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O que acontece, afinal, numa sala de casting?

O que implica uma audição na vida de um ator? E a que pedidos se submetem para conquistar um lugar na profissão sonhada? Relatos de um quotidiano pouco abordado.

Foto: DR
28 de novembro de 2023 às 18:17 Tiago Manaia

"Não sei que outra forma há pra contratar atores, mas esta é aterradora (...) És julgado até na tua carne quando passas uma audição. É a própria carne que está em jogo e tudo o que o teu corpo produz, o teu caráter é julgado friamente, é uma coisa muito difícil de suportar" – Delphine Seyrig, atriz

Um casting na vida de um ator não é só uma nova possibilidade de trabalho. 

Na tentativa de ganhar uma personagem, o casting permite muitas vezes, a um intérprete, a oportunidade de avançar numa profissão sem regras. Os lugares são poucos, a procura é vasta. O intérprete pode já ter feito Teatro ou ser ainda desconhecido, nada o impede de tentar. Pode fazer um casting porque encaixa na descrição da personagem, ou ser já um ator experiente que trabalha para se ajustar à procura de um filme. Em Portugal contam-se pelos dedos de uma só mão os diretores de casting que exercem regularmente funções. Cada um deles alimenta a sua rede de contatos, com realizadores, produtores e agentes de talentos. São um elemento-chave na vida de um filme. Mesmo com carreiras longas, os atores estão dispostos a submeter-se ao desafio. Quando o filme é um êxito, há castings que se tornam culto. São bónus numa edição em DVD, tornam-se símbolo de um filme que procurava encontrar um performer de sonho.

A francesa Beatrice Dalle terá sido abordada na rua para fazer de Betty Blue em 37º2 Le Matin, de Jacques Beineix, por aquele que mais tarde se tornaria o seu agente. O filme tornou-a uma das atrizes mais cobiçadas do fim dos anos 80. Numa cena do filme Mulholland Drive, de David Lynch, em que Naomi Watts se desloca até Los Angeles para fazer uma audição, representa-se também a pressão que as atrizes vivem no mundo real. Quando está na sala de casting houve piadas sexistas e durante os testes, o ator com quem contracena recorre a gestos de assédio. A personagem de Watts consegue contornar esse ataque num trunfo a seu favor. Nem todas as atrizes dispõem do mesmo sangue-frio. 

Foto: Bertrand Rindoff Petroff/Getty Images

De Hollywood para Paris ou Lisboa, muda a dimensão dos mercados, mas será que o comportamento também muda? Que relações de poder estão em jogo nesta etapa que é indissociável da profissão? E porque são raramente abordadas as condições dos castings que fazem os atores? O que denunciam sobre a precariedade, sobre o medo de não voltar a trabalhar? O movimento #MeToo, surgiu nos EUA em 2017, conseguindo expor um sem-fim de comportamentos tóxicos. O produtor de Cinema Harvey Weinstein, ainda antes de qualquer casting, submetia as atrizes a visitas pessoais ao seu quarto de hotel, eram armadilhas. Algumas atrizes foram violadas, agredidas, humilhadas. Weinstein vai passar o resto da vida atrás das grades. As acusações feitas ao produtor alertaram o meio (ao nível mundial) para a falta de paridade nas equipas de Cinema e para inúmeras práticas de transparência duvidosa. 

Lançámos o seguinte pedido a atores profissionais: "querem contar-nos experiências de casting?", ouvimos cinco relatos, uma atriz pediu anonimato. São diferentes percursos, através dos quais tentamos perceber o que se sente neste processo.

