Crónica

Histórias de amor moderno: “Com os ciúmes, insultava-me e atirava coisas pela janela”

“Chegava de viagem, inquiria, discutíamos, acusava-me de o trair, insulta-me aos berros para o bairro inteiro ouvir e desatava a atirar coisas da janela do terceiro andar.” Todos os sábados, a Máxima publica um conta sobre como é o amor no séc. XXI, a partir de um caso real.

Dormindo com o Inimigo (1991).
Dormindo com o Inimigo (1991). Foto: 20th Century Fox
08 de abril de 2023 Maria Olívia Sebastião

O meu ex-companheiro viajava muito em trabalho. Ainda hoje viaja, na realidade. Tanto quanto sei, continua no mesmo emprego: é PR de uma artista musical muito famosa, que passa a vida entre Portugal, Brasil e os PALOP. Isto não seria problema - ou, se calhar, até podia ser, já que, como diz o povo, "quem desconfia não é de confiança" - se ele não fosse uma das pessoas mais ciumentas que já conheci.

Sempre que regressava de uma viagem, havia discussão, fazia-me autênticos interrogatórios acerca de todos os meus passos, as minhas horas, a minha agenda, as minhas amizades, os meus compromissos. Chegava a ser extenuante. Eu levo uma vida pacata, trabalho bastante no escritório e, na altura, estava a terminar o doutoramento numa especificidade do âmbito da comunicação empresarial. 

As nossas discussões tendiam a escalar rapidamente. Dos interrogatórios passávamos às dúvidas, das dúvidas às desconfianças, das desconfianças às acusações perentórias e destas aos insultos brejeiros e graves - de vaca para baixo, com inúmeras passagens por "vagabunda", que eu acredito que seja uma influência que ele apanhou por causa das dezenas de viagens que fez ao Nordeste brasileiro.

Com o tempo, as discussões raramente melhoram, e esta é uma regra que todas as mulheres devem ter em mente: se ele te levanta a mão aos seis meses, aos seis anos não vai ser só a mão que ele te vai mostrar e, muito provavelmente, não se ficará pela amostra. Por isso, no dia em que te levantar a mão, minha amiga, pega nas coisas e sai daí.

No meu caso, a violência nunca foi física, mas chegámos a pontos que me envergonham só de pensar. Além da gritaria e dos insultos, de vez em quando atirava coisas - ora contra a parede, ora pela janela. O atirar pela janela começou a tornar-se um hábito. Chegava de viagem, inquiria, discutíamos, acusava-me de o trair, insulta-me aos berros para o bairro inteiro ouvir e desatava a atirar coisas da janela do terceiro andar. Escovas de cabelo, talheres, nalas, peças de roupa, até garrafas de whisky, era o que apanhasse à mão. Não sei como nunca acertou em ninguém.

Claro, a seguir ao embaraço da discussão, vinha a vergonha profunda de ter de ir apanhar as coisas ao meio da rua, com todo o bairro a assistir, bisbilhotando, sussurrando, sorrindo com malícia, tendo pena de mim, da coitadinha, da pobrezinha, daquela que ficava sempre, que não saía nunca dali, que aturava aquilo tudo, aquela besta. Era uma humilhação constante.

A última discussão que tivemos não foi exatamente igual. Chegou calmo, parecia até apaixonado. Com o fogo do regresso, fomos para a cama pouco depois de ele ter chegado a casa. Começámos a fazer amor sem demoras, com sofreguidão. Estava a saber-me bem, há muito tempo que não fazíamos assim. Até que decidimos mudar de posição. Foi o fim do mundo. Quando ele tirou, enfim, quando saiu de mim, notou que tinha secreção esbranquiçada no sexo. Foi um horror. Acusou-me de tudo. Tentei explicar-lhe que, às vezes, temos corrimento vaginal branco. Não acreditou. Agarrou-me pelo pescoço e, nesse dia sim, levantou-me a mão. Não me bateu, mas gritou-me tanto que eu nem me conseguia defender, fiquei estarrecida, só conseguia chorar. Ele abriu a janela e começou a atirar tudo fora, malas, malas de viagem, sapatos, vestidos, roupa interior, tudo o que era meu naquele roupeiro foi parar à rua. Fechei-me na casa de banho assustada, a chorar. Nem o telefone tinha comigo para pedir ajuda a alguém.

Ao fim de algum tempo, acalmou-se. Como eu não dizia nada, veio bater à porta da casa de banho. "Luísa, vai apanhar as tuas coisas", disse ele. Não respondi. Insistiu e insistiu, sempre "Luísa, aquilo está tudo espalhado na rua", "é uma vergonha, as pessoas vão ver tudo". Acabei por lhe responder, "se quiseres, vai tu apanhar, eu não saio daqui". Ao fim de uns minutos, ouvi-o sair. Tranquei-lhe a porta, barrei-me em casa e saquei-lhe um cartão de crédito. Ele teve de ir dormir sei lá eu onde - nem me interessa. No dia seguinte, derreti-lhe o plafond em roupas e sapatos, tudo aquilo que ele deitou fora. Nunca mais me falou, nem para pedir o dinheiro de volta. O mais curioso é que, dessa vez e só dessa, eu o tinha traído mesmo.

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