Dra. Isabel do Carmo: “Na maioria dos casos, basta comer uma refeição de carne por semana.”

Desmistificámos os mitos da alimentação com Isabel do Carmo, a nossa mais reputada e carismática endocrinologista. Para não continuarmos ignorantes em frente ao prato.

Foto: D.R.
22 de setembro de 2020 às 07:00 Patrícia Barnabé

Alimentação, Mitos e Factos, Uma Perspetiva Científica vai na segunda edição, o livro da Dra. Isabel do Carmo que se especializou em nutrição e diabetes, resultado de uma dedicada investigação sobre os estudos mais recentes na área da alimentação, põe os conceitos nos seus lugares. Sejam ideias feitas do passado, falsas verdades sem base científica em que tropeçamos nos media e ainda mais na internet, e que por vezes escondem interesses comerciais, às tontas dietas da moda.  

Numa era em que a Ciência dá saltos extraordinários, temos acesso quase ilimitado à informação e a cada vez mais diversidade de alimentos, a esperança de vida em Portugal duplicou desde há um século, os números da obesidade não param de crescer, nem a obsessão pelo corpo idealizado, às vezes redundando em doenças do foro psiquiátrico como a anorexia e a bulimia nervosas

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Conversar com Isabel do Carmo é receber uma lição de história da alimentação e iluminar o caminho de uma área tão fascinante quanto fundamental. Conversa em pleno verão numa bela e perdida aldeia algarvia.

Foto: D.R.

Há uma frase no seu livro que diz: "A literacia alimentar diminui à medida que a literacia nutricional aumenta." A nutrição está na moda, mas rodeada de equívocos?

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Não se sabe passar daquilo que se conhece, e que diz respeito à nutrição, para os alimentos concretos: ‘O tomate é bom para a saúde’, sim, mas é perceber, através da nutrição científica, porquê. Há desenvolvimento na Ciência a esse respeito, principalmente nos estudos dos alimentos benéficos, baseados em grandes inquéritos alimentares e tem-se chegado a conclusões importantes.

Os portugueses comem melhor do que há umas décadas?

Comem melhor do que os pais e avós, em média, e melhor do que antes do 25 de Abril, numa questão quantitative e calórica. Houve muita fome nos anos 40 e 50 e 60, morria-se de fome, o que é uma coisa extraordinária. Hoje as pessoas têm acesso aos vegetais e à fruta, que são essenciais, e são 55% da população de acordo com o último inquérito (da professora Carla Lopes). Os outros não comem a quantidade certa dessas coisas e 10 % tem insegurança alimentar, isto é, não morrem de fome porque há sempre uma paróquia ou uma associação que lhes dá de comer, mas todos os dias têm de pensar em como vão comer.

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O colesterol foi dos primeiros grandes temas da alimentação. Hoje sabemos que existem gorduras más e boas.

Já existiam alguns cientistas que, por intuição, levantavam o problema das gorduras no início do século XX. Depois da Segunda Guerra Mundial é que se começou a observar que a ingestão de gorduras animais era má para a saúde. Foi muito estudado em populações, sobretudo nos Estados Unidos, e começaram a observar que o aumento do colesterol no sangue estava relacionado com as doenças cardiovasculares. Hoje sabe-se que o colesterol tem várias frações – os que são transportados por proteínas pesadas ou os transportados pelas leves, que são as que penetram as paredes dos vasos sanguíneos, formam uma placa que, com os anos, pode fechar e resultar num enfarte de coração ou num acidente vascular cerebral. Fiz em França uma parte da minha especialidade e, nessa altura, começou a estudar-se os benefícios da gordura vegetal (era costume dar às pessoas colheradas de oleo vegetal!) e os medicaments para combater a gordura, estamos a falar nos anos 70 do século XX, nos anos 80 atingiu o seu máximo. 

Depois veio a guerra ao açúcar.

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As pessoas que hoje levantam o problema do açúcar, acusam os que levantaram a questão da gordura de o terem posto para trás. A polémica foi tal que houve uma capa da Time com um cornetto de manteiga: ‘Afinal podemos comer manteiga’ e serviu para aprofundar cada um dos campos. Estas são as duas primeiras grandes questões.

Não devemos comer gorduras de origem animal, nem no sentido do açúcar do açucareiro. É, de facto, o que faz mal à saúde, mas é do que os humanos gostam! (sorri) Então os doces, que contêm as duas coisas… mas foi assim que a humanidade sobreviveu porque há milhares de anos era na Natureza que as pessoas colhiam o mais calórico e disponível, precisamente as gorduras e o açúcar, que está na própria fruta.

Foto: Photo by Ting Tian on Unsplash

Entretanto a alimentação artificializou-se, apareceram os processados e os pacotes.

