"Daqui a uma centena de anos, já ninguém vai falar de "dois sexos", mas sim de três, quatro ou mais" - Paul B. Preciado, filósofo.
Ivvi
Ivvi Romão acaba de tirar um bolo do forno. Estamos na cozinha da casa que divide em Lisboa, no bairro de Arroios. Na rua, a noite cai ao ritmo das decorações de natal e do inverno. Realizamos esta entrevista no final de 2021 de olhos postos na mudança e num futuro que se mantém incerto devido à pandemia. Na assoalhada onde a manequim nos recebe sentimos como é afável e espontânea a sua presença. Veste um fato de treino escuro, tem o cabelo dividido em longas tranças. Temos à nossa a frente uma bailarina, que transporta agora a vivacidade da dança para a moda. Ivvi atravessou um oceano deixando o Brasil, que a viu nascer, para viver em Dublin e Londres, onde dançou para o Bolshoi Ballet. Aterrou nos últimos anos em Lisboa, a capital é agora palco de um corpo que floresce, magnético. Sozinha, Ivvi é capaz de contrariar a época que nos faz evocar a palavra "inquietação" com demasiada frequência. Sentimos isso enquanto a ouvimos falar, há um mundo de coisas que a queremos ver viver.
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O bolo que nos serve sabe a manga e vem acompanhado de um café, porque eventualmente Ivvi acabará por sair depois da nossa conversa.
Diz-se caseira, mas dias antes de a entrevistarmos assistimos ao momento em que incendiou a pista de dança da festa imaginada pela Casa Loewe na sua inauguração lisboeta. Todos os olhos se viravam na sua direção.
"Foi a dança que me encontrou", diz-nos, quase comovida. Recorda quando ainda adolescente na pequena cidade de Maceió, no nordeste do Brasil, ouviu acordes de uma suite de Tchaikovsky, "eu estava a andar e lembro-me de pensar: 'quem estará a ouvir música clássica aqui no meio do nada?' E fui seguindo o som até encontrar uma escola de ballet, entrei e atravessei um corredor que dava diretamente para um estúdio. Fiquei a ver os corpos que se mexiam numa aula, e sem uma única palavra aqueles corpos conseguiram contar-me tantas histórias. E pensei, ‘eu quero fazer isto’." Fica em silêncio e diz, "fico arrepiada só de pensar."
Tchaikovsky era um dos compositores que a sua mãe ouvia nos headphones que colava à barriga enquanto grávida preparava o seu nascimento.
O ballet foi uma revelação que chegou cedo, teve de pedir autorizações para concretizar o sonho. "O ballet era muito mal visto pela masculinidade, e naquela altura eu era um menino menor de idade a querer dançar", conta. A paixão pela dança clássica fez Ivvi atravessar o Brasil e uma parte do Reino Unido, a moda chegaria só depois à sua vida. Em 2017, quando chegou a Portugal conheceu Rui Rocha, um hairstylist de referência no meio editorial, "ele olhou para mim e disse-me que o meu rosto funcionava. Era preciso mudar alguma coisa, e nessa altura criei uma personagem masculina que pudesse funcionar na moda (…) Eu não podia ser eu enquanto modelo naquela altura." A binaridade que infelizmente rege a sociedade, atrasou algo que Ivvi sentia há muito. Ela sentia-se mulher mesmo quando trabalhava como manequim masculino.
Durante algum tempo viveu com essa dualidade, apoiando-se na personagem que tinha criado para que a sua presença funcionasse no meio em que se movia. Até ao dia em que começou o processo de transição de género. "Nessa altura perdi o contrato com a minha agência, os clientes sumiram, perdi seguidores", remata, "as pessoas compram a personagem e querem que continues a ser o produto."
Ao assumir o seu processo de transição teve de se esforçar para que o mercado entendesse aquilo que estava a viver. "Foi preciso contrariar essa imagem que existe à volta do que é ser uma mulher trans, há quem nos associe à prostituição e à droga e não é sobre isso, eu sou uma mulher, sou a Ivvi, sou eu. Antes de ser trans eu sou tanta coisa. Isso é apenas uma virgula… Eu canto, eu danço, eu sou atriz, sou formada em dança. Isto é mais sobre aceitação externa do que interna, porque a necessidade do outro, em geral, é de rotular. Eu adoro dizer que sou o privilégio da dúvida."
Esta reviravolta fechou-lhe portas, disseram-lhe que a Moda não tinha espaço para pessoas como ela, que nunca seria capaz — "só que eu não gosto dessa palavra…Do nunca". Nós também não.
