Moda / Tendências

Nuno Miguel Ramos, o designer que atravessou o deserto até chegar à Moda

Trabalhou em restaurantes, pintou quadros (e vendeu-os para comprar uma viagem para Nova Iorque), passou por uma farmacêutica, foi maquilhador e fotógrafo e chegou, por fim, ao design. Entre Paris e o Porto, está a chamar a atenção da Moda nacional.

20 de agosto de 2021 Rita Silva Avelar

Numa manhã de segunda-feira fresca e solar, encontramos Nuno Miguel Ramos imerso nas suas ideias, num atelier que em tempos pertenceu a Nuno Baltazar e onde a luz entra por todos os lados sem pedir licença. Quando encontrou este espaço na Boavista, no Porto, "o senhorio contou-me logo que o apartamento tinha sido do Nuno. Foi um mero acaso." A luz, que atravessa umas vidraças enormes, incide nos moodboards colados na parede, e nas peças penduradas nos charriots, fazendo-as cintilar. É como se Nuno tivesse acabado de chegar e atirado com as suas ideias para todos os cantos - e elas ganhassem vida própria.

Nuno nos bastidores do Portugal Fashion.
Nuno nos bastidores do Portugal Fashion.

Afinal, estamos a falar do designer que depois de lançar a sua primeira coleção, no outono do ano passado, gerou um hype à sua volta, chovendo pedidos para que as suas peças entrassem em shootings, capas e fossem vestidas em antestreias. A atriz Ana Marta Ferreira não passou certamente despercebida com um dos seus volumosos vestidos, vermelho e esvoaçante, na antestreia recente do filme Bem Bom.


Surpreendentemente franco, com um discurso que vagueia entre o nostálgico e o sonhador, e um sorriso desarmante, Nuno Miguel Ramos conta-nos a sua vida sem floreados. É o mais novo de 11 irmãos – são sete raparigas e quatro rapazes -, e ele é o único que não nasceu em Angola, mas sim em Oliveira de Azeméis, onde a mãe se estabeleceu depois de sair de África. "Aos 18 anos fui embora, precisava de ir embora, de me ir descobrir, e há 20 anos era mais difícil do que era hoje em dia. Fui ter com dois dos meus irmãos a Zurique, que achavam que ia ter uma vida normal como eles, férias planeadas, trabalho fixo", conta Nuno, que confessa que se "perdeu" num admirável mundo novo. "Meti-me em coisas más, mas a minha irmã ‘puxou-me’. Lavei pratos, o que é um estereótipo, mas existe e acontece quando se vai para um país sobre o qual não se sabe nada, muito menos a língua", recorda. "Eu adoro cozinhar, por isso foi mais fácil e comecei logo a aprender fazer pizzas. A pressão psicológica [nos restaurantes] era horrível, mas aprendi muito."

As criações de Nuno Miguel Ramos.
As criações de Nuno Miguel Ramos.

Nas cozinhas de Zurique cruzou-se com um chef, aquele que apelida hoje de "o pai que eu nunca tive, pois cresci sem pai", uma referência masculina com quem aprendeu durante um ano, até este morrer, vítima de cancro. "Era um homem lindo, forte, italiano, foi trágico. Mas sai dali com uma disciplina que jamais teria de outra forma. Foi aos murros na mesa, sim, mas foi o que eu precisava. Odiei-o até ao dia em que ele morreu, e passei a amá-lo."

Uma das campanhas de Nuno.
Uma das campanhas de Nuno.

Depois de trabalhar nalguns bares, mais uma mudança: ingressou na indústria farmacêutica. "Empacotava medicamentos, os comprimidos vinham aos milhões em sacos. Três anos depois estava a liderar uma equipa." Foi durante esta experiência que conheceu "o amor da minha vida". Sobre isso, diz que um dia vai contar tudo num livro, pois uma das suas paixões é escrever. "Era um amor ‘errado’. Começou com um amor platónico muito forte", mas terminou de forma dramática. "Na altura saiu o 21 da Adéle. Eu não consegui chorar e pintar foi a minha maneira de chorar.. ao pintar saiu tudo em tinta e cores", conta.

Um dos quadros que Nuno pintou enquanto vivia em Zurique.
Um dos quadros que Nuno pintou enquanto vivia em Zurique.

