Histórias de Amor Moderno: “O que mais me custou perder quando eu e o Gabriel nos separámos foi a Cristina”
“As conversas sobre sexo, com o passar do tempo, foram-se tornando mais frequentes, mais profundas e também mais detalhadas.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Deixem-me que vos fale da Cristina. A Cristina e eu éramos amigas desde muito miúdas. Éramos pequenas ao ponto de eu lhe chamar Cristina, que é uma coisa que mais ninguém lhe chamava, a não ser a mãe - que às vezes fazia upgrade para Ana Cristina, sempre que o assunto era sério -, o pai e os avós. Havia, entre a família, variações, como Tininha. De resto, e com o passar do tempo ainda mais, os amigos e os colegas chamavam-lhe Ana. Porque ela, Ana Cristina de batismo, não estava para se chamar Cristina e muito menos Tininha ao pé das outras pessoas. Só eu lhe chamava assim e só a mim ela tolerava que o fizesse, mesmo já adulta e até em público.
Eu e a Cristina partilhámos a vida toda, desde a infância que a fomos partilhando não como irmãs, mas antes como primas - daquelas primas que são as melhores primas do mundo, as melhores amigas, transformando a amizade numa alegria constante e diferente de todas as outras amizades. Não éramos como irmãs porque as irmãs se zangam e discutem, gritam umas com as outras, fazem queixas nas costas. Traem-se. A Cristina e eu jamais nos trairíamos. Crescemos sobre um pacto implícito muito mais valioso e resistente do que qualquer pacto de sangue. A nossa combinação nunca foi dita em palavras, nunca foi negociada: existia desde sempre e teve origem no princípio da vida - tanto na vida de cada uma de nós como no geral. Nasceu com o universo.

O que mais me custou perder quando eu e o Gabriel nos separámos foi a Cristina. Nunca pensei que tudo fosse acabar assim e não queria acreditar que esse fosse o desfecho quando o nosso pacto finalmente se rompeu e foi como se a vida tivesse levado uma grande facada, como se tivesse sido cortada com uma espada, uma espada de samurai, de cima a baixo, da cabeça aos pés, uma metade para cada lado. E a minha metade custou a suster-se sozinha, só com um pé, desequilibrada, amputada da metade que a Cristina era de mim.
A culpa foi minha. Nunca tínhamos tido segredos uma para a outra, e de repente eu construíra para mim uma zona oculta, uma área secreta, de acesso interdito. Mas a culpa também foi do mundo, das circunstâncias, do tempo que passa - o tempo é um veneno muito forte e corrosivo que nos dá cabo das entranhas, da pele do rosto e das franjas dos nervos, tornando-as mais curtas.
Quando comecei a namorar com o Gabriel, tínhamos nós vinte e poucos anos, a Cristina ficou desde logo a par de tudo. Foi, aliás, a primeira pessoa a quem o apresentei como sendo "o meu namorado". Nem podia ser de outra forma, ou ela nunca mo perdoaria. Ela, por seu lado, tinha um namoradinho meio desajeitado e um bocadinho feio, mas simpático, chamado João, como quase todos os rapazes com quem nos dávamos na altura. Foi uma era de Joões. O Gabriel, que eu conheci na faculdade, também não era um espanto, mas, para começar, tinha a vantagem de não se chamar João, o que o tornava logo um tipo diferente dos demais. Depois, tinha um sorriso malandro a combinar com o olhar esperto. Apaixonámo-nos muito, eu e o Gabriel. E ele entrou perfeitamente na minha vida, começando logo por se tornar amigo e próximo da Cristina, que o gabava constantemente.