A dupla de designers Marques D’Almeida acolheu a presença inesquecível de Ivvi nos seus desfiles, deram-lhe visibilidade, "o projeto deles não é só sobre a roupa, mostra também vários tipos de corpos. É como se dissessem que é possível…E não é só para mim, é também para aquelas pessoas todas que desfilam para eles. A Moda é sobre isso. A beleza está no diferente, a beleza está no existir… No ser."
Nas suas redes sociais, Ivvi explica os vários passos que envolvem a sua transição, "o Instagram é um espaço onde sou bem didata".
Atualmente há uma conta no site GoFundMe, serve a apoiar a sua retificação genital, ali dá-nos a conhecer o trabalho do cirurgião que a acompanha, João Décio Ferreira é um especialista distinguido internacionalmente por ter desenvolvido uma técnica inovadora. A última cirurgia de Ivvi deverá acontecer até ao verão.
Há um sonho que arrebata a manequim e que a gostávamos de ver concretizar. Nos tempos livres Ivvi adora mergulhar em livros de História, assim descobriu o trabalho de Gianni Versace e os figurinos que desenhava para bailados. Na cozinha onde conversa connosco de fato de treino, conseguimos projetar o seu corpo longilíneo num dos vestidos dourados que continuam a existir nas passarelas da marca herdada pela irmã Donatella. E porque imaginamos Ivvi vestida de dourado, guardamos também um detalhe.
Nas suas pesquisas, Ivvi apaixonou-se pelo trabalho do pintor austríaco Gustav Klimt e o seu Retrato de Adele Bloch-Bauer ou a Dama Dourada.
"O Klimt era muito binário e usava quadrados para pintar os homens e formas redondas para as mulheres, e aí aparece este tela, desta mulher empoderada… Onde existem tanto formas quadradas como retangulares. Quando a vi fiquei a questionar-me. Quem seria? Ela era uma mulher com poder e influência, por isso quando a pintou colocou-a numa posição segura… com poder. Olhas para o quadro e pensas logo que Adele sabia o que estava a fazer."
Não vamos mais longe, há algo de Adele na presença de Ivvi.
Kieza
O sorriso de Kieza, quando surge de orelha a orelha, é como uma luz que se acende à nossa frente. Estamos na copa da sua agência Central Models, na avenida da Liberdade. Há fotografias de outras manequins penduradas nas paredes, revistas de Moda antigas nas prateleiras, e ao longe ouvimos bocados de conversas em várias línguas. As bookers gerem agendas que mudam ao ritmo das restrições que cada país impõe durante a pandemia.
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Kieza está vestida com um blusão de penas preto por cima de roupa justa (preta também), os seus braços e pernas parecem intermináveis, o todo resulta numa elegante silhueta. Do seu olhar há algo de doce que nos chega, uma doçura que pode rapidamente transformar-se em diabrura — chamamos a isso carisma.
Foi surpreendida pelo entusiasmo da agência à sua candidatura, no final de 2019, enviou online as primeiras fotografias, "fui logo aceite no dia em que me desloquei à Central e fiquei uauuuu o que é isso?", há um ligeiro sotaque nas palavras que pronuncia, solta uma gargalhada. Ela tinha vindo de Angola para Lisboa estudar gestão, viveu a sua primeira fase em Portugal focada nos estudos.
A Moda não era propriamente um sonho de infância, cresceu num país onde a indústria não se impôs como uma prioridade no quotidiano das pessoas.
Kieza lembra-se das silhuetas de Naomi ou Gisele nas televisões, e pouco mais.
Já adolescente percebe que o concurso Elite Model Look é realizado em Luanda e apesar de nunca se ter inscrito, há algo que se desperta nela ao saber que a Moda pode ser uma possibilidade, também ali na sua capital africana.
Depois da Central Models a agenciar, houve o percalço chamado covid.
A azafama dos castings parou por completo, mundo fora, e a estreia de Kieza foi adiada. "Durante esse tempo fiquei em Lisboa sozinha, e aguentei", sentimos que foram meses duros no seu tom de voz, "mas eu falava todos os dias com a minha família em chamadas de vídeo".
Durante o primeiro confinamento, as imagens da morte de George Floyd invadiram a imprensa e as redes sociais, a rua recebeu inúmeros protestos em prol da igualdade e dos diretos humanos. O movimento Black Lives Matter denunciou a ausência de justiça nas questões raciais. A indústria da moda estremeceu em diversas situações desde então — não é possível continuar a abordar o racismo e a desigualdade sem tomar resoluções. Aconteceram mudanças cruciais, ao longo dos dois últimos anos, destacando-se a chegada de Edward Enninful à direção da Vogue britânica e do grupo Condé Nast na Europa.
