Histórias de Amor Moderno: “Era um jogo. Só que era um jogo muito apetecível e, a partir de certo ponto, escaldante.”
“É difícil descrever o que uma situação destas pode provocar na cabeça de uma mulher que não sente o toque carnal de um homem há tanto tempo.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Olho para o telefone como olhava antes de tudo ter acontecido. Só que agora o tédio não é verdadeiro e a minha distração é fingida. O maior problema do amor surge quando os dias se repetem: hoje é igual a ontem, que já foi igual a anteontem e ao dia antes desse, e amanhã em princípio não será diferente.
Ao fim de 14 anos com o meu marido, a novidade é menos que uma miragem. É uma utopia, ou, pior e mais doloroso, uma memória distante. Já não nos surpreendemos nem renovamos. Coexistimos, dentro das bases do respeito, cumprindo mínimos essenciais de espaço e de tempo, de presença e de finanças, de companhia e de silêncio. A verdade é que não temos muito para dizer um ao outro. Não é culpa de ninguém, é só o resultado do tempo que nos foi subtil e suavemente mostrando que a opção de ficarmos um com o outro era errada porque, apesar da paixão inicial - que existiu, mesmo não tendo sido a mais fogosa de todas -, no longo prazo seríamos dois estranhos lado a lado. Escolhemo-nos um ao outro por uma miríade de motivos, que vão da admiração ao apreço, e que compreendem ainda o sentido estético - o Albano é, e sempre foi, um homem bonito, é impossível ignorá-lo. Tudo isso fez de nós, em teoria, companheiros adequados um ao outro.
Só que o amor não se compadece com adequações. O encaixe entre duas pessoas, para ser perfeito e perdurar, tem de conter muitos ingredientes. E um desses ingredientes, por mais voltas que queiramos dar ao universo, é físico, é libidinoso, é sexual, é erótico. É mais fácil lidar com alguém que deixa a tampa da sanita para cima ou os frascos de shampoo abertos do que com um homem que entra em casa e nem dá por mim, não sente curiosidade em saber como estou vestida e muito menos como sou quando estou nua. O Albano não me vê nua, completamente despida, vai para quatro anos. Não brinco, sei perfeitamente quando foi a última vez que fizemos amor: estávamos em viagem, fomos ao casamento da irmã dele - o segundo casamento da Elisa -, que emigrou para Malta. Era 11 de setembro - data que será sempre fácil de memorizar - de 2019, pouco antes da pandemia. No calor mediterrânico, num ambiente romântico e festivo, e embalados por uns copos a mais, demos connosco no quarto de hotel a ferver um pelo outro. Acredito que o próprio hotel nos tenha emprestado uma certa ilusão de transgressão, o que nos acendeu ainda mais os corpos.
Mas o que adormeceu cansado, nu e suado, acordou tépido, insosso e sem chama: na manhã seguinte, éramos de novo a Joana e o Albano, marido e mulher, responsáveis pela casa e pelas contas. Parecíamos envergonhados pelo que se tinha passado, como se uma boa noite despudorada, em que tudo é permitido e em que acedemos a tudo o que temos direito, por concessão dos votos matrimoniais - e não só, que a natureza nestes assuntos manda mais do que qualquer voto -, fosse motivo de embaraço. Resultado: desde então, nem uma carícia picante, um beijo profundo e demorado, uma mão atrevida na anca, no rabo ou numa mama. Nada. Somos colegas de secretária ou de repartição, só que o nosso emprego é a vida que partilhamos.

