Histórias de Amor Moderno

“Recusava-me a aceitar o lugar de mulher do predador, mulher do rebarbado”

“Nada podia sugerir-me que o meu marido de vez em quando pousava a palma da mão no traseiro jovem de uma aluna adolescente.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB @ Little Tickles
24 de setembro de 2023 Maria Olívia Sebastião

O telefone tocou já passava das dez da noite. O telefone fixo. Nem eu me lembrava que ainda havia telefones fixos. Lá encontrei o objeto, estridente e iluminado, estava atrás da televisão da sala. Atendi, "sim, estou". Primeiro, um silêncio de quem segura a respiração; depois, uma frase telegráfica dita por uma voz disfarçada: "Presta atenção ao Alfredo, Matilde. Ele anda a fazer coisas erradas" e desligaram, não tive tempo de responder, de fazer perguntas, nada. Fim de conversa.

Eu tenho amigas, sempre tive amigas, felizmente. Muitas dessas amigas, ou pelo menos algumas delas, continuaram a fazer parte da minha vida mesmo quando as vidas, a minha e as delas, prosseguiram os seus caminhos, cada qual para seu lado. Sempre fui uma pessoa de amizades. E casei com o Alfredo, casámos cedo, ainda no princípio dos vintes, eu, ele nos seus 26, o que também não é tarde. Eu nem sei se as pessoas hoje em dia ainda se casam, mas pelo que observo, não se casam antes dos trinta, parece-me. Naquela altura, as pessoas em princípio casavam-se. Depois, divorciavam-se. São os benefícios da democracia e da liberdade, antes disso não era assim, uma mulher assinava o papel como se aceitasse ser transferida do pai para o marido. Mas no meu tempo já não, felizmente, casei-me em finais dos anos oitenta, já quase a entrar nos noventa, ninguém era escravo de ninguém.

A estabilidade do meu casamento nunca teve nada a ver com obrigações, nem com pressões, nem com receios. Casei-me com ele porque o amava e casei-me com ele muita apaixonada por aquele figurão, um homem daqueles que uma mulher se orgulha de ter ao lado - ele e a sua voz grave e pausada, que já em novo era capaz de pôr de uma audiência a ouvi-lo atentamente e em silêncio, com interesse e curiosidade. E eu por ele era toda interesse e curiosidade. Não sei muito bem se há escalas para medir o amor - o amor, o apreço, a admiração, a paixão, o que quer que seja -, mas eu olhava para o Alfredo, eu ouvi-a o falar e tudo em mim era um grande alvoroço, como aquelas moças na América quando ouviam os Beatles a tocar nos estádios de baseball. Só não o aplaudia aos saltinhos porque tinha pudor, mas vontade não me faltava. Se houvesse uma escala para medir o amor e a paixão e o apreço e a admiração, para mim, seria assim: de zero a Alfredo. Não acredito que haja no mundo maneira de alguém gostar mais de outra pessoa superior àquela minha maneira de amar o Alfredo.

Começámos os dois a dar aulas muito cedo. Quando nos casámos, o Alfredo já era professor no liceu. Eu comecei no ano seguinte, no ciclo preparatório, depois C+S. Eu dava Geografia, ele ensinava História. Depois, claro, acrescentou disciplinas ao currículo, fez uma pós-graduação e passou também a dar Português. Nunca vi cérebro assim: capaz de reter, processar, decifrar e transformar em informação interessante o que quer que lá entrasse. Não lhe vou chamar génio, seria até piroso - ele próprio seria capaz de me repreender, de me dizer "Matilde, mas que lugar-comum mais desengraçado, hoje em dia usam-se as palavras por tudo e por nada". O Alfredo não gosta de leviandades linguísticas. Por exemplo, ficava transtornadíssimo quando alguém à mesa - sobretudo a uma mesa de jantar - descrevia algum ato, gesto, evento ou facto como "brutal". Perguntava logo "brutal em que sentido?", o que causava invariáveis embaraços, "como assim?", respondiam-lhe, e ele insistia, "brutal, porquê? Por imposição de barbárie? Por aplicação de selvageria?", inquiria. "Em que medida é que um espetáculo de fogo de artifício pode ser ‘brutal’?" - perfurava assim os egos e as intenções das pessoas, que o temiam, de certo modo. Respeitavam-no tanto que se atrapalhavam, não sabiam o que dizer, riam-se. E era então que eu me intrometia, "para de ser brutal, querido, deixa as pessoas em paz", e ria-me, e ele ria-se, percebia, e a noite continuava, entre gargalhadas e histórias, que mais cedo ou mais tarde acabavam por se centrar nele, na sua figura, no seu modo carismático de dizer coisas, com os gestos lentos mas firmes das mãos, com os olhos expressivos e intensos debaixo das sobrancelhas fartas.

