Histórias de Amor Moderno: “Beijámo-nos, pronto. O assunto morreria obviamente ali. Não foi nada, não significou nada.”
“O Rodrigo era bonito. Ainda é. Calmo, não precisava de ser o centro das atenções, como sucedia com o Raul.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Quando vives numa pequena vila do interior, não há muito a que possas aspirar se o plano para a tua vida consistir em manteres-te por ali. Nunca fui de ter muitas aspirações nem grandes sonhos. Manter-me por ali nunca me pareceu um mau plano. Fiz o nono ano sem brilho nem dificuldades e depois mudei-me para a secundária, que ficava na cidade mais próxima. E foi aí que, pela primeira vez, me senti mesmo apaixonada.
Eu tinha tido um ou dois namoradinhos no ciclo. Quem não os teve? Naturalmente, nada de sério, beijinhos e mãos dadas, uns retiros pontuais em recantos mais escuros e isolados, com os atrevimentos a que isso dava direito. Mas no secundário conheci o Raul. E quando conheci o Raul, achei que seria ele para sempre. Ele, cinco anos mais velho que eu, ainda andava naquela escola não por ser mau aluno, mas porque hesitava acerca do que escolher para o futuro. Não sabia que curso queria tirar no ensino superior. Saltou de área em área, de turma em turma, sempre com aquele cabelo liso um bocadinho acima dos ombros que puxava constante mente para trás com a mão direita.
Quando cheguei à nova escola, o Raul era daqueles rapazes populares como os dos filmes que misturam cheerleaders com quarterbacks nas histórias dos liceus americanos. Por alguma razão decidiu meter conversa comigo. Eu parecia mais velha do que era. Certa formas do meu corpo já se haviam desenvolvido com curvas a que os adolescentes convencionais não estavam habituados. O Raul, com os seus quase 20 anos então, já tinha certamente visto contornos semelhantes, mas em mulheres mais velhas. Talvez isso o tenha compelido a abordar-me. "Como te chamas?", perguntou-me um dia, do nada, perto do ginásio. "Felícia", disse eu, surpreendida pela pergunta. "Félit-chiaa!", brincou, dando-me um acabamento italiano ao nome. Não demorou até que começássemos a namorar. Apaixonámo-nos como só os adolescentes.
Quando o Raul decidiu o que queria fazer da vida estava eu no 11.º ano. Ele quis ir estudar Cinema para Lisboa. Queria ir e foi. Eu deixei-me ficar. Acabei o liceu e depois voltei à vila. Arranjei emprego na papelaria. O Raul ia para Lisboa durante a semana e voltava a Évora sempre que não tinha aulas. Passávamos os fins de semana juntos, além das férias e de todas as outras oportunidades. Ocasionalmente, eu ia a Lisboa ter com ele. A princípio, a cidade intimidava-me: grande, barulhenta, confusa, cheia de gente e de estímulos, era para mim um mundo novo, diferente daquele onde crescera, no Alentejo, e até da Lisboa que eu achava que existia, que era composta pelo Jardim Zoológico, o Oceanário e o Colombo, que visitava de vez em quando com os meus pais, geralmente por altura do Natal.

Foram bons esses tempos de descoberta da cidade grande. Eu e o Raul e as pessoas que o Raul foi conhecendo. Ele tinha muitos amigos, todos eles interessantes, claro. Pessoas das artes. Muitos deles do cinema. Todos adoravam o Godard e liam o Boris Vian e o Bukowski. Enumeravam guilty pleasures que eu reconhecia, mas de que gostava sem qualquer sentimento de culpa - ingénua, eu, sabia lá naquela altura que não era de bom tom ser fã do Schwarzenegger ou que não se usava gostar dos Coldplay. Para mim, gostos eram gostos e não se discutiam. Só que afinal, sim, discutiam-se e não era pouco. Foram muitas e foram longas - e intensas - as tertúlias em casa do Raul. Uma casa que partilhava com o Rodrigo, um rapaz um bocadinho mais novo do que ele - portanto, pouco mais velho do que eu.
O Rodrigo era bonito. Ainda é. Calmo, não precisava de ser o centro das atenções, como sucedia com o Raul. Nas alturas em que estávamos só os três lá em casa, o Raul parecia disputar com o Rodrigo a minha atenção, ainda que o Rodrigo nunca tivesse dado sinais de querer a minha atenção para o que quer que fosse. Era uma forma de afirmação do Raul - e a indiferença talvez também fosse uma forma de afirmação do outro.
Um dia, beijámo-nos, eu e o Rodrigo. Foi um impulso, numa festa da faculdade deles. Estávamos cá fora a fumar, cada um com a sua bebida. Costumávamos conversar muito e bem. Deu-se um momento de solidão. Talvez andássemos a acumular tensões e curiosidades acerca um do outro até então. O momento surgiu, o descuido aconteceu. Beijámo-nos, pronto. Com gosto e com vergonha. "Mais um guilty pleasure", disse-lhe eu. Ele riu-se. Ficámos os dois sem palavras, atrapalhados. O assunto morreria obviamente ali. Não foi nada, não significou nada. Foi um não-acontecimento.
Tudo isto aconteceu há uns bons 15 anos. O Raul terminou depois o curso, mas não conseguiu trabalho em cinema. Montou antes uma empresa de vídeos de festividades e ocasiões especiais, sendo o mercado dos casamentos o mais rentável. Fui viver com ele para Évora e passei a ajudá-lo na firma, como administrativa e, até certo ponto, assistente. O negócio corria bem.

