, não sei onde vai parar, nem interessa, é um projeto que, para já, não tem fim e não tem de ter. A ideia de captar as pessoas e não mostrar a identidade é uma contraposição ao meu próprio trabalho enquanto fotógrafo de moda. Na moda, vendes um produto ou vários, a roupa, o modelo e o lifestyle, há essa pretensão, trabalhas para um cliente ou uma revista. Neste trabalho, eu não quero vender nada, a não ser essa sensação, esse apetite, esse perfume.

Nem há o mise en scène de um editorial de moda.
O meu trabalho em moda também é muito pouco artificial, mas a partir do momento em que vestes alguém, estás a construir. Aqui é o contrário. Há muitas pessoas no meu livro que conheço ou são modelos, mas não vou buscar a pose, antes um momento de relaxe.
Nota-se essa intimidade, o que é muito bonito.
É um projeto super íntimo, mas ao mesmo tempo não é. Existe uma distância muito grande entre mim e o objeto, é interessante no sentido em que não é palpavel, tu não estás lá, tu tens a câmara, mas… E é engraçado porque quando fui para os Açores com ideia de fazer este Boys Appetite comprei uma teleobjetiva, a primeira vez que saí com ela até me sentia ridículo, parecia um paparazzi, as pessoas olham todas para ti. Mas, de repente, ao longe, com essa distância, consegues chegar. E há uma espécie de gozo naquele momento, um salivar.

O proibido, o voyeur, o pirata.
Sim, de roubar uma imagem. E é óbvio que é importante que não seja descoberta a identidade destas pessoas. Quando há pessoas que conheço, como no caso de manequins, ponho o nome, mas nunca o de família.

Agora que se fotografa tudo e toda a gente é fotógrafo no Instagram, fazes o contrário: mostras o detalhe, uma verdade contrária ao consumo artificial e compulsivo.

É completamente isso, uma oposição total às selfies. Não é que não as faça. Dei uma entrevista à Metal Magazine, eles pediram-me um retrato e fiz um, mas não gosto que me tirem fotografias, já gostei, já desfilei para o Nuno Gama, para a Gambina, para tantos designers quando era miúdo, eles gostam da minha attitude. Mas hoje os miúdos têm muito esta coisa da selfie, eles, eles, eles, quando chego a Instagrams que são só fotografias dessas pessoas, eu não sigo, não quero.
O problema é levarem-se demasiado a sério, não tem piada nenhuma.
Nenhuma. Essa exposição faz-me espécie e isto também é um contrariar de tudo isto. E é muito anatomia, vem muito da minha formação de moda, anatomia, corpo.
E pele, vêem-se sinais e cicatrizes…

Para mim, todas essas coisas são chamadas de atenção, são os plus. Há pessoas que não gostam de um pelinho que têm aqui, eu gosto desse pelinho.

Quando chegaste à moda era tudo diferente, cortaste mato, trilhaste caminho sem medo de ser alternativo, e numa indústria cada vez mais popular.
Nem sei como te responder… É tão intrínseco, não sei ser de outra maneira. Também tem muito a ver com a educação que tive, com a liberdade que os meus pais me deram em tudo, de expressão, de seres quem és e do que queres ser, de me ouvirem, isso foi fundamental. E nunca me quis impôr, tudo decorreu com a maior naturalidade, por isso não há aqui artifícios. Obviamente que me vejo ao espelho e tenho dúvidas, tenho muitas, e felizmente porque me fazem querer fazer mais. E conto muito com as pessoas, partilho muito essas dúvidas. Não fiz o livro sozinho, chamei pessoas para virem comigo, gosto muito de partilhar as coisas, constróis-te. É claro que o Instagram é fundamental neste trabalho, fui passar férias a Berlim e comecei o Boys Appetite, fiz lá as primeiras fotografias que taguei #boysapettite, porque vi "apetite" escrito num poste.

É curioso dizeres isso, porque tens uma estética muito Wolfgang Tillmans, muito alemã. Suponho que será uma referência.
O Wolfang Tillmans é provavelmente o fotógrafo da nossa era. É um tipo da mesma geração que eu, do clubbing e da rave como eu, o melhor amigo dele é o Lütz, um super designer de moda, trabalhei com ele no Margiela, e apresentou-mo uma vez. Também é gay, há aqui coisas que se tocam. Há coisas nele que são mais duras, nos rapazes, noutras é mais poético, nos objetos, nos retratos. Eu sou mais duro, mais fálico, um objecto que é mais sexual [folheia o livro e mostra um pilarete, um assento de mota gasto, uma casa de banho pública em Israel], são sugestões. Também tem uma coisa com os amigos, as pessoas que o rodeiam, a comunidade.
Que também existe no Hedi Slimane [fotógrafo e diretor criativo na Celine].
Sim, muito. Há um curador ótimo que viu o meu trabalho e disse: "Faz-me lembrar a primeira série do Hedi Slimane, a Costa da Caparica". Mas voltando à estória da comunidade. Por exemplo, neste trabalho, tenho um ou dois [rapazes] black, não tenho mais e não vou forçar. Viajei pelo mundo inteiro, mas não me cruzei tanto com eles. Não quer dizer nada, nem sequer sobre o meu gosto. Agora tenho mais, mas também começaram a fazer-se notar. Tem a ver com a comunidade que te rodeia. E apesar de ter links com o trabalho de outros artistas, é impossivel não os ter, nunca penso neles quando estou a trabalhar. Começaram a chegar-me pessoas que têm um trabalho até mais próximo do meu: o Gerardo Vizmanos ou o Winter Vandenbrink. Como designer, fiz curadoria de designers, agora como fotógrafo, apetece-me muito fazer uma exposição com estes tipos todos.