Sobre a diversidade Kieza tem palavras de entusiasmo. "É um tempo bom este… E o mundo da Moda está a dar oportunidades a todo o tipo de meninas… Há negras, brancas ou loiras e é uauuu… é uma coisa mesmo uauu."
Gostamos do ritmo dos "uaus" que pontuam o discurso de Kieza, a sua linguagem é musical. "Eu tento falar o mais possível com as minhas colegas, quero saber que tipo de experiências têm tido, é um pouco como beber a água delas", diz preparar-se assim para mergulhar em novos trabalhos, "podemos fazer castings e não passar, hoje temos e amanhã não. A Moda é isso… É preciso ter um pé no chão".
Kieza quer viajar, explorar as cidades onde acontecem as mais importantes semanas de moda. Nos tempos livres dança, e dançou muito nesta produção para a Máxima. "Adoro sair à noite, gosto de sentir a vibe e o momento", a dança é uma ferramenta que usa na dinâmica para adaptar o corpo aos encontros de trabalho que lhe pedem uma entrega imediata.
Rematamos este texto com uma onomatopeia que tanto usa no final das suas frases. Kieza é "uauuuu".
Isabella
"Podes repetir a pergunta?", diz Isabella num tom educado e cauteloso. Temos dificuldade em ouvir-nos ao telefone, a manequim está numa pausa de almoço durante uma sessão fotográfica, a rede é fraca e o modo alta voz que nos permite gravar a conversa não ajuda à comunicação. O seu cabelo curto lembra-nos o estilo de Linda Evangelista no início dos anos 90. Isabella abrevia a questão, "tens só de lidar com os estereótipos que as pessoas fazem de uma rapariga que tem o cabelo curto, mas foi algo que normalizei desde muito cedo." Isabella estudou fotografia no liceu, evoca uma admiração pelo trabalho do génio inglês Martin Parr, e a sua fotografia documental com crítica social à mistura, "ele é tão humorístico e peculiar, gosto da maneira como ele põe o sentido de humor no trabalho editorial, e gosto desse desafio de ver pessoas que não estão ligadas só à moda, e de como usam outras referências para alimentar o trabalho na área, isso acaba por tornar os projetos muito mais interessantes".
Isabella começou a ser manequim aos 16 anos, foi algo que aconteceu por acaso, "a minha mãe e a minha tia sempre foram as minhas referências nesse sentido, sempre tive fascínio pela forma como elas se expressavam através da roupa, só nunca pensei ser modelo eu". A sua mãe, Cláudia Sousa, trabalhou na porta que dava acesso ao mítico bar do Bairro Alto, o Frágil. Ali aconteceu algo nunca visto em Lisboa até então, nas décadas de 80 e 90 (do século passado), uma movida de criadores de várias áreas artísticas encontrava-se para sair à noite e trocar ideias em madrugadas inesquecíveis. Para falar da História de Moda (e não só) em Portugal, é obrigatório mencionar o bar da rua da Atalaia," eu adoro ver o site que tem o arquivo fotográfico do Frágil, aliás acho que foi lá que os meu pais se conheceram".
Isabella interessa-se agora por design gráfico, mais uma ferramenta no que diz ser uma aprendizagem, tenta aprender sobretudo, quer estar envolvida em projetos muito diversos, talvez seja esta a sua herança da energia do Frágil. Na nossa curta conversa telefónica, sentimos que absorve todo o tipo de referências, a sua voz exprime curiosidade.
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No que toca a diversidade no meio da Moda, Isabella sente que existe um longo caminho a percorrer, ela adora a energia de poder trabalhar com todo o tipo de géneros. "Qualquer pessoa deveria poder olhar para um editorial e sentir alguma proximidade, durante muitos, muitos… Muitos anos, acho que nenhuma mulher se identificava com as modelos que estavam naquelas produções. Aquilo não era só perfeição, era um ideal muito exigente… Não era representativo da nossa sociedade."
Aceitar a diversidade dos corpos foi sempre uma possibilidade, porque se demorou tanto tempo a dar este passo?Créditos
Realização Tiago Ribeiro @boldcsStyling Cláudia Barros
Maquilhagem e cabelos: Sara Fonseca com produtos Tom Ford Beauty
Modelos: Isabella @Central Models Kieza @Central Models e Ivvi Romão @Blastmodels.
Assistente de styling: Diana Marques
Texto: Tiago Manaia.
Créditos
Styling Cláudia Barros
Maquilhagem e cabelos: Sara Fonseca com produtos Tom Ford Beauty
Modelos: Isabella @Central Models Kieza @Central Models e Ivvi Romão @Blastmodels.
Assistente de styling: Diana Marques