Histórias de Amor Moderno: "Estávamos sozinhos em conjunto, cada um chorando a morte de um amor difícil de digerir"
“Contei-lhe que a perda do meu Boris, um grand danois de onze anos, me tinha abalado profundamente". Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Fiquei intrigado logo da primeira vez que a vi, e só não arrisquei abordá-la porque não queria que a minha curiosidade pudesse ser confundida com uma manobra rasca de galã de viela. Foi só à quarta manhã que ganhei coragem, uma coragem segura, pois sabia que ela me vira também nas ocasiões anteriores. Todas as manhãs, sempre que chegava à piscina interior do hotel - um lugar deslumbrante, com grandes vidraças a toda a volta permitindo uma vista panorâmica sobre a zona antiga da cidade, o "casco histórico", como lhe chamam os espanhóis -, lá estava ela, nadando plácida e vagarosamente de bruços, de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro. Nunca molhava a cabeça. Nunca dizia palavra. Nunca fazia uma pausa.
A essa hora, não havia mais ninguém na piscina. Os casais, normalmente jovens, que frequentavam o spa, faziam-no quase sempre depois do pequeno-almoço, já pelas onze da manhã. Éramos madrugadores, tanto eu como a D. Elisa - ela ainda mais do que eu: sempre que eu chegava, já D. Elisa procedia com o seu ritual, de um lado para o outro, de um lado para o outro, muito devagar. Às nove da manhã já estávamos na água. "Bom dia", disse-lhe. Não me respondeu. Preferiu continuar com o seu exercício, ainda que não houvesse mais ninguém naquele sítio. Não insisti. Dediquei-me à minha própria rotina, que consistia em relaxar nadando anarquicamente e conforme o que me apetecia, parando de vez em quando para contemplar a paisagem. Tudo sempre feito com cuidados máximos, de modo a não perturbar a existência repetitiva e compenetrada de D. Elisa.
Estava deitado na chaise longue quando se aproximou de mim embrulhada na toalha, "bom dia", disse, "o meu nome é Elisa de Albuquerque", e estendeu-me a mão direita com delicadeza e educação. Era uma mulher muito elegante, apesar da idade - muito para cima dos setenta, seguramente -, notava-se que sabia e podia cuidar de si, do corpo e dos pequenos detalhes. Apanhado de surpresa, estendi-lhe a mão e disse "Bruno, muito gosto". Pediu desculpa por não me ter devolvido o cumprimento quando entrei na água, "estava distraída, no meu mundo", justificou-se, "mas depois fiquei a matutar, ‘ó Elisa, então aquele jovem tão simpático deu-te os bons dias e tu nem respondeste?’", acrescentou, com uma suave gargalhada, "por isso cá estou e espero que me perdoe a indelicadeza". Que finésse!
Convidei-a a sentar-se na espreguiçadeira ao meu lado, e D. Elisa assim fez. Sem que eu tivesse feito perguntas, começou a contar-me a sua história, como se a sua idade vetusta a dotasse com a capacidade de adivinhar os meus pensamentos, de pressentir a minha minha curiosidade. "Sabe, Bruno, eu nado todas as manhãs 50 minutos de seguida, sem parar." Eu queria saber porquê, mas mantive-me calado. "Faço-o desde que perdi o Lizardo." O Lizardo, contou-me, era um cão, "um tekkel de pelo cerdoso, deu-mo o meu marido há muito tempo quando fiz 60 anos". O marido, um grande enólogo de Vinho do Porto que era também produtor, proprietário de vinhas e adegas, morrera pouco tempo depois de Lizardo ter entrado na vida de D. Elisa. "Então, esse bichinho era como que o último resquício vivo do meu falecido Artur."

"Que coincidência", disse eu. E contei-lhe que também eu tinha escolhido retirar-me ali para fazer uma espécie de luto, que no meio de uma série de complicações que surgiram na minha vida, a perda do meu Boris, um grand danois de onze anos, me tinha abalado profundamente. Contei-lhe como todos os dias acordava triste desde a sua morte, descrevi-lhe como a casa ficou repentinamente vazia e a minha própria rotina me parecia incompleta, de certo modo desprovida de sentido. D. Elisa ouvia com atenção, seguia os meus olhos e os meus gestos como se devorasse o que eu dizia. E depois contava ela mais um pedacinho da sua história. "O Lizardo, certa vez, íamos a caminho da quinta, que fica na zona da Ervedosa, fez uma coisa que não esquecerei. Eu ia com o Artur, e o Lizardo, como sempre, seguia no banco de trás, com o seu cinto de segurança. Sabe que podemos ser multados se os cães não levarem cinto? Ah, pois é. E não é pouco! Enfim, lá íamos os três, a minha filha mais velha estava à nossa espera na quinta. O Lizardo era pequenito, nunca lá tinha ido. Foi sossegado o caminho todo, e nós ainda parámos em três ou quatro sítios, íamos a passear. Pois o cão nunca quis saber de nenhuma das paragens, lá ficava ele aninhado na sua almofadinha, como quem diz ‘vão lá à vossa vida que eu fico aqui’. Quando estávamos a chegar à quinta, a uns quinhentos metros, talvez, não é que aquele malandro desata a ladrar e aos pulos, eufórico, como se soubesse perfeitamente que era para ali que íamos?" D. Elisa era uma grande contadora de histórias. "Acredite: ele nunca lá tinha ido. Não sei como os animais são capazes de semelhantes coisas."
Eu acreditei. Acreditei e acredito em todas as histórias de feitos impressionantes protagonizados por cães. O Boris também teve os seus. Contei a D. Elisa daquela vez que, no momento seguinte a ter recebido uma notícia devastadora - a da morte de um amigo que não via há algum tempo, uma morte repleta de tragédia, de infelicidade, de desespero; um amigo da minha idade -, o Boris, sem mais nem menos, veio deitar-se sobre os meus pés, onde se enroscou como pôde. Sem dúvida que o fez para me aconchegar. Não pediu festas, não fez mais nada: simplesmente consolou-me, como quem afirma "estou aqui, meu amigo, chora à tua vontade".
Os encontros com D. Elisa sucederam-se nos dias seguintes. De manhã, a piscina. Por vezes, combinávamos almoçar juntos. Ao jantar não, ao jantar recolhia-se no quarto, gostava de dormir cedo. Mas durante mais de uma semana fomos a companhia um do outro. Não falávamos muito, na verdade. Estávamos sozinhos em conjunto, cada um chorando para dentro a morte recente de um amor difícil de digerir, de um amor difícil de descrever, de um amor difícil de imaginar. O amor que tínhamos, eu pelo Boris, ela pelo Lizardo. E foi esse amor e o respetivo luto que nos juntou, a mim e à D. Elisa, numa amizade que ainda hoje dura, uma amizade suave e contemplativa em que, às vezes do nada, um pega no telefone e liga ao outro e diz "olhe, nem imagina o episódio de que me lembrei - este eu nunca lhe contei". E assim partilhamos as solidões, mesmo que à distância, e as histórias e as saudades dos nossos amores.

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