Mina Andala

Há mais de 20 anos que Mina Andala está na profissão. No último Festival de Cinema de Cannes apresentou na Seleção Oficial, ao lado de Jude Law e Alicia Vikander, o filme Firebrand de Karim Aïnouz. Fala connosco via Zoom da sua casa em Londres, cidade para onde se mudou há mais de uma década. O seu olhar gigantesco é iluminado pelas luzes artificiais que tem em casa, desde a pandemia que quase só faz selftapes, audições filmadas que os atores fazem sozinhos e enviam aos diretores de casting virtualmente. A sua primeira audição, como foi? "Não quero estar a mentir, eu fui a um casting [para um anúncio] de um detergente ou de uma manteiga, não me lembro, e eu sabia que não queriam lá pretos, mas fui na mesma. Uma das coisas que não colocavam nos anúncios era a etnia da pessoa. Naquela altura sabia perfeitamente que não queriam pessoas como eu e fui no gozo." Mina ri, o seu nome verdadeiro é muito português por isso escolheu adotar Mina Andala como nome artístico, "Não foi necessariamente para castings, era para empregos de verão também, falava ao telefone e as pessoas não tinham problema nenhum e depois quando me viam (pausa)... Claro que nunca ninguém me disse, ‘não queremos a menina porque tem muita melanina’." [ri-se]. Candidatou-se à Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), "Tinha 18 anos, não tinha experiência teatral nenhuma. Acho que eles criam uma amálgama de diferentes pessoas (...) já tinha noção de que quando saísse da ESTC, com a nossa sociedade, me iam estar reservadas certas personagens. E na escola lembro-me de estudar Tchekhov e de não querer fazer a empregada, quis fazer a Olga que era uma das Três Irmãs."

Foto: Getty Images

Levou a energia de querer combater o estereótipo para o mercado de trabalho. Mina ficou no casting para o Programa da Maria (Rueff). "Estava habituada a programas de humor, nunca tinha visto ninguém como eu, não sabia como me ia encaixar. Havia a família do Zé Manuel taxista e a mulher dele era de Moçambique e não fiquei reduzida a ser a mulher dele, com a Maria fiz tudo o que havia a fazer e se calhar fui mal-habituada, depois as coisas não foram assim de todo." Mina nunca disse que não a um trabalho, "não me podia dar ao luxo de o fazer, sentia que estava ali porque precisavam de alguém com determinadas características africanas, e não porque queriam uma atriz. Se calhar estou a ser injusta, mas acho que a maior parte das personagens que fiz eram africanas, eu só era contratada por ser preta. E quando investes cinco anos da tua vida a estudar e a investigar há uma altura em que te cansas." Depois de ter feito a Lisístrata de Sófocles na Escola, Mina tinha outras ambições. 

Foto: Getty Images

"Eu não quero que me chamem obrigatoriamente para fazer o papel, mas quero poder estar na sala de casting, quero pelo menos que me vejam." Em Londres há uma grande diferença? Mina tem feito séries como Foundation na Apple TV, "Não foi por causa disso que vim, foi para dar um tempo à representação depois de uma longa fase de desemprego em Portugal, mas aqui é diferente. A diversidade aqui não é só uma palavra, é um compromisso de atores, encenadores, realizadores e argumentistas."