 "Nas paletes dos medicamentos havia uma espécie de tampas, de uma madeira fina, e a superfície parecia uma tela. Comecei a levá-las para casa, a comprar tinta, e pintei, pintei... Foi a maneira de sair daquela melancolia." Organizou uma exposição e vendeu todos os quadros. Com o dinheiro, decidiu ir para Nova Iorque. Na segunda noite – só tinha hotel marcado para três dias - apaixonou-se, na terceira estava a viver com um stylist e ali ficoi oito meses. Uma história que também não terminou de forma famosa mas que lhe deu alento para começar de novo. Voltou a Zurique para fazer um curso de maquilhagem (foi o primeiro homem a trabalhar na MAC, na Suíça) e fez também trabalho de freelancer como make up artist em shootings. "Foi nessas sessões, ao ver os vestidos, que encontrei o que procurava... a Moda."

O brilho e as cores femininas são sempre uma das apostas do designer.
O brilho e as cores femininas são sempre uma das apostas do designer.

Aos 28 anos voltou para aos estudos, entrou numa escola de Moda, em Zurique, e fez o último ano do curso na famosa École de la Chambre Syndicale em Paris. "Na altura tinha 31 anos, e os meus colegas tinham 20 anos, tinham essa vantagem, por ser mais fácil serem ‘mandados’." Mas ele foi em frente. Trabalhou para a Sonia Rykiel no último ano antes da marca falir, e ainda passou pela marca de carteiras Caroline De Marchi, antes disso. "Aprendi imenso, e a minha maneira de pensar em termos de Moda mudou muito. Lembro-me do primeiro desfile ser como se vê nos filmes. Toda a gente a correr, a atirar-se para o chão, a cortar tecido antes do desfile!". Mais tarde, juntou-se ao atelier de Sueo Irié, em tempos o braço direito de Kenzo. "Os japoneses são super calmos e certinhos, aprendi essa sua metodologia. O Monsieur Irié acabou por me inspirar. Disse-me: "Nuno, tu tens que fazer alguma coisa. A tua cabeça tem muita fantasia!" E assim foi. 

Uma das campanhas de Nuno.
Uma das campanhas de Nuno.

Embora os 11 irmãos nunca tenham estado reunidos – estão todos em partes diferentes do mundo - Nuno cresceu com referências femininas fortes na sua vida, as suas irmãs e sobrinhas, que hoje inspiram as suas coleções. Do lado do pai, sabe que são todos costureiros. "É engraçado, porque nenhuma das minhas irmãs faz nada criativo, e todos os meus irmãos têm o mesmo pai excepto eu. Os laços de sangue são muito fortes, se calhar foi por isso que a Moda esteve sempre no meu subsconsciente."

Uma das campanhas de Nuno.
Uma das campanhas de Nuno.

As peças com folhos e lantejoulas, em tons fortes, foram o centro da sua primeira coleção, lançada aquando da segunda edição do Portugal Fashion de 2020, embora não estivesse no calendário do certame. "Comecei a chamar a atenção, e começaram a pedir-me peças para fotografar." A segunda coleção já fez parte do calendário, em maio passado, num novo "Welcome to Porto", dedicada a designers emergentes, estreada na The Sofa Edition. Na universidade, já tinha criado uma primeira coleção inspirada no abstracionismo do aposematismo (a coloração que os animais adoptam quando sentem perigo). "Eu quero que a minha mulher possa usar qualquer coisa que não impeça as pessoas de ir ter com elas, mas que seja uma espécie de escudo."

Outono/Inverno 2021/2022.
Outono/Inverno 2021/2022.

Inspira-se com frequência na Natureza, no mar. "Vim para Portugal por causa do mar, e a minha próxima coleção é dedicada ao mar", conta, enquanto mostra alguns dos sketches e amostras de material da coleção que está a trabalhar, para A primavera/verão de 2022. Entre as suas paixões está também a fotografia: na sua conta de Instagram e nas últimas campanhas, lê-se nas entrelinhas a sensibilidade que tem para esta arte, também. 

Nos últimos dois meses, à medida que pensa nas SUAS peças, Nuno confessa que se sente obcecado com a ideia de voltar a Paris. "Falta-me tudo. Faltam-me aquelas ruas, aquela gente doida, o metro de Paris. Não quero ver chinelos com meias no metro do Porto, quero ver carteiras da Chanel no metro de Paris. O meu último objetivo está lá. E eu sei que vou voltar."

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