A partir dos anos 50 do século XX, houve um boom na agricultura e os insecticidas e os fertilizantes foram utilizados de forma explosiva - ainda temos o DDT na natureza. Houve mais quantidade de alimentos, mas pior qualidade. Depois começaram os movimentos ecologistas, que são muito efusivos, mas ainda temos aí o glifosato, usado na Europa com grande empenho da Monsanto e da Bayer, com muitos recuos das autoridades que ainda não o proibiram. Por outro lado, quanto menos comida embalada comermos, melhor. É possível ir ao mercado comprar frescos. Às vezes não é possível, e as mulheres – porque são elas que suportam isto tudo e administram a alimentação em casa, e ainda trabalham todo o dia e compram coisas congeladas para ter em casa, não têm tempo para mais! Em Portugal o peixe congelado é de qualidade e barato. Não podemos ser fanáticos nestas coisas, se não conseguimos comprar natural, compramos alguns congelados, mas devemos evitar embalados, em plástico, lata ou cartão, o mais possível.

 

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Diz-se que em Portugal temos bons produtos, como o peixe da costa, e a dieta mediterrânica.

É verdade, sobretudo mais para o norte atlântico. Portugal é o país da Europa que come mais peixe e temos frutos e vegetais locais de qualidade. Infelizmente, as instituições públicas têm de se reger por uma diretiva europeia que diz que tem que ser comprado o mais barato e o mais barato vem da África do Sul, de Israel, da Argentina. É um verdadeiro crime ecológico que tem de ser torneado. Nós temos de comprar os vegetais e a fruta o mais locais possível, até por questões de economia nacional e de sabor, naturalmente. A dieta mediterrânica é muito boa, mas infelizmente já é seguida por muito poucos, e as pessoas comem um prato mediterrânico à refeição, mas depois, nos intervalos, comem essas coisas que andam por aí…

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Precisamos mesmo de carne para viver? Sabendo o que está por detrás da sua indústria e da sua grande pegada ecológica.

O ser humano desenvolveu-se a comer carne, a carne é que tem ferro. Os vegetais verdes também têm, mas não é digerivel. Há pessoas que precisam mais de ferro do que outras: mulheres em idade de reprodução ou com menstruações abundantes, os rapazes na adolescência. Também dá vitamina B12, mas se comer peixe, ovos ou lacticínios, tem outras fontes de vitamina B12, os vegetarianos têm de fazer suplementação. Mas basta fazer análises em laboratório para saber as reservas de ferro e de vitamina B12 que tem. Na maioria dos casos, basta uma refeição de carne por semana.

E ter proteína em todas as refeições, é mesmo necessário?

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Não, basta ter numa refeição por dia. E podemos ir buscar a proteína, alternadamente, ao feijão e ao grão, nas leguminosas, que são boas fontes de proteína, baratas e práticas, aqui abro uma excepção à lata.

As intolerâncias alimentares parecem só ter sido descobertas há uns anos, quando apareceram aqueles testes…

Aaah esses testes não interessam nada! Tem de se fazer os verdadeiros, o teste da lactose num laboratório: dão-na a beber e logo se vê se a digere. É o único teste válido e é simples. A lactose e o glúten são as intolerâncias de que mais se fala, à lactose é mais comum, mas é pouco comum. Depois há muitas pessoas com o colón irritável e atribuem essas queixas ao glúten. Não faz sentido comprar alimentos sem glúten sem a doença celíaca. Foi uma invenção muito recente e é um mito.

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Parece um reboque ao horror aos hidratos de carbono que leva as pessoas a só comerem grelhados com salada.

O grelhado também é relativo, porque o peixe tira-se a pele, mas na carne, tudo o que fica torriscado não é bom, em princípio é cancerígeno. Se for grelhado com brasas então é mesmo cancerígeno. Por isso, carne grelhada não, a salada é ok e os acompanhamentos são absolutamente necessários, as batatas, o arroz, a massa, o cuzcuz, porque os cereais trazem vitaminas e sais minerais que não existem nos outros alimentos. Com a mania de retirar o glúten, tiram-se os hidratos de carbono. Há muita confusão! Porque os hidratos são açúcares, mas são confundidos com o açúcar do açucareiro, a sacarose. E há estudos de populações que provaram, por exemplo, que as pessoas que comem pão têm menos diabetes, o que protege são as fibras que vêm nos alimentos com glúten.

E o vinho? Somos grandes apreciadores e consumidores.

