
"O presidente José Maria Neves tinha dez ministras" diz-nos Teté Alhinho, uma das vozes belas e incontornáveis de Cabo Verde. Lançada no grupo Simentera, ela encanta meio mundo com a sua doçura, profundidade e talento para as coisas mais importantes. Estamos a comer um peixe muito fresco grelhado no carvão acompanhado de legumes, sentadas de frente para o mar numa esplanada aberta e honesta, na Cidade Velha da ilha vulcânica de Santiago. Por ali entraram os portugueses, com sede de terra e de horizontes, nos seus barcos escravos que acorrentavam ali mesmo ao nosso lado, na praça do pelourinho. No entanto, tudo o que sentimos é a luz e a harmonia de um povo bom que nos recebe de braços abertos, sem rancores nem cobranças de um tempo muito longínquo que já nada nos diz. De toda essa tristeza, os cabo verdeamos preferem celebrar a criolagem e a vida.
Teté Alhinho é disso exemplo, filha de mãe cabo verdiana e pai alentejano, tem todo o mundo dentro dela. A sensualidade quase intacta aos 66 anos, uma farta cabeleira emoldura-lhe o rosto sorridente. Mas o melhor ainda é a frescura do seu pensamento, moderna, mais europeia na mentalidade do que muitos europeus, mais à frente do que a maioria das jovens mulheres que conheço. Teté fala de feminismo com a naturalidade de uma conversa de café, sem zanga e uma observação astuta dos detalhes que tudo dizem. É raro encontrar mulheres que falem de mulheres, ainda mais é encontrar as que elogiem as fortes. Talvez só as que se reconhecem o consigam fazer, e são poucas, são portanto as que fazem o caminho das pedras que partem para as mais jovens pisarem a fofa areia do futuro.

"Se as mulheres pararem, os país pára", avisa Teté no seu jeito doce, mas vivaz. "Estão nos escritórios e em todas as repartições", acrescenta, ao mesmo tempo que "são elas que carregam os filhos todos, o pai ‘não obrigada’, a maior parte das vezes bebe demais, por isso ela acorda todas as manhãs à cata de saber como dar de comer aos filhos. A mulher cabo-verdiana levanta-se à quatro da manhã para fazer pastéis que depois vende a cinco escudos." A conversa começara porque Teté tinha ido buscar a uma humilde barraquinha ambulante os melhores pastéis de milho que comi na vida. A senhora que os fez veio trazê-los acabados de fritar com um sorriso como só se encontra naquela terra simples, uma lição de humildade. "Eles vão à pesca, mas elas é que vendem no mercado. A mulher cabo verdiana vende legumes na rua para pagar as propinas, mas já tem os filhos na universidade." Tété admite que muitos daqueles filhos são, como em Portugal, fruto do "golpe de barriga" para agarrar homens e rimos de isso não ter piada nenhuma, mas ser a forma possível de poder herdada de séculos de secundarização. Olhamos para o lado e ali, como em todos os restaurantes, também são as mulheres que tratam da grelha.
Teté fala com toda a gente, as pessoas retribuem o carinho. Ao pé dela, uma boa parte das jovens cantoras cabo-verdianas que conhecemos por cá, são chinelos. Teté não tem peneiras, antes uma voz de veludo que vem do fundo, doce e forte. "Eu gosto de ir à rua ver as pessoas e falar com elas." Ela nunca o diz, mas desconfiamos que nunca foi maior a fazer tournés pelo mundo e a esgotar plateias porque teve três filhos para criar, mais um que acolheu na família. Mas valeu a pena, que família deliciosa criou com Henrique, o seu marido mexicano, um médico dentista e desportista, que fala de ética à mesa do pequeno-almoço. Ela é uma contadora de histórias exímia, a meio das quais cantarola umas frases que ficam a pairar na sua grande e iluminada sala mesmo em frente ao mar, na cidade da Praia. Uma casa construída por todos, com Teté a comandar as tropas. "Gostava de fazer residências artísticas e um espaço para juntar os músicos a cantar mornas."
Continuávamos nós na nossa conversa das mulheres quando entramos no centro cultural da zona histórica e encontramos um livro da Breve História de Cabo Verde escrito por três mulheres da Universidade de Coimbra. Uma senhora varria o pó que entrava constantemente pelas portas abertas sem parar ou encontrar obstáculos. Estava um dia de vento daqueles que até para a Cabo Verde foi demais. A senhora estava sentada e aborrecida: "Levanto-me para varrer, depois descanso e volto a varrer porque fica tudo sujo outra vez", explicou em crioulo, sempre a sorrir. Dias e dias nisto. Subimos ao forte de São Filipe, datado do século XVI, e a sua igreja enche-se de mulheres trajadas nas suas várias saias e lenços amarrados à cabeça para rezar pela Ucrânia. São as mesmas que encontramos alegres nas manhãs de Lisboa nos percursos contrários à da maioria, porque estiveram a limpar os seus escritórios. Tantas vezes, no comboio ou no metro, são as gargalhadas das mulheres cabo verdianas que enchem o espaço entediado. A sua vida difícil quase parece fácil.

Teté aconselha-nos a ver O Projecto Rainha, um documentário do músico Ga da Lomba e fala-nos da cantora Danae Estrela, filha da ministra Maritza Rosabal, que escolheu viver, e cantar, numa Lisboa cada vez mais mestiça e multicultural. A maioria dos músicos cabo verdeanos estão em Portugal, mas Teté ficou na sua terra e lutou: "Devíamos viver, cada um de nós, na nossa terra", e fazer por ela - não podia concordar mais. Por isso, foi ela que criou o Quintal da Música no arranque dos anos 00 e onde, até hoje, se janta e ouve músicos da terra, fica no Platô, o coração da cidade da Praia.
Percebemos porque Madonna levou as batucadeiras a tocar a Nova Iorque. Percebemos porque os portugueses caem de amores por elas. As mulheres de Cabo Verde têm uma pinta e uma força raras. Existe mesmo um dia da mulher cabo-verdiana, este 27 março, mais simbólico do que o nosso asséptico Dia da Mulher. Por isso quisemos dedicar esta crónica à Teté Alhinho porque o equilibrio de género faz-se com estas mulheres e com o que elas mudam no mundo. Uma super mulher como tantas que conheci toda a vida, como a minha mãe, como tantas mães de todos que levam a família às costas. Por cada Tété que fala há uma esperança para uma menina que nasce. Pena que as mulheres conversem tão pouco sobre mulheres. Lembrei-me logo de um excerto preferido do Memorial do Convento de José Saramago: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem um coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu."

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