O Boys Appetite foi exposto no Porto o ano passado.
E em fevereiro vou expor na Sputnik, também no Porto, um espaço virado para a rua e com a janela sempre aberta – é a minha janela também, eu gosto de espreitar, é muito fixe que alguém vá espreitar!
De onde vem a ideia de espalhares posters destas tuas fotografias por Lisboa?

Foi uma forma de devolver à rua aquilo que lhe tirei, e tem a ver com o tempo que vivemos. Fui para os Açores fazer este projeto, o festival [Walk & Talk] é que me abriu a porta, (faço lá a curadoria da residência de artesanato). Todos os projetos iam confluir no online, então propus imprimirmos posters e espalhá-los. As pessoas viram-me a fotografar e o resultado estaria espalhado em Ponta Delgada. Hoje continuam lá colados, descolorados, há imensa gente que faz stories e posts, é tão fixe e tão interessante. E agora com o frio, o confinamento, estás fechado, os museus e as galerias também, a rua e o Instagram são os sítios melhores para mostrares tudo.

No confinamento reparamos mais nos pormenores da cidade quando saímos à rua.
Há menos confusão, olhas para o essencial. Fazia sentido mostrar este trabalho aqui, assim, nesta altura, e as pessoas poderem encomendar os posters através da Stolen books. É giro porque há miúdos em todo o mundo que se identificam com este livro, mandam mensagens, começam a seguir-te, algumas pessoas importantes no meu mundo, para mim é super importante comunicar e conhecer pessoas.


E num livro só de rapazes, de repente aparece uma rapariga.
Ela própria teve essa reacção: "Que honra estar no teu livro de rapazes." Fui de férias para uma ilha grega muito pequena e começas a con
hecer pessoas, vais à praia, sais à noite. Este rapaz, o Dimitri, foi das primeiras pessoas em que reparei, porque quando cheguei à praia estava todo nú com um turbante. Uma vez fotografei-o, ele reparou e começámos a falar e a conhecer-nos. Ela era amiga dele, super gira, e diz, eu com a máquina na mão: "Sei que fotografaste o meu amigo, toda a gente lhe acha piada." De repente, toda a ilha quer dormir com aquele rapaz, sabes? É quase cinema. E ele diz: "Mas a ti também, todos os rapazes e raparigas se sentem atraídos por ti." E pensei: esta rapariga é um Boys Appetite! Porque este apetite não é o meu apetite por eles, é o apetite de todos em geral. Ela fazia sentido neste livro.


Fotografas muitos pescoços e nucas, são pontos de elegância e erotismo.
Sem dúvida, há uma zona erógena gigante nesta zona do pescoço. Nas fantasias do vampiro, onde é que ele morde e suga? Sinto-me uma espécie de vampiro porque ao captar estas imagens, o meu olhar tão preciso sobre estes rapazes, sobre a juventudo e sobre a energia, estou, de alguma forma a alimentar-me.
E voltaremos a ter roupa Miguel Flor?

Continuo a gostar imenso de roupa, mas hoje tenho uma leitura um bocadinho diferente. Consumo imensas revistas, a maior parte de moda, que são hoje as revistas de arte, mas estou mais focado na fotografia, no ambiente, nas sensações que me dão. Mas não sei, continuo a ter vontade de fazer roupa. A dimensão industrial foi o que me afastou da moda e sinto que o momento que estamos a atravessar pode abrir portas, janelas, varandas para as pequenas produções. Se isso acontecer... Sabes, quando trabalhei para certas marcas portuguesas fui muito incompreendido, estava sempre à frente e eles não souberam aproveitar. Eu também rasgava um bocado, admito, mas se falares com qualquer autor... Há uma entrevista do Galliano onde ele diz: moda é rasgar. Ou fazes ou não fazes! Havia muita dependência das marcas, e o meu trabalho é muito mais livre, sinto-me um privilegiado por ter conseguido essa independência.


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José Pedro Cortes fotografa a bela desordem do mundo
Observa pessoas e lugares para compreendê-los melhor, nos seus detalhes ínfimos e paisagens diversas, nos seus limites. O artista fotografa a bela desordem do mundo e a ínfima respiração do corpo, para pensar mais longe e sentir mais fundo, entre o que se revela e o que se adivinha.