Crónica

Histórias de Amor Moderno: “O destino, às vezes, aquilo que tira com uma mão, acaba por tentar compensar com a outra”

“Era o cangalheiro. O cangalheiro que me ia atender, que ia limpar e vestir o meu Santiago, o meu querido Santiago. E que, no fim, ia arrumá-lo dentro de um caixão.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB American Sniper
13 de maio de 2023 Maria Olívia Sebastião

O amor pode nascer duma tragédia. Emendo: o amor pode morrer numa tragédia e depois nascer dela. Na noite dessa tragédia, lembro-me de ter acordado às seis e treze da madrugada. Como é que eu fixei isto? Há coisas que não se esquecem. Esse momento eu nunca vou esquecer. Estava sozinha na cama, o Santiago ainda não tinha chegado a casa. Trabalhar de noite num restaurante hip da Ericeira pode ter vantagens – e tem-nas, sobretudo no período em que os turistas abundam com as suas gorjetas de mãos largas e vida desafogada –, mas também pode ser muito duro.

Espreitei o telefone, seis da manhã é muito tarde até para uma noite de sábado do Santiago. "Estou a caminho. Até já", enviada às 3h42. Foram as últimas palavras que o Santiago me mandou na vida. Não sei se me dedicou mais algumas enquanto agonizava com a testa encostada ao vidro do carro, que nem sequer se partiu, tal foi ridículo o embate, uma coisa de nada contra um pinheiro na berma da estrada. Partiu-se o farol da esquerda e pouco mais. O Santiago morreu como sempre viveu, belo e sereno. Só lhe faltou sorrir. Que morte patética, que roubo injusto, que insulto este que os deuses me dedicaram com o silêncio insidioso das coisas que acontecem na calada da noite.

O destino, às vezes, aquilo que tira com uma mão, acaba por tentar compensar com a outra. Neste caso, depois de tamanha ignomínia – e tanta dor, e tanto desespero, e tantas vezes a palavra "porquê" gritada em agonia e em pranto, com a garganta quase a saltar-me fora do corpo –, seria apenas justo que o universo me mandasse um sinal, qualquer coisa a que me pudesse agarrar e sentir que afinal ainda valia a pena andar por aqui. Não exagero: naquela noite, eu perdi o sentido da vida.

No dia em que a tragédia chegou, deram-me a notícia com sedativos. Fiquei em casa como um vegetal. Um vegetal a esvair-se em lágrimas, como se tivessem amputado todos os braços a aloé e a sua geleia vertesse lentamente das entranhas, carregada de mágoa e de incompreensão. Quando consegui finalmente articular um pensamento, no dia seguinte, comecei a tentar tratar das burocracias. É penoso, é tortuoso que alguém ainda mergulhado em aflição e tonturas seja obrigado a, com os olhos inchados e as mãos tremeliquentas, preencher papéis e ouvir explicações. Mas queriam explicar-me o quê? Que o meu amor, o amor da minha vida, tinha tido um acidente a voltar do trabalho? Com zero miligramas de álcool no sangue? A cinquenta à hora? Um acidente ridículo de fraco, tão fraco que até a marca no maldito pinheiro mal se notava poucas horas mais tarde?

Quem me ajudou foi o Gonçalo. A única pessoa que não me mandou ter calma, que não me disse que tinha de ser forte, que não me repetiu inanidades condescendentes como "é assim a vida" ou a inaceitável "Deus leva os que ama". Disse-me só "que tristeza, Dona Clara, que grande desgraça", e abraçou-me, e eu chorei, chorei, chorei, deixei o mundo desabar até sentir ensopado o enchumaço do blazer daquele rapaz de barba mal feita. Que, por coincidência, era o agente funerário. O cangalheiro que me ia atender, que ia limpar e vestir o meu Santiago, o meu querido Santiago. E que, no fim, ia arrumá-lo dentro de um caixão – ele, tão bonito e sereno, os olhos fechados, as mãos lindas e direitas, prontas para me pegar ao colo e dizer-me, a rir-se, que tudo aquilo era uma grande partida de mau gosto. 

Depois de toda a convulsão que foram aqueles dias, do ir e vir de pessoas que me queriam ver, saber como eu estava – estava viva, caramba! Demasiado viva para um amor assim tão morto –, quando tudo ficou mais manso, fiz questão de agradecer ao Gonçalo por toda a atenção que me dedicou, por todo o cuidado e todo o carinho que demonstrou. Mandei-lhe uma mensagem. Respondeu-me com cordialidade, mas também com graça, com um espírito positivo que me fez sorrir pela primeira vez em semanas. Ao fim de algumas mensagens, perguntou-me se eu queria conversar um bocadinho com alguém, que teria todo o gosto em tomar café comigo. Fez-me o convite da maneira mais educada e serena que alguma vez li, pelo que acedi. Porque não? Que mal podia ter?

O Gonçalo é mais novo do que eu seis anos. Mas demo-nos tão bem, tão surpreendentemente bem, que o senti como o bálsamo perfeito. Depois daquele café veio outro e a seguir ao outro mais um. Eventualmente, jantámos, saímos, beijámo-nos. Começámos a namorar. Por mais bizarro que isso possa parecer, hoje estamos juntos. Obviamente, por mais tempo que passe, por mais que o nosso amor se construa, teremos sempre um fantasma na sala. Mas como é que se pode esquecer um amor que a morte cristalizou, não é? Admiro-o por saber viver com isso e por ter aprendido a partilhar-me com alguém que já cá não está. Ele compreende que eu nunca deixarei de amar o Santiago, percebe que o golpe que mo tirou foi demasiado rude para que algum dia possa cicatrizar. E assim essa ferida permanecerá viva comigo enquanto eu for também viva. E quem viver comigo terá sempre de conseguir partilhar-me com aquele que eu jamais deixarei de amar.

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