A primeira mensagem que recebi do Simão vinha assinada "S.B. Magalhães". Não sabia quem era. Presumi, pelo contexto - muito profissional e jeito relacionado com o meu campo -, que fosse colega de profissão. Era mesmo. Tratava-se do meu homólogo do Porto: Simão Barbosa de Magalhães, diretor de projetos especiais para a Região Norte. Foi o que me respondeu quando lhe perguntei, com aspereza, mas sem ser indelicada, quem se tratava: "Imagino que estejamos a falar de trabalho, mas seria possível identificar-se?" E ele identificou-se - airoso e confiante, escreveu: "Pois claro, que indelicadeza a minha: sou o Simão, o equivalente à Joana [que sou eu], só que na cidade do Porto, e obviamente muito menos gracioso que ela."
Eu, que tenho baixa tolerância a piropos, por alguma razão achei que a saída fora muito mais espirituosa do que atiradiça. E talvez tenha sido. As mensagens posteriores seguiram num tom sério e profissional, sempre sem esquecer a cordialidade e a gentileza. Uma pessoa, quando fica sozinha e sente falta de atenção, torna-se vulnerável, suscetível às delicadezas e simpatias, até às mais simples e mesmo que em contexto de trabalho. Dei por mim a prolongar conversas acerca de projetos inverosímeis noites dentro, horas a fio, só pelo prazer de ler as mensagens daquele homem que, pelo menos enquanto trabalhávamos, me dispensava o seu tempo, o seu olhar, o seu pensamento, as suas palavras. E as palavras do Simão não são umas palavras quaisquer: ele sabe mexer nelas, arrumá-las de maneira que uma mulher as sinta com curiosidade e com gosto, como se trouxesse tempero.
Ao fim de apenas alguns dias de trocas de mensagens - sempre sobre questões de trabalho -, dei por mim a ser abertamente seduzida, embora esse jogo de sedução nada escondido - o Simão já tinha posto as coisas assim: de cada vez que eu ficasse impressionada com o que ele dizia, marcava 1 ponto; ao fim de xis pontos, eu seria obrigada a aceitar jantar com ele - viesse sempre envolto em possibilidades de fuga, como aquelas pessoas que dizem "estou só a brincar… ou será que não estou?" Era um jogo. Só que era um jogo muito apetecível e, a partir de certo ponto, escaldante. Por mais que eu me fizesse de parva ou distraída, houve um momento em que se tornou impossível fingir que não percebia a ideia fundamental de toda aquela conversa. Não sou idiota, nem dissimulada. Parei o jogo, disse-lhe: "Escolhe um sítio, encontramo-nos aí. Sem regras."
Eu acho que ele ficou baralhado, confuso, talvez hesitante. Não respondeu de imediato. Horas mais tarde, mandou-me uma mensagem: "Não há mais ninguém na tua vida?" Respondi-lhe: "Isso não é relevante, concentra-te: escolhe um sítio, encontramo-nos aí." A resposta dele, seca, dura, determinada, fez-me estremecer: "Sem regras." Tratou de tudo: motel, data, horas. Combinámos que o primeiro a chegar se despiria e deixaria as luzes apagadas; o segundo, entraria às escuras e despir-se-ia sem reservas.

É difícil descrever o que uma situação destas pode provocar na cabeça de uma mulher que não sente o toque carnal de um homem há tanto tempo. A transgressão, sempre a transgressão, excita qualquer ser humano capaz de produzir adrenalina, mas há mais: a antecipação, a fantasia, as possibilidades, as suposições. A expectativa é tão aleatória e tão vaga, tão dispersa e tão sexy, que eu dei por mim a suspirar enquanto comia, enquanto conduzia, enquanto escrevia e-mails, enquanto fazia as compras para o jantar. Enquanto comia o jantar diante do Albano. Alheados, cada qual nos seus pensamentos, ele nos seus pecados (quem não os tem?), eu no meu, ainda por acontecer, mas já muito danado.
Quando o dia chegou, eu tremia. Entrei no quarto, tudo estava escuro. Ouvi o Simão deitado sobre a cama. Não disse palavra. Despi-me. Deitei-me. Toquei-lhe. Tocou-me. Desfiz-me. Perdi-me. Que loucura, que maravilhosa loucura.
Antes que a manhã fosse plena, saímos do quarto. Pagámos, fomos à nossa vida. "Queres café?", perguntei. "É melhor ir andando", respondeu-me. Fomos, seguimos separados. Impaciente, ao fim de apenas alguns minutos, mandei-lhe mensagem, "espero repetir muito em breve". Seco, duro, determinado, respondeu-me "sem compromissos". Só isto. E eu fiquei ainda mais excitada.

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