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Histórias de Amor Moderno: “Nunca me enganei, nunca acreditei que ela fosse só minha”

“O estômago doía-me se ficávamos separadas por mais do que alguns minutos. Todos os pedacinhos de tempo livre eram passados no quarto.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / 'Blue is the Warmest Color'
10 de agosto de 2024 às 11:40 Maria Olívia Sebastião

Os Jogos Olímpicos lembram-me sempre a Elisa. Especialmente quando surgem as notícias - e elas acabam por surgir, é inevitável - dos atletas (que são quase maioritariamente "as" atletas) castigados ou mesmo expulsos das residências das vilas olímpicas. São histórias que me fazem viajar até momentos e pensamentos antigos, dos tempos em que nos encontrávamos no velho centro de estágios do Jamor.

Quem assiste aos Jogos - o cidadão comum, aquele que durante a maior parte do tempo não se lembra sequer de que muitas daquelas modalidades existem - nem sempre tem presente que aqueles super-homens e super-mulheres que nos entretêm ao longo de um mês, prontos para superarem todos os limites que se julgava que os seres humanos tivessem, são pessoas muito jovens que dedicam quase exclusivamente o tempo da sua vida a uma modalidade para que, de quatro em quatro anos, possam lutar pelo título de herói.

Eu nunca fui às olimpíadas. Era uma atleta razoável no contexto português, mas a minha ambição limitava-se a disputar finais dos 400 metros barreiras nos Campeonatos Nacionais e pouco mais. As poucas medalhas que coleciono só não são irrelevantes porque me deram trabalho a conquistar. Porém, tenho consciência de que valem pouco - ora porque as competições não eram importantes, ou porque as melhores atletas não competiram naquela edição, ou até por ambas as razões, em conjunto.

A qualidade e o talento que eu tinha permitiram-me, ainda assim, resultados razoáveis, o que me concedeu uma quantidade muito generosa de convocatórias para os estágios da equipa nacional, principalmente nas categorias jovens - sim, uma atleta quando chega a sénior já leva experiência de veterana. Digo experiência, pelo menos, no que respeita ao desporto de alta competição, já que à vida comum não temos propriamente acesso, vivemos em redomas estabelecidas por horários, regras, impedimentos e rotinas que nos afastam do crescimento mundano de que os demais podem desfrutar. E era por isso que aquelas concentrações no centro de estágios eram para nós uma espécie de espaço de liberdade. Pode parecer antagónico, bem sei, o ambiente é controlado, há vigilância. Mas também há duas ou três dezenas de raparigas ainda muito jovens, reunidas no mesmo lugar, partilhando quartos de duas e de quatro camas. Tudo se arranja. Tudo é possível. E as olheiras do dia seguinte, com chamadas para o pequeno-almoço às oito da manhã, eram tão denunciantes e dolorosas quanto saborosas.

Conheci a Elisa durante um estágio numa fase um pouco mais adiantada do meu percurso pelo atletismo. Andávamos ambas naquele limbo entre as competições seniores e os escalões jovens. Não competíamos na mesma categoria. A Elisa era saltadora, o comprimento era a sua especialidade. Era também velocista, mas na corrida o seu talento não era tão evidente.

Quando soube que iríamos partilhar o mesmo quarto, senti que ia estar perto de uma espécie de lenda da juventude. As histórias da Elisa abundavam, assim como abundavam os troféus e medalhas de ouro por ela conquistadas. Mas o que a tornava mítica eram mesmo os relatos das suas aventuras durante os estágios. Fugas, festas clandestinas, expedições noturnas pelas matas, havia um sem número de histórias sobre ela que eu já tinha ouvido alguém contar, com mais ou com menos exagero, dependendo da versão e do narrador.

"Preferes ficar em cima ou em baixo?", perguntou-me quando abriu a porta e entrámos no quarto. Eu não respondi logo, ela olhou para mim de sobrancelhas erguidas e depois apontou para o beliche. "Cima ou baixo? É uma pergunta simples, criaturinha." Balbuciei, hesitei, estava atrapalhada. "Pois bem, fico eu em cima. Quem cala, consente", atirou a mochila para cima da cama e saltou para o colchão do primeiro andar. A Elisa era assim, decidida, prática, rápida, forte. Líder. "Tens problemas de fala?" A pergunta, meio a gozar, meio a sério, intimidou-me e, de novo, não consegui responder. Depois riu-se e dependurou-se da cama, olhou para mim e disse-me, talvez preocupada, "então, mas não falas mesmo?" Ri-me, senti-me embaraçada, mas também divertida. Ela parecia ser amistosa.

