Crónica

Histórias de amor moderno: “Foi uma conversa a três, assim como o era a relação”

“Disse ao Luís para não esperar por mim. Não reclamou. Mas ficou sentido, claro. Seja como for, o acordo era tácito, don’t ask, don’t tell.” Todos os sábados, a Máxima publica um conta sobre como é o amor no séc. XXI, a partir de um caso real.

Selvagens (2012).
Selvagens (2012). Foto: IMDB
06 de maio de 2023 Maria Olívia Sebastião

Começou tudo num concerto insólito que demos em Santo Tirso. Foi numa noite de outono, havia castanhas assadas. Não gosto de castanhas, nem sei porque é que me lembro destes pormenores. Íamos dar um concerto num bar que ficava num centro comercial, numas galerias. Não recordo o nome nem do bar, nem o do centro comercial. Era qualquer coisa a remeter para um universo obscuro, cheio de sombras, demónios e gárgulas pintados na porta de entrada. Talvez se chamasse assim mesmo, Gárgula.

Tem graça porque, agora que penso nisso, era isso mesmo que o nosso baterista parecia, uma gárgula. E foi só nessa noite que eu verdadeiramente reparei nele. Na altura, eu já era casada com o guitarrista e compositor da banda, o Luís Filipe. No início, era o Luís quem fazia as vezes de baterista, inventava percussões, batuques, usava tímbalos, tarolas e pratos de origens difusas. Não era um expert, mas as canções tinham um bom beat, a nossa música fazia sentido. Como era ele que as compunha, sabia muito bem como fazer com que resultassem. O Rui Pedro, o baterista, chegou à banda algum tempo mais tarde, já nós tínhamos lançado os dois EPs.

Quando chegámos àquela noite do concerto de Santo Tirso, o Rui Pedro já ensaiava connosco havia, talvez, três meses. Só que ainda não tínhamos tocado ao vivo com ele, foi a primeira vez. E uma pessoa num ensaio não é igual a uma pessoa quando toca ao vivo, num palco, à frente de 120 ou 180 pessoas desconhecidas. Faz diferença. Eu, como vocalista da banda, a frontwoman, estava numa posição em que não me dava ao trabalho de olhar para uma espécie de estagiário de músico, ainda por cima mais novo - na verdade, na altura nem liguei nada a isso, portanto, não teve a ver com hierarquia ou valor ou idade, nada disso me passou pela cabeça, simplesmente não lhe liguei, tinha outras prioridades. E mais: eu tinha casado com o Luís Filipe pouco mais de um ano antes, não me ocorria a possibilidade de achar piada a outro homem, e muito menos a um rapaz, maior de idade mas assim de raspão, praticamente imberbe.

Eu e o Luís Filipe namorámos um ano e oito meses. Ao fim de um ano decidimos casar; demorámos oito meses até conseguir consumar o desidério. Éramos muito apaixonados. Mas também éramos - e somos, ainda hoje - espíritos livres. Nunca omitimos um do outro atrações por outras pessoas. Não éramos, como hoje se usa ser, praticantes credenciados do poliamor, mas também nunca fomos monogâmicos fundamentalistas. E falo por mim, que desde o início do namoro com o Luís Filipe fui tendo outros relacionamentos - todos pontuais, todos frugais e fugazes, é certo. Mas ainda assim relacionamentos, físico no físico, noites fora de casa. Ele terá tido os seus, com certeza. O segredo era não perguntar um ao outro. Afinal de contas, o amor prevalece, não é?

Quando o Rui Pedro surgiu na banda, chegou como referência do Luís Filipe. Não eram bem amigos, mas o Luís tinha namorado com a irmã mais velha do Rui, muitos anos antes, era o Rui ainda miúdo quando se conheceram, e a relação ficou. O Luís sabia que o Rui tocava; o Rui era fã das composições do Luís. Um dia chegou em que a fome se juntou à vontade de comer e o Rui Pedro se tornou baterista dos Balaclava (o nome da banda não era este, mas não pretendo expor os meus companheiros).

E foi neste contexto que chegámos à célebre noite de Santo Tirso, num bar pequenito numas galerias comerciais. O Rui Pedro deu um show incrível. Quem diria que aquele menino, praticamente sem barba, com um corte de cabelo horrível, magrinho, quase sem cor, quando posto atrás de uma bateria se transformava num monstro, numa besta. Forte, ritmado, certo, inamovível. Cada break seu era um espasmo meu. Nossa senhora! Que miúdo mais sexy a dar cabo dos tambores. Partia a loiça toda e fazia uma expressão inigualável, como se fosse uma criança e o seu rosto infantil ganhasse, com o esforço, a expressão de um adulto. Nunca vi nada tão sensual.

Nessa noite, eu e o Rui Pedro saímos, só os dois, depois de arrumadas as tralhas. Disse ao Luís para não esperar por mim. Não reclamou. Mas ficou sentido, claro. Seja como for, o acordo era tácito, don’t ask, don’t tell. Foi uma noite longa, obviamente. No dia seguinte, era já manhã, quase meio-dia, quando entrei no quarto - no meu e do Luís. Não conversámos. Ele grunhiu qualquer coisa, eu fingi que era tudo normal. Porém, com o passar do tempo, eu não me desliguei do Rui. E não acabei com o Luís. E todos sabíamos uns dos outros. Até que a conversa se tornou inevitável. Se continuássemos assim, os Balaclava não duravam nem mais uma semana.

Foi uma conversa a três, assim como o era a relação. Todos dissémos o que queríamos, o que esperávamos, o que desejávamos. Não estávamos todos no mesmo patamar, e isso dificultou um bocadinho as coisas. O Rui Pedro queria que eu fosse namorada dele em regime de exclusividade; eu queria continuar casada com o Luís, mas precisava do Rui para sentir acesa a chama da vida; o Luís era o mais confuso: não me queria largar, mas assim também não conseguia ser feliz - acho que era o orgulho de macho dele que estava ferido. Eu, obviamente em vantagem, decidi o que fazer: não se muda nada, continuamos assim e logo se vê. A única coisa que acabou, desde então, foi a banda, os Balaclava não existem desde os confinamentos da pandemia. O resto continua. E acho que somos todos felizes. E não, não durmo com os dois ao mesmo tempo. Mas, já agora: que mal tinha se o fizesse?
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