A vida encaminhou-se com naturalidade para que eu e o Gabriel continuássemos juntos, mesmo depois de terminados os cursos de ambos. A Cristina não andou muito tempo com o João e, depois dele, salvo um ou outro encontro mais ocasional, não teve ninguém. De qualquer modo, nunca foi pessoa dada a muito romance e não era uma mulher de grande apetite sexual. Sei do que falo. As raparigas falam destas coisas, partilham os seus fogos e delírios. Desabafam. E ela contava-me, abria-se comigo, dizia-me que não gostava assim tanto disso que toda a gente fazia e tanto gabava. Sexo era, para ela, não mais que uma banalidade física. Eu contrapunha, dizia-lhe que era bom, que gostava - mais: que precisava. E falava-lhe do quanto preferia o Gabriel aos outros que tinha tido antes, e explicava-lhe porquê, até com alguns detalhes. Talvez com demasiados detalhes. Ela encolhia os ombros. Eu perguntava-lhe porquê. Amigas como éramos, contávamos tudo e queríamos saber tudo. Nunca se tinha vindo com um homem, dizia-me ela. E eu, de novo, tentava convencê-la de que isso não tinha de ser sempre assim, que ela podia ajudar quem estivesse com ela, conduzi-lo, explicar-lhe. Pedir-lhe com clareza o que pretendia. Faz isto, toca-me aqui, mexe-me assim, faz-me assado. Dar-lhe instruções concretas.
As conversas sobre sexo, com o passar do tempo, foram-se tornando mais frequentes, mais profundas e também mais detalhadas. Ela tinha curiosidade, uma certa avidez de informação, de descrições precisas. Contava-me o que fazia no recato e na solidão só imaginando aquilo de que falávamos. Eu, com certo exibicionismo, não nego, gostava de lhe ir alimentando essa fogueira na imaginação a que acrescentava pormenores que alguns poderiam considerar sórdidos, mas que eram mesmo parte da minha intimidade e faziam as delícias da Cristina. Eu via nos seus olhos gulosos o que a efabulação dela abarcava abrindo os ouvidos e deixando descompassar o seu coração solitário com a adrenalina libertada, à solta como uma cavalo que se desprende e foge.
O Gabriel, amigo já muito amigo da Cristina, com a intimidade que os anos de convivência vão concedendo e legitimando, começou a entrar nas nossas conversas. Ao início era tímido e até parecia não gostar que eu partilhasse com ela aquilo que fazíamos no segredo do quarto - ou de onde quer que fosse. Mas vi que se lhe acendeu uma centelha quando percebeu que tudo aquilo deixava a Cristina numa excitação. E como se notava essa excitação, com aquela respiração mais funda, quase ofegante, que ela tentava a custo controlar, e o ar a tremer-lhe quando passava pelas narinas e pela garganta, as veias a ficarem-lhe salientes.

Este tipo de conversas foi-se tornando um ritual nosso e assim permaneceu durante algum tempo. Até que eu me fui apagando, fui perdendo o entusiasmo descritivo, do mesmo modo que o desejo que sentia foi amolecendo e arrefecendo. Às tantas, já não conseguia corresponder à curiosidade da Cristina e também não era capaz de dar resposta digna às vontades do Gabriel. Ficámos frios. Não foi de repente, mas chegámos lá, arrefecendo um dia depois do outro.
Conheci outra pessoa. Não foi logo assim que arrefecemos, aconteceu tudo mais tarde. Já não éramos sequer gelo, éramos só água desfeita e sem vida. Mas a Cristina percebeu. Ela conhece-me desde que aprendemos o abecedário, perceberia sempre. E viu que os meus olhos brilhavam outra vez, com apetite, com gosto por cada dia novo. E então perguntou-me "tens alguém?" E eu a ela não lhe minto, nunca antes mentira. Mas menti. Disse-lhe "não, que raio de pergunta". Só que ela não acreditou.
Não me sentia bem comigo mesma. Sempre gostei do Gabriel, de várias maneiras, com um amor que foi mudando ao longo dos anos, é certo. Mas não era justo que o enganasse e então deixei de o enganar. Disse-lhe "Gabriel, tenho outra pessoa". E ele, destroçado, disse-me "eu já desconfiava", e foi tudo o que me disse. Pegou numa mão-cheia de coisas que enfiou numa mochila e foi-se embora. Não fez escândalos, não chorou, não suplicou. No meio de tudo, foi digno. Foi o Gabriel que eu sempre conheci.

No dia seguinte, ligou-me a Cristina. Disse-me "já sei o que fizeste, o Gabriel veio ter comigo". Foi muito amarga, disse-me palavras secas, não conseguia compreender-me. E, se não aceitava que eu tivesse traído o seu amigo, não me perdoava que eu lhe tivesse mentido a ela. Nunca mais me falou. Mas sei que a Cristina e o Gabriel ainda se dão bem. Às vezes vejo-os passear juntos e pergunto-me do que falarão agora que eu não estou lá.
* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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