Iris Cayatte

Atriz há mais de uma década, tem uma bela voz ao telefone. Conhecemos o seu rosto dos ecrãs. A sua primeira audição foi em Londres para entrar na escola The Central School of Speech and Drama que frequentou. "Ali a audição servia como montra de trabalho e durante muitos anos fiquei em stresse com castings selftapes porque achava que tinha de mostrar tudo o que valia em cinco minutos e isso é impossível." Iris diz que sente prazer ao fazer audições de Teatro porque muitas vezes funcionam como sessões de trabalho, "o casting é diferente, quando está lá o realizador ou o diretor de casting aquilo é um bocado a frio, e é mais curto do que para Teatro. Em Cinema podes levar peças de roupa que se inspirem na personagem, mas não tens de fazer uma cena fechada, se te chamam para um casting já acham que fazes sentido, querem ver a tua interpretação." Há uma sedução intrínseca ao trabalho da atriz, sente que tem de agradar? – perguntamos. "É ingrato, estás a expor-te, mas isso já é o trabalho do ator. Houve uma viragem que tive de dar na minha cabeça para não sofrer. Em Portugal, como não há muitos castings, o ator ainda se põe numa posição de inferioridade, e eu recuso, eles precisam de ti como tu precisas deles." Iris diz-nos que se trata de ter confiança e não arrogância. "O ator não é submisso a ninguém, é submisso ao texto e quando muito ao realizador mais tarde." Acrescenta: "Já me pediram para tirar o soutien numa audição." Perguntamos: a T-shirt e o soutien? "Boa pergunta, ele pediu-me para tirar o soutien, havia uma mulher na sala também, quando me pediu eu perguntei porquê, e ele disse que era para perceber como o meu corpo se mexia, eu virei-me de costas e tirei o soutien, mas deixei a T-shirt, ele ficou confuso. Eu saí da audição a pensar ‘merda para todos’ e vejo uma colega minha a entrar, e esperei por ela, perguntei se lhe tinham feito o mesmo pedido, ela disse que tirou na boa. Por isso depende, para mim aquele pedido não fez sentido nenhum." Iris já trabalhou numa produção internacional com um coach de intimidade para rodar uma cena de sexo. A nudez pode ser trabalhada numa fase avançada dos projetos, pode ser enquadrada. "Quando te pedem uma coisa destas tu tens o felling, se aquilo vem de um sítio construtivo ou real." Para ela é importante debater o assunto, sobretudo para a geração mais nova. "Conheço raparigas que se sentem um pouco perdidas, desistem de ser atrizes por ter uma péssima experiência, algumas são atrizes que saem da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE) do Porto e vêm para Lisboa atrás de sonhos, e acontece logo. Este trabalho é tão dúbio, trabalhamos com o nosso corpo e voz e a saliva, quando estás em ensaios estás exposto aos teus colegas e eles a ti, mas isso já é um contrato silencioso que existe entre atores. Num casting não."

Foto: DR

Bernardo de Lacerda

Trocou a Madeira, onde nasceu, por Lisboa. Em 2014, licenciado em Letras, entra para a ESTC e cruza-se no metro com o manequim e booker da agência Elite Ruben Rua, falam um com o outro, é agenciado e começa a fazer castings para publicidade, "comecei a perceber o lado vil deste processo de audição". Porquê vil? – perguntamos. "Sendo eu um homem homossexual assumido, sinto-me capaz como ator de interpretar os papéis que estão ao meu alcance, e percebo que há sempre um limar do meu individualismo para alcançar uma imagem que abrange um público maior." Na ESTC tinha um professor que abordava o assunto, "dizia para não expormos a nossa sexualidade que perdíamos oportunidades de trabalho. É verdade, quando vou a um casting de publicidade tento ir com o menos de coisas minhas possíveis, sem brincos, padrões ou coisas que denotem um estilo". Para além de ser ator, Bernardo começou, desde 2021, a trabalhar como assistente do diretor do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim. "O Pedro sabe que as coisas têm de ser renovadas (...) Desde que assumiu funções temos tido pessoas não binárias ou trans em lugares de fala." Bernardo foi protagonista de várias publicidades internacionais, tenta nunca anular a sua personalidade nesses castings, "não sei quem está do outro lado a escolher-me, imagina que é alguém que vê as coisas como eu? Se não for escolhido penso só: ‘não era o que procuravam’". Ele não quer ser como os atores de gerações passadas, "já disse na minha agência, não quero ser uma cópia de pessoas que já existem, isso é castrador". 

Foto: David Velez

Durante a pandemia fez dois castings para um anúncio, tinha de fazer um som ao saborear comida, foi escolhido, "sou uma pessoa divertida, comecei a fazer sons que tinham piada para a situação, sempre que fazíamos um take a realizadora ia falar com o cliente e vinha sempre com alguma represália (...) pedia para usar menos as mãos, pedia para desaparecer, disse-me ‘Bernardo para de ser gay, percebi que não estavam a gostar de mim". 

Miguel Amorim

Entrou para a Escola Profissional de Teatro de Cascais com 15 anos, entusiasmou-se, "passava os dias a ver filmes e a ir ao Teatro". Quais eram as suas referências? 