"Não me leves a mal, Matilde, mas nós não vamos." Foi assim que a Célia me respondeu quando lhe liguei para confirmar se vinha ao nosso cocktail de aniversário de casamento. Eram os nossos 30 anos de casados, custou-me ouvir. Não se justificou. Disse só que não ia. Dias mais tarde, foi a Beatriz: "Desta vez, não vamos, querida. Lamento muito." E depois a Maria. E mais tarde a Teresa. E eu, que sempre fui de amigas e de amizades, comecei por ficar triste, depois senti-me desamparada e, entretanto, fui ficando apreensiva, desconfiada, agitada, havia qualquer coisa que me estava a escapar. Nessa altura, as nossas filhas, ambas na faculdade, começaram a não me atender o telefone - nunca estavam disponíveis. Ligavam-me sempre "mais tarde", logo que podiam, e eram sempre chamadas muito rápidas, "sim, mãe está tudo bem, vá, xau, beijinhos". E eu comentava com o Alfredo, perguntava-lhe se tinha ideia do que se passava, dizia-lhe que achava que alguma coisa estranha se passava. "Não sei porque dizes isso, as pessoas às vezes têm outros planos - as pessoas são como a vida", respondia-me ele no seu tom filosófico e sábio.

A cidade é grande, mas o mundo é pequeno. A minha escola fica a poucas centenas de metros do liceu, da secundária onde o meu marido dava aulas na altura. Num dos cafés da zona, naturalmente muito frequentado por muitos alunos de uma e de outra escola, certa manhã ouvi uma daquelas conversas que se perdem no meio de tantas vozes cruzados: "O professor de Português é um porco." O professor de Português? Professores de Português há muitos. "Mete a mão na cintura da Nádia sempre que vai ao pé dela." Nádias também há muitas.

Os rumores começaram a correr: o professor de Português mete a mão aqui, passa a mão ali, na cintura, nas costas, toca de raspão, mexe no cabelo, toca no bochecha, às vezes mete o dedo entre os lábios, ao de leve, "assim, como se fizesse uma festinha", ouvi eu uma vez na papelaria. Depois, já não era só o professor de Português, já era o professor de História também. E eu para mim "professores de História há muitos", tal como de Português e tal como nádias, e tal como Nádias com cinturas e com lábios. De tudo há muitos, nada podia sugerir-me que o meu marido de vez em quando pousava a palma da mão no traseiro jovem de uma aluna adolescente com dúvidas acerca das trocas comerciais entre Portugal e Génova no século XVIII, ou disfunções sintáticas entre o Português de Portugal e o Português do Brasil. Não, o meu Alfredo, o meu amado Alfredo, o meu apaixonado, apaixonante e cavalheiresco Alfredo, nunca faria tal coisa.

Depois de ter recebido aquela chamada incógnita para o telefone fixo, continuei a tentar iludir-me. Recusava-me a aceitar o lugar de mulher do predador, mulher do rebarbado, a tontinha cega de amor que não via no seu companheiro o homem tarado por miudinhas que ele na realidade era. Não aceitava porque era impossível que me tivesse escapado essa faceta do Alfredo durante tanto tempo - foram 30 anos de casamento, não é coisa pouca. Não era possível ter sido assim tão iludida. Liguei para a Célia, "Célia, por favor, diz-me o que se passa." Tinham passado vários meses desde que ela e o marido haviam deixado de frequentar a nossa casa. "Fala com a tua filha mais velha", disse-me. E desligou.

E eu assim fiz, falei com a Patrícia. Não foi fácil. Esquivou-se como pôde. Nessa altura, ela estava a fazer doutoramento em Barcelona. Apareci-lhe de surpresa no apartamento que partilhava, aparentemente com duas colegas e com o namorado, que eu não conhecia. Abriu-me a porta com surpresa e a cor desapareceu-lhe do rosto, achei que ia desmaiar. Eventualmente, sentámo-nos só as duas, horas a fio na sua cama, com o pobre namorado à espera na sala, sem ter onde se deitar para descansar. E foi então que fiquei a saber de tudo aquilo que nunca desconfiei. Das mãos nas pernas e nos rabos das amiguinhas das minhas filhas desde que eram adolescentes, dos abraços demasiado apertados, das festas nos pescoços, nas mãos, nos pescoços, as mãos a passar os fios de cabelo por trás das orelhas enquanto aquela voz grave sussurrava, olhos nos olhos, intensa, "és tão linda, Filipa", "és muito bonita, Inês", "se eu fosse mais novo, namorava contigo, Joana", e os beijos que lhes dava nas faces, às vezes nas esquinas dos lábios, ali onde a boca acaba e o inferno começa. E eu senti tanto ódio, tanta raiva e tanto nojo que nunca mais voltei para casa.

Saiba mais
Mundo, Diversão, Histórias de Amor Moderno, Amor, Casos, Predador
Leia também
As Mais Lidas