Histórias de Amor Moderno: “Sim, eu e a Patrícia; sim, somos lésbicas. Somos duas mulheres com amor uma pela outra.”
“Uma senhora com um ar muito composto e uma pose de quem definitivamente “doesn’t do it” (...) se aproximou de nós para nos dizer, com um sorriso sarcástico, que ‘Deus olha por todos nós, até por degeneradas como vocês’.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Lembrei-me de vos contar hoje a minha história porque tudo isto aconteceu a um sábado. Podia ter sido um sábado como outro qualquer, daqueles com que Lisboa é abençoada com frequência a partir de finais da primavera - a luz amarela, serena, a pender para o castanho; o verde dos relvados e das folhas das árvores, todas elas recheadas e plenas, mesmo as caducas, que por essa altura gozam do maior vigor, da maior vitalidade. É uma época especialmente harmoniosa e colorida, acredito que seja a mais propícia ao amor.
E era de amor que se tratava quando saímos de casa, eu e a Patrícia, porque íamos tratar do nosso amor: passear, como todos passeiam, desfrutar da cidade, das suas esplanadas, dos seus jardins e recantos. Sim, eu e a Patrícia; sim, somos lésbicas. Ou fufas, ou sapatonas, ou gays, ou o que preferirem chamar-nos. Até camionista já me chamaram, como se os camionistas fossem para aqui chamados. Somos duas mulheres com amor uma pela outra. É estranho que ainda soe estranho a tanta gente, e é por isso que me dá vontade de explicar, com todas as palavras, variações, exemplos e caricaturas aquilo de que se trata - porque só se trata de amor.
Depois de um breve passeio pelo centro da cidade, parámos, eu e a Patrícia - que é a minha namorada, a minha parceira; sim, somos monogâmicas, vivemos juntas há quase seis anos (e se não fôssemos monogâmicas? E se não estivéssemos juntas? E se fôssemos aquilo a que tantos chamam promíscuas?) -, num jardim que é muito popular para este tipo de programa. Refiro-me ao programa de passear e desfrutar de um sábado soalheiro na cidade, não tem nada a ver com programas de namoro entre casais homossexuais, se é isso que estão a pensar.
Sentámo-nos na relva, junto a um muro baixinho, ideal para pousarmos as nossas bebidas e nos encostarmos. E era assim que estávamos, meio abraçadas, muito descontraidamente, de olhos meio fechados, a falar sobre coisas irrelevantes da vida e do mundo enquanto o sol, que nos batia de frente, fazia com que franzíssemos as testas numa vã tentativa de nos defendermos dos seus raios, tão saborosos quanto inclementes.

E assim, sentadas e recostadas, continuávamos, em harmonia com a harmonia primaveril desta cidade linda, numa altura do ano em que "birds do it, bees do it, even educated fleas do it", quando uma senhora com um ar muito composto e uma pose de quem definitivamente "doesn’t do it" - estas coisas notam-se, transparecem especialmente quando as pessoas se tornam amargas e, para se distraírem de si mesmas, passam a dar demasiada atenção àquilo que os outros fazem, mesmo que não lhes diga qualquer respeito - se aproximou de nós para nos dizer, com um sorriso sarcástico, que "Deus olha por todos nós, até por degeneradas como vocês". Assim mesmo, sorridente e delicada, num tom de voz seguro - e com um timbre bem bonito - e calmo. Disse isto e foi-se embora, deixando-nos sem reação.
No momento, nem percebemos bem o que aconteceu. Estávamos distraídas, com os olhos semi-cerrados, fomos apanhadas de surpresa. Mas aquilo que aquela senhora, uma senhora ainda relativamente jovem (não teria sequer 50 anos), nos disse, daquela maneira fria, cínica, ácida, perturbou-me. Perturbou-nos. Foi como uma semente insidiosamente plantada, Deus olharia por nós, talvez, mas não deixávamos de ser as degeneradas, aquelas que desiludiam Nosso Senhor, que não respeitavam o Seu plano; no fundo, que O desrespeitavam.
Levantei-me, queria procurar aquela senhora, encontrá-la e confrontá-la: mas quem era ela, afinal, para me julgar, para me chamar degenerada, para invocar, sem legitimidade que se lhe reconhecesse, a piedade e a misericórdia do seu Deus (e se for também o meu Deus? As pessoas acharão mesmo que os gays não têm espiritualidade? Que não são religiosos? Que não há católicos homossexuais?) para olhar por nós "também", "apesar de". A Patrícia agarrou-me no braço, pediu-me que não ligasse, que deixasse o assunto passar e morrer. Abraçou-me, acalmou-me.
E foi enquanto me abraçava e eu me acalmava que ouvimos um grave pigarrear, como quem limpa a garganta para chamar a atenção. Olhámos e ao nosso lado estavam dois polícias. "As senhoritas acham que isto são maneiras de estar em público?", perguntou um deles. Ficámos, de novo, sem reação, boquiabertas. Dois agentes da autoridade ter-se-iam deslocado até nós para nos advertir de que não estávamos a comportar-nos em conformidade com a conduta de um lugar público? Não percebi e fiz questão de o demonstrar. "Desculpe, mas a que é que se refere?", perguntei. "A isto, a este comportamento", respondeu. "Mas nós estávamos só abraçadas." O outro avançou e tomou as rédeas da conversa num tom mais áspero. "O jardim é público, existem aqui outros cidadãos de respeito; o local não se adequa a este tipo de comportamento." Repeti que só estávamos abraçadas.

A conversa continuou e foi ficando mais acesa. Algumas das pessoas que ali estavam começaram a prestar atenção. Umas aproximaram-se, outras simplesmente ficaram caladas para ouvir o que se passava. Aparentemente, a senhora que nos chamou degeneradas fez queixa de nós à primeira dupla de polícias com quem se cruzou (costuma haver agentes a rondar a zona). Garantimos que nada fizemos que pudesse melindrar a moral e a decência, nem da pessoa mais casta e pia da cidade! Quanto mais de uma senhora carregada de maldade. A resposta que nos deram foi "há coisas que é melhor fazermos em casa, entre quatro paredes". Assim mesmo: em casa, entre quatro paredes. Como se tivéssemos estado a conspurcar a santidade do lugar só porque partilhámos os mais inocentes gestos de afeto - é que nem sequer nos beijámos! Só lhe perguntei se podia dar a mão à minha namorada a caminho de casa, mas já não ouvi a resposta: a Patrícia arrastou-me dali para fora. Não fomos presas por estarmos juntas sentadas na relva. Menos mal.

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