Histórias de Amor Moderno: “‘Mas ele não é… enfim, não é gay?’”
“Eu ia ficando cada vez mais intrigada com a possibilidade de o meu irmão andar a fazer o que não devia.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

"Era uma mulher. Era mulher, sim, estava com outra. A Marília garantiu-me que era, e a Marília não é pessoa de mentir nestas coisas, nem de inventar. É uma pessoa séria." A conversa chegou-me assim aos ouvidos. Aliás, talvez não tenha sido exatamente assim, é possível que tenha sido muito mais aos trambolhões e aos repelões, uma frase aqui, outra palavra ali, uma exclamação acolá, uma interjeição, outra questão, mais uma efabulação, um exagero, tudo tempero - tudo isto servia para acrescentar sabor, palavras e insinuações como especiarias de abrir o apetite, ingredientes para criar aroma e nos fazer arrebitar o nariz, alargar as narinas, ganhar espaço nos pulmões: ah, que bom… Conversas de intrigas são alimento para qualquer espírito, por mais que as pessoas o neguem.
Estávamos numa papelaria. Nem eu sei ao certo porquê - o meu irmão pediu-me que lá fosse entregar uma encomenda. A encomenda não era para a papelaria em si: aparentemente, existem agora aplicações que servem para vendermos coisas de que já não precisamos, objetos que não queremos mais; os pontos de entrega e de recolha desses objetos tornados encomendas em trânsito são, na maior parte das vezes, papelarias e mercearias. Pelo menos, em Lisboa. Eu, que venho da província, também tenho acesso às mesmas aplicações e aos mesmos serviços - vá lá, as novidades tecnológicas e o progresso chegaram democraticamente para todos. Mas não me tinha até agora deparado com a possibilidade de enviar e recolher coisas da papelaria. Na minha terra, faz-se isso nos correios - ou na florista, lembro-me agora que a florista também aceita certas encomendas.

As mulheres continuavam a sua conversa enquanto eu esperava, de encomenda na mão, para entregar no balcão - "não te preocupes, mostra este código e o senhor depois faz o resto", disse-me ele. As coisas que eu aprendo de cada vez que venho à cidade ver o Pedro, o mais novo dos meus irmãos, aquele que decidiu ficar por cá e que leva aquela vida sofisticada que eu imagino que as pessoas sofisticadas da cidade levam - escreve para as revistas, vai ver concertos, tira fotografias com músicos, usa gravatas várias vezes por ano, quando vai a galas, espetáculos e apresentações ("nas vernissages não se usa, é um bocadinho pacóvio", disse-me ele quando o questionei acerca de ter saído com o Mário, o namorado, para a inauguração de uma exposição de um artista qualquer muitíssimo pós-moderno, altamente talentoso na arte de fazer riscos e criar manchas de tinta razoavelmente coloridas, e de nenhum dos dois, nem o Pedro nem o Mário, levarem gravata - apenas colarinhos desabotoados de camisas claras, mas não brancas, e blazers simples, daqueles que são elegantes o suficiente para levar a jantares, mas simples o bastante para vestirem se quiserem tomar uma cerveja no pub).
"Mas ele não é… enfim, não é gay?" Esta pergunta entre as senhoras deixou-me intrigada. Então, estamos num bairro dito cool da cidade, no epicentro da modernidade, das novas tendências, da tolerância e das próprias vanguardas, e mesmo assim ainda há gente a preocupar-se com as preferências dos outros - e, principalmente, com a orientação sexual de alguém? Fiz-me espantada. "Coitadinho do Mário", disse uma das mulheres. "Tão bom rapaz", acrescentou. E a outra respondeu-lhe "mas custa-me acreditar que o Pedro lhe fizesse uma coisa dessas". E então, eu pensei em duas coisas: primeiro, fiquei aliviada, praticamente satisfeita, quando percebi que afinal as senhoras não estavam preocupadas com a sexualidade do homem em questão; depois, fiquei preocupada quando percebi que aquele casal, o Mário e o Pedro, podiam ser, muito provavelmente, o meu irmão e o namorado dele. Afinal de contas, estávamos no bairro deles, no centro de Lisboa. Não sendo uma aldeia, é um bairro com características muito populares, as pessoas conhecem-se, nos estabelecimentos tratam-nos pelo nome - tratam-nos, mas não a mim: a eles, ao Pedro, ao Mário e aos vizinhos, presumo.
As senhoras continuaram a acrescentar detalhes àquela conversa cheia de picante e de ingredientes. E eu ia ficando cada vez mais intrigada com a possibilidade de o meu irmão andar a fazer o que não devia, desrespeitando o seu companheiro de há muitos anos - e de quem muito gosto, meu querido Mário.

Confirmou-se: o Pedro em questão era mesmo o meu Pedro, meu irmãozinho de peluche, o meu mais bonito, mais querido de todos. Como é que foi possível, Pedro? "Mas isso foi ontem à noite?", perguntou uma das senhoras. "Bolas, as notícias aqui correm mesmo depressa", pensei para comigo. "Sim, no restaurante italiano, aquele das pastas caseiras e frescas, ali em cima", respondeu a primeira. "Sem vergonha nenhuma, diz que se abraçaram, que deram as mãos, que riram a bom rir, beberam vinho, brindaram, enfim, uma festa autêntica".
E, de repente, franzi os olhos e devo, toda eu, ter fervido por dentro, porque não me contive. Cheguei-me ao balcão, batia com a mão sobre o tampo de madeira, um pam muito seco, e disse "parem com isso, por favor". As senhoras olharam-me com espanto e com susto, olhos arregalados, sobrolhos arqueados, mãos tremeliquentas. O senhor da papelaria só disse "a senhora vai ter de aguardar a sua vez" - e eu só lhe disse "não se meta, eu espero pela minha vez, mas isto não é consigo". E depois olhei-as nos olhos, às duas, à vez: "Quem jantou ontem com o Pedro no italiano fui eu." Abriram-se as bocas, o espanto intensificou-se. "Sou a Natália, muito gosto", e estendi-lhes a mão. Cumprimentaram-me aparentemente confusas. "Sou a irmã mais velha do Pedro. E sim, ele é gay. Podem ficar descansadas." * Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

Histórias de Amor Moderno: “Fizemos ali mesmo, comigo de costas para ele, voltada para uma grande pedra, onde apoiava as mãos.”
“Abracei-os com força e inspirei fundo, com ternura e com saudade. Meus queridos. E se não nos voltássemos a ver?” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Bret Easton Ellis: “Escrever era mais divertido que a cocaína.”
Escritor absoluto e ícone de várias gerações. O autor do “Psicopata Americano” falou-nos de atração sexual, literatura e Moda, a propósito do seu novo romance “Estilhaços” – livro de suspense capaz de questionar o desejo heterossexual e gay? Quem deseja quem afinal? Quem se assume? Quem morre?