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Somos e o vinho faz mal à saúde. Descobriu-se que o tinto tem substâncias protectoras das artérias, e são, mas seria recomendável beber um copo a uma refeição, mas quem gosta de vinho não bebe só um copo. A Organização Mundial de Saúde chegou a dizer que quem ia começar a beber vinho (porque fazia bem), escusava de começar. É mais tóxico para as mulheres do que para os homens, temos o fígado mais pequenino, mas há fígados que suportam grandes quantidades de álcool (sorriso), outros começam logo a ter reflexos: olho para as análises e vejo. Pode ficar por ali ou pode evoluir para doenças do fígado. O problema não é um dia de festa, são duas ou três festas (risos) por semana como fazem os jovens, e consente-se que as festas da escola sejam de bebedeira. Há muita tolerância ao álcool na sociedade e é muito barato.

Faz-se uma guerra à erva que, se calhar, faz menos mal.

Com certeza, mas oficialmente não há restrições ao álcool, só há de local e idade - mas vêm beber para a rua. Devia haver legislação para o álcool, mais uma vez é o comércio a fazer das suas.

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Por falar em intoxicar, também temos a moda do detox.

É ridícula (risos). As pessoas chamam detox a um batido de vegetais e fruta, ok não lhes faz mal, mas não desintoxica. Chama-se intoxicação a uma contaminação com bactérias, que dá gastroenterite ou uma intoxicação por metais pesados, de resto, a pessoa não está intoxicada coisíssima nenhuma, porque o fígado e os rins encarregam-se de metabolizar ou deitar fora as substâncias que não são boas. A pessoa bebe o batido, é óptimo para a saúde, pronto. O problema é quando os produtos comerciais entram em cena, e desses eu desconfio sempre, porque podem conter cafeína e guaraná, que estimulam, e a pessoa sente-se arrebitada, claro, eu também preciso de um café todas as manhãs. Depois as pessoas têm de pensar que a fruta é optima, claro, mas tem fructose e x de calorias.

E o que nos diz dos jejuns?

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Há informação contraditória. Até aqui achávamos que o jejum era péssimo, embora o jejum das religiões apontasse para uma questão empírica de limpeza, digamos, fazem-se normalmente 16 horas de jejum. Hoje há estudos que apontam para os benefícios do jejum, que contrariam tudo o que pensávamos. Mas vai ter de andar em termos de investigação, temos de observar populações. Em algumas revistas sérias já surgem estudos, sobretudo animais, mas também humanos, que dizem que o jejum pode "queimar" um conjunto de substâncias, uma espécie de detritos das células, e isso é bom. A verdade é que tenho uma amiga que fez o estudo dos centenários e eles são magrinhos e comem pouco.

Foto: Photo by cottonbro from Pexels

Os suplementos alimentares em determinadas alturas do ano, ou da vida, fazem sentido?

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Só se a pessoa tiver falta, se está bem de saúde e as análises estão normais, não adianta. Agora para pessoas debilitadas, em convalescença, mais velhas, vale a pena tomar vitaminas e sais minerais, não os remediozinhos intitulados suplementos alimentares que há por aí e que dizem ter mil coisas, mas não sabemos se têm.

Uma dos temas recentes, muito interessante, é o dos intestinos serem um barómetro da nossa saúde.

É muito engraçado, é uma descoberta. De facto, os intestinos, que eram uma parte ‘desprezada’ do nosso corpo, comunicam com o sistema nervoso central (sorriso). A leitura do último livro de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, explica bem: no início éramos intestinos e só intestinos, quase, e lá na pontinha uma coisa servia de nervos. E o funcionamento de mensagens, que é básico, o alimento entra por um lado e sai por outro, manteve-se. Nós recebemos mensagens, hormonas, muitas, do tubo digestivo para o sistemo nervoso central. Passou-se a dar-lhes uma importância muito grande. Por outro lado, existem aqueles milhares de seres, que é a microbiota, que vivem nos nossos intestinos e se encarregam de muita coisa. Por isso, é melhor baixarmos um pouco o nosso orgulho, porque sem eles, nós não conseguíamos viver, nem eles sem nós. O ser humano tem de se colocar dentro da natureza tal como ela é. Por isso, as pessoas estranharam tanto a Covid, como se fosse uma conspiração, ou uma maldição. Não, o vírus vive na Natureza como nós, não é mais nem menos, nós é que nos esquecemos.

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Com a sua vasta experiência e conhecimento, prevê uma tendência na area da alimentação? Se calhar, cada pessoa ser única, por isso nunca seguir meias-verdades absolutas.

Nem tudo é saudável para toda a gente. As pessoas têm de ter um aconselhamento próprio e ver por si próprias. As tendências vão ser muito no sentido da crono biologia, perceber bem esta coisa do tempo, comer à noite ou não comer à noite, por exemplo, e as coisas da longevidade. E também dos alimentos bons para o sistema nervoso central e para toda a parte cognitive do cérebro, que é um orgão onde não fazemos biópsias, não é? O combate à demência e ao Alzheimer também, com o aumento da esperança de vida, as pessoas querem viver com o cérebro em bom estado.

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