O Raul não perdeu o contacto com os amigos de Lisboa. E entre eles, claro, o Rodrigo. Eram os melhores amigos. Íamos a Lisboa com frequência e o Rodrigo visitava-nos em Évora sempre que podia. Ele e a namorada (que nem sempre foi a mesma). Ao longo dos anos, os nossos amigos passaram a ser os amigos do Rodrigo e vice-versa. Os programas para viagens e fins de semana de uns e de outros eram regularmente partilhados e incluíam sempre ambas as partes. E foi então que aconteceu aquilo que sempre esteve para acontecer. Numa dessas viagens - fomos todos para Sevilha -, voltámos a ter um momento. Ele tinha ido com a sua última namorada, a Susana, e eu com o Raul. Havia mais amigos. Não sei como ficámos sozinhos, mas o certo é que ficámos. E dessa vez não demos só um beijo.
Os tempos foram passando e aquilo que começou por ser nada e que depois achávamos ter sido só um erro acabou por se revelar uma paixão. Mas uma paixão muito difícil de conter, e mais ainda de resolver. Como é que se desfaz uma coisa assim, entre amigos? Entre melhores amigos! Por muita vontade que tivéssemos, nunca tivemos coragem para assumir, para nos chegarmos à frente, para revelar, para confrontar. Fomos cobardes, arrastámos a situação sem renunciar à paixão que nos puxava, mas também sem sermos capazes de pôr um ponto final nas relações que nos prendiam e nos tornavam infelizes.
Até que certa noite adormecemos nos braços um do outro. Dormimos numa cabana de lenha na quinta de uns amigos nossos. Fomos acordados pelo grito espantado da dona da casa, que não teve como manter a discrição. Toda a gente ficou a saber, foi um escândalo. Foi o caos, uma confusão tremenda. O Raul, furioso, claro, queria bater em qualquer coisa. Não sei se ficou mais magoado pela minha traição ou pela traição do Rodrigo. Houve momentos em que pareceu olhar-me como se eu lhe tivesse estragado o amigo. Saiu, pegou no carro e foi-se embora.
Separámo-nos, eu do Raul. Voltei para a vila. O Rodrigo também se separou da Susana. Continua em Lisboa. Vivemos distantes e num impasse. Vemo-nos sempre que podemos. Estamos nisto há mais de um ano. Acredito que continuamos apaixonados. Há pouco tempo descobri que estou grávida. Ainda não lhe disse. Havemos de ser finalmente felizes.

Mundo, Diversão, Histórias de Amor Moderno, Relação, Adolescência, Relação extraconjugal
Histórias de Amor Moderno: “A Luísa foi o que tive mais próximo de uma relação esotérica.”
"Tudo nas nossas vidas, dos gestos aos gostos, das palavras aos olhares, dos sentimentos às datas, aos dias, às horas, tinha para ela um significado extramundano." Todos os sábados, a Máxima publica um conta sobre como é o amor no séc. XXI, a partir de um caso real.
Histórias de amor moderno: “Foi uma conversa a três, assim como o era a relação”
“Disse ao Luís para não esperar por mim. Não reclamou. Mas ficou sentido, claro. Seja como for, o acordo era tácito, don’t ask, don’t tell.” Todos os sábados, a Máxima publica um conta sobre como é o amor no séc. XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno: “O destino, às vezes, aquilo que tira com uma mão, acaba por tentar compensar com a outra”
“Era o cangalheiro. O cangalheiro que me ia atender, que ia limpar e vestir o meu Santiago, o meu querido Santiago. E que, no fim, ia arrumá-lo dentro de um caixão.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno: “A ideia de que ela podia ter outra pessoa atormentava-me”
“Voltei para ao pé dos meus amigos. Não sei bem como me despedi delas. Não devo ter conseguido dizer mais do que ‘tenho de ir ali’.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.