"Fiquei marcado pelo filme O Ódio com o Vincent Cassel, ele era a minha referência. Mais tarde encontrei um ator português que já morreu, o Filipe Duarte, era uma referência na forma de estar e ser." No filme Nunca Nada Aconteceu, Miguel contracenou com ele. Formou-se na ESTC, fez o espetáculo de Gus Van Sant. Fala connosco num café de forma pausada. "O primeiro casting foi horrível, estavam lá pessoas que claramente estavam batidas naquilo e parecia que gostavam de mostrar que tinham experiência (...) estava nervosíssimo, era para uma novela, mas deu para perceber como funcionava." 

Foto: Joanna Correia

Miguel diz que os castings não aparecem com regularidade, "isso trava essa questão de estar focado, há sempre a pressão de não conseguir". As coisas mudaram desde os 17 anos, altura em que fez o primeiro, a pressão económica de tentar viver da sua arte veio com a idade, "é uma gestão difícil". O que está disposto a fazer para ganhar um papel? "Vou estar disposto a tudo se não tiver aquele sentimento de pensar, ‘calma o que é que está a acontecer?’ até lá vou estar disponível para fazer tudo." O que é que já lhe aconteceu? "Uma vez decorei um texto e tentei transformar aquilo numa coisa minha, perguntaram-me coisas sobre mim e se podia tirar a camisola e dizer o texto enquanto me tocava...disseram: ‘Podes tirar mais coisas, mas vamos pedir-te que tires a camisola.’ Estava sozinho com dois homens mais velhos na sala." 

Ficou sem saber se podia dizer que não queria tirar a camisola. "A mim não me parecia ter nada a ver, fiz aquilo com ar de frete, vim embora e pensei que não ia ficar com o trabalho. Foi a situação mais estranha que tive..." Miguel já apareceu nu em certos projetos, fazia sentido na história que estava a contar. "Muitas vezes parece haver uma coisa de poder nos castings, mas não quero acreditar que existem uns cromos que pensam, ‘agora vou fazer um filme para ver uns quantos rapazes nus’, não quero acreditar nisso."

Luísa, nome fictício

"A maior dificuldade que sinto é o facto de eu ser do Norte, chego aqui a Lisboa e o sotaque é todo um problema, de repente é um entrave para qualquer personagem que tu faças, porque há o estereótipo da mulher do Norte ser parola ou burra, é assim que as pessoas são vistas..." Isto começou logo no Porto onde Luísa estudou, na ESMAE diziam-lhe, "se tiveres sotaque não vais ser atriz em ponto nenhum".

Foto: DR

Quando Luísa veio para Lisboa as medidas do seu corpo também eram um problema, "tenho ancas largas, maminhas grandes e a pele muito branca. Mas chateia-me mais perder o sotaque porque é uma identidade minha e não é assim tão carregado, as pessoas têm é dificuldade em ter pessoas diferente em cena". Continua, "isto é uma profissão onde depositas a tua alma e as coisas pelas quais me excluem não têm nada a ver com meu talento (...) lembro-me de estar a fazer um casting e o encenador dizer, ‘podes ir já embora porque tens cabelo curto’". Luísa ri ao contar isto, é um riso desolado. "Eu pensei, e não há perucas? Era a primeira vez, e com o impacto fiquei sem reagir." Em paralelo Luísa deu aulas a crianças, e continua a trabalhar num bar à noite, aos fins de semanas, o seu antigo agente artístico dizia, "as pessoas já olham para ti como a miúda alternativa desse bar e começam a saber quem tu és, achamos que tens de sair desse trabalho porque tu és atriz". Luísa ri e diz, "eu quase era culpada pelo ar que andava a respirar". Houve uma fase em que ficava pré-selecionada e depois nunca ficava com o projeto. "O mesmo agente teve a ideia de ir bater às capelinhas e saber porque é que eu não ficava nos castings, o conselho que me deu foi ‘tens de ir com roupas justas e só assim é que vais passar’, foi das piores conversas da minha vida." Luísa nunca vai com expectativas, "ao longo dos anos, apesar destes problemas todos, consegui construir uma confiança em mim própria em que se não for escolhida sei que não tem a ver com o meu trabalho de atriz".

* Este texto foi originalmente publicado na Máxima que está nas bancas, que celebra o 35º aniversário do título.

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