Crónica

Histórias de Amor Moderno: “A ideia de que ela podia ter outra pessoa atormentava-me”

“Voltei para ao pé dos meus amigos. Não sei bem como me despedi delas. Não devo ter conseguido dizer mais do que ‘tenho de ir ali’.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Como Um Trovão (2012)
Como Um Trovão (2012) Foto: IMDB
29 de maio de 2023 Maria Olívia Sebastião

Conhecemo-nos no Tinder. Quando digo que nos conhecemos é no sentido de nos termos descoberto mutuamente. Foi no Tinder que demos pela existência um do outro. Fizemos match. Trocámos Whatsapps para agilizar a comunicação. Durante semanas, falámos por mensagens, cada vez mais frequentes, mas nunca demos o passo seguinte, nunca combinámos um encontro físico, cara a cara, olhos nos olhos. Como eu vivia em Odivelas e ela num subúrbio da Margem Sul, a logística também não era propriamente fácil, então resolvemos ambos deixar o tempo correr e logo se via o que acontecia.

Numa conversa sobre música, descobrimos alguns gostos em comum. Profjam, Richie Campbell, Masego, entre outros, tudo coisas de que gosto de que a Joana também gostava. O Festival Sudoeste estava aí à porta e eram vários os nomes em cartaz que ambos gostávamos de ver. Combinámos que, na pior das hipóteses, nos encontraríamos no dia de Calema, Masego e Steve Aoki. Por essa altura, as nossas conversas já incluíam planos em conjunto e juras de amor. Mesmo sem nos conhecermos pessoalmente, a sintonia entre nós era bastante grande. Ela mandava-me fotografias, eu mandava-lhe fotografias. Sim, fotografias normais e das outras, daquelas que não se pode mostrar a ninguém. É normal, não estávamos juntos e a vontade era muita. Ocasionalmente, falávamos ao telefone para ouvirmos a voz um do outro, mas esses momentos eram raros e fugazes - o desconforto de falar com alguém que não conhecemos fisicamente torna a situação constrangedora: ficávamos tímidos, mais calados do que faladores, envergonhados um do outro e de nós mesmos. Talvez o falar e o ouvir transportasse a relação, que era distante e quase virtual, numa coisa concreta, real, e isso nos trouxesse o desconforto das coisas que não estão assim tão certas. Afinal de contas, se nos queríamos assim tanto, porque não nos conhecíamos ainda? Eu insistia neste ponto, mas a Joana nunca mostrava muito interesse, desviava o assunto e apontava para o futuro próximo, "tem calma, Fernando", dizia-me, "vemo-nos no Sudoeste, prometo".

Os meus amigos mais próximos sabiam da situação. Encaravam-na com uma mistura de apoio compreensivo - que vinha mais da amizade do que da lógica e da consciência deles - e gozo maldoso. Perguntavam-me pela Joana, "como é que ela está?", diziam-me, e depois provocavam-me "ou tens de ligar para o namorado dela para saber?" Eu ria-me, mas sentia-me desconfortável. A ideia de que ela podia ter outra pessoa atormentava-me. Por um lado, queria muito acreditar nela, confiar plenamente, não duvidar, não questionar, não pôr em causa. Mas, por outro, queria defender-me de mais um desgosto amoroso, não queria sentir-me enganado uma vez mais. Já tinha as minhas cicatrizes sentimentais.

Chegou, finalmente, o Sudoeste. As trocas de mensagem por Whatsapp intensificaram-se, mas, agora que penso nisso, eu mostrava muito mais entusiasmo do que a Joana. Ainda assim, ela revelava-se amorosa e com desejo de me ver. Acredito que fosse genuíno. Combinámos encontrar-nos num spot fácil para ambos antes do concerto de Calema. Cheguei antes da hora e fui ficando impaciente. A hora combinada chegou, mas a Joana não chegava. Esperei cinco, dez, quinze minutos. Mandava-lhe mensagem e ela não respondia. As últimas nem davam entregues. Comecei a desesperar. Não esperava que me fizesse ghosting. Senti-me profundamente enganado. Sentia uma vontade gigantesca de chorar, mas de raiva - raiva por não compreender. Porque raio me fazia ela uma coisa destas? E foi então que ela surgiu à minha frente, sorridente. Não disse nada, sorriu apenas. Os olhos brilhavam-lhe. Eu não sabia o que dizer, dentro de mim sentia um vulcão de felicidade e de alívio e de desejo, ao mesmo tempo que o meu cérebro tentava processar todas as emoções e pensamentos.

"Desculpa, Fernando, atrasei-me um bocadinho", disse ela. Beijámo-nos, eu não disse nada. Não conseguia. E então ela acrescentou "antes de continuarmos, preciso de te mostrar porque é que me atrasei e de explicar algumas coisas sobre mim de que ainda não falámos". Pegou-me na mão e levou-me. Percebi depois que nos encaminhávamos para a sua tenda. A minha confusão aumentava, mas não queria fazer perguntas, tinha medo de arruinar o mood. O que é que ela tinha em mente? Levar-me para a tenda logo, assim? Sem mais nada? É verdade que já tínhamos falado muito durante todas aquelas intermináveis semanas, mas mesmo assim era-me difícil conceber a situação.

Chegámos. "Fernando, esta é a Mariana." À porta da tenda estava sentada uma rapariga, uma miúda com os seus 13 ou 14 anos. "É a minha filha", disse a Joana. Fiquei boquiaberto. Cumprimentei a miúda, fi-lo de maneira desajeitada, estava demasiado confuso para conseguir compor frases e entabular conversa. A Joana olhava para mim com curiosidade; eu sentia um novelo no peito e um aperto no estômago e uma nuvem na cabeça. Ela deve ter percebido que eu fazia contas. "Sim, fui mãe com 16 anos. Isso incomoda-te?" Não soube o que responder. Não, seguramente não era isso que me incomodava. Mas, por certo, incomodava-me só ter sabido naquele instante da existência de uma Mariana.

Voltei para ao pé dos meus amigos. Não sei bem como me despedi delas. Não devo ter conseguido dizer mais do que "tenho de ir ali", penso eu. Não contei aos rapazes o que tinha acontecido. "Estás branco", diziam-me. "Estás bem?", insistiam. "Preciso de um copo", disse eu. E fui bebendo, bebendo muito. 

A Joana não me voltou a mandar mensagem. Não sei se por estar à espera que eu lhe dissesse mais alguma coisa, ou se por ter ficado chateada comigo. Eu também não lhe disse mais nada. E, da mesma forma, não tenho uma explicação exata para a minha reação e para o meu sentimento. Talvez eu me tenha sentido esmagado pela surpresa. Talvez a revelação me tenha assustado. Talvez o facto de ela ter omitido a existência da filha nas nossas longas conversas me tenha magoado muito mais do que devia.

Há uns tempos, voltei a entrar no Tinder. Ela lá estava, de novo, a Joana. Não interagimos. Entretanto, os meus amigos ficaram curiosos, "então e a Joana?", perguntavam. "Parece que afinal sempre tinha namorado", acabei por dizer para acabar com as conversas.

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