Na primeira noite que passámos no centro, falámos e falámos e falámos. Foi uma conversa de revelações em que nos demos a conhecer. Fomos dormir tarde e eu tive muita dificuldade em adormecer, tal o entusiasmo que sentia por estar ali com a Elisa. Passámos o dia seguinte juntas sempre que possível, o que significa que só nos separámos nos treinos específicos. À noite, fiquei a conhecer verdadeiramente o espírito rebelde de que tanto ouvira falar. Arranjámos uma distração combinada com as raparigas do corredor do lado e, quando o plano foi posto em marcha, saltámos pela janela - estávamos no piso térreo, era uma saída fácil. "Vamos fazer um trilho que eu conheço", desafiara a Elisa. E lá fomos. Bosque adentro, chegámos a uma pequena clareira e parámos. Ela pegou-me na mão e o que aconteceu foi muito mais forte do que eu. Foi um turbilhão, foi um terramoto, foi uma avalanche.

Passámos o resto do estágio num estado de paixão esfomeada. Tudo era demasiado físico. O estômago doía-me se ficávamos separadas por mais do que alguns minutos. Todos os pedacinhos de tempo livre eram passados no quarto. O medo de sermos apanhadas não se comparava ao desejo que tínhamos uma da outra. Eu nunca antes me relacionara com outra mulher. Eu era, aliás, muitíssimo inexperiente no que toca a relações amorosas. Aquele foi, de certo modo, um estágio de aprendizagem para mim - sobre o amor, sobre o prazer, sobre o corpo, sobre o desejo.

O regresso a casa foi doloroso. Além da separação física de Elisa, havia o segredo e a obrigação de o manter. A concentração no Jamor concedera-nos um ambiente protegido. Mesmo que alguém descobrisse, mesmo que alguém soubesse ou apenas desconfiasse, a camaradagem havia de nos proteger. Só que no mundo real, cá fora, as coisas não funcionavam assim. Falávamos quase exclusivamente por mensagens, para reduzir os riscos de exposição. Mas isso era muito pouco.

O tempo ia passando e eu só pensava no próximo estágio ou na próxima competição ou na ocasião seguinte em que pudéssemos estar juntas. Os intervalos e a distância foram tornando cada vez mais difícil uma relação que, logo desde nascença, tinha poucas probabilidades de sobreviver. Éramos amantes pontuais, quase de ocasião. Nunca fomos verdadeiras companheiras uma da outra. E, se eu era dedicada e profundamente apaixonada, sabia que a Elisa tinha um espírito diferente - mais livre, mais rebelde, mais intenso, mais conquistador. Nunca me enganei, nunca acreditei que ela fosse só minha. E nunca me atrevi a exigir que fosse.

A passagem do tempo trouxe outros obstáculos. Para mim, pelo menos. A subida de escalão não correu tão bem quanto eu esperava ou desejava. Quando vamos deixando de aparecer no pódio, a nossa relevância vai desaparecendo dos radares dos selecionadores. Aos poucos, as convocatórias para as equipas nacionais foram-se tornando mais raras. E, ao fim de alguns anos, deixaram de acontecer. A Elisa, por seu lado, continuava pujante e dominante. Imagino que a sua lenda continuasse a crescer, mesmo quando deixou de ser uma adolescente rebelde.

Como não podia ficar a vida inteira à espera dela, acabei por me aproximar de um outro atleta, também ele saltador, tal como Elisa, e também ele talentoso, com bons resultados. Quando nos encontrávamos nos meetings, eu e Elisa ainda disparávamos aquelas faíscas que nos fizeram tão intensas e tão felizes. Mesmo perto do Cláudio, com quem a minha relação se tornava cada vez mais séria, a cumplicidade e o desejo entre nós duas não diminuíam. Foi o tempo quem se encarregou de desfazer o que ainda restava daquele estágio inicial e distante.

A minha ligação ao desporto mantém-se. Foi prolongada através do Cláudio, com quem acabei por me casar - numa cerimónia civil e pouco solene, mas sentida e divertida. Não sei como seria a minha vida se tudo tivesse sido diferente lá atrás, antes de as barreiras no meu percurso se terem tornado demasiadas e intransponíveis, mas sei que não sou infeliz assim, como estou. Não vejo a Elisa há já alguns anos. Ainda penso nela, especialmente quando há Jogos Olímpicos e histórias de atletas que se portaram mal nos dormitórios. O meu coração estará sempre com eles.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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