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Histórias de Amor Moderno: “Ele deixou-me por outra. Fui trocada. A minha história é um lugar-comum.”

“Vou à danceteria não porque preciso, mas porque gosto, gosto mesmo. (...) Porque não manter-me assim, solteira, livre e disponível?” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
10 de junho de 2023 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Eu tinha 44 anos feitos há pouco quando o meu marido me deixou. O meu ex-marido. Já passaram quase dois anos e ainda não me habituei à nova designação. Nem meteu os papéis para o divórcio, não houve grandes discussões, nada de escaramuças, acusações ou explicações: uma noite, chegou a casa já bastante tarde, como era cada vez mais habitual. Chamou-me e disse "Marília, vou-me embora, vou sair de casa". "Está bem, então sai", foi tudo o que consegui responder, em parte por estar meio a dormir, em parte por não dar grande crédito ao que me dizia.

O meu marido - o meu ex-marido - tinha ataques destes com assinalável frequência, momentos em que me dizia "já não aguento mais", "isto não é vida para mim", "já não te amo", "não sei o que fazemos juntos" e depois, passado uns dias, tudo voltava ao normal sem que fosse preciso grandes conversas, pedidos de desculpa nem arrependimentos. As coisas arrumavam-se sozinhas, eu não guardava rancores e ele não conservava remorsos. Só que desta vez foi diferente. No dia seguinte, quando cheguei a casa, ele tinha levado duas malas com roupas e sapatos, escova de dentes, um perfume e um prato do Benfica que o padrinho lhe deu, era ele criança - e que por duas vezes o impedi de partir depois de perderem finais europeias.

Eu sei que ter 44, 45, 46 anos não é um atestado de velhice para ninguém que viva numa grande cidade, que tenha uma vida social saudável e agitada, vários grupos de amigos e ainda a maravilha das aplicações no telefone que ajudam as pessoas a encontrarem-se. Agora, experimentem ficar sozinhas com esta idade num pequeno lugar da província, com umas poucas dezenas de habitantes, onde a vida está presa aos compromissos - o trabalho, a casa, os animais domésticos - e a vida social consiste em ir à missa e ao único café da aldeia, quase sempre cheio de homens de boina encostados ao balcão a beber minis.

Nunca fui de missas nem de religiões. Quando, aliás, fiquei sozinha, a minha irmã - que está emigrada nos arredores de Paris, onde já tinha há décadas parte da família do lado do meu pai - telefonou-me e disse-me "porque não te juntas a essa nova igreja que abriram agora?", mas eu imediatamente rejeitei. É uma igreja evangélica neopentecostal, uma importação do Brasil com um nome daqueles que dizem que Deus nos salva. Salva, mas tem um preço e sai caro, pelo que sei. Não me dei aos católicos da tradição, também não me ia entregar a uma seita que canta de mãos no ar entre pessoas que desmaiam nos braços do pastor enquanto recebem o toque do Senhor, só para conseguir conhecer pessoas e ter uma vida menos solitária. Tenho a minha dignidade.

O meu marido nunca quis ter filhos. O meu ex-marido. Agora, se calhar, muda de ideias. Sim, ele tem outra. Ele deixou-me por outra. Fui trocada. A minha história é um lugar-comum. De qualquer modo, nunca tivemos filhos. Ele não queria, eu não insistia, também nunca fiz muita questão, suponho. É possível que um dia me arrependa. Por enquanto, se por um lado me sinto só e a ausência de filhos me faz carregar o peso do vazio de uma relação de quase 20 anos que redundou em nada, por outro lado permite-me uma liberdade de que nunca antes gozei: para ser eu mesma, de acordo com o que quero e com o que me apetece em dado momento. Sem ter de prestar contas a ninguém.

Esta liberdade foi determinante para que eu tivesse podido optar pela alternativa à vida social que me era oferecida pela Igreja Renascer em Deus. A menos de dez minutos de mim, junto à célebre Estrada Nacional 2, há uma danceteria, a Danceteria Felicidade. As pessoas da cidade hão de achar tudo isto muito pindérico, muito risível, até o nome - pois fiquem sabendo que Felicidade era o nome da falecida mulher do dono do estabelecimento, um homem por certo muito mais íntegro do que o meu ex-marido e que manteve, mesmo depois de a morte os ter separado, a ligação à mulher da sua vida.

As matinés de domingo são o ponto alto da Danceteria. O DJ residente faz uma escolha ampla e diversificada que vai da lambada brasileira às baladas rock dos anos 80, dos grandes sucessos de Roberto Carlos aos momentos de diversão popularucha protagonizados por nomes consagrados da canção brejeira portuguesa, ou, se preferirem, estrelas da música pimba. É durante as baladas - dos Bon Jovi, dos Guns ‘n’ Roses, dos Extreme - que as pessoas se aproximam de maneira mais íntima. Os solitários, pelo menos. Embora haja entre o público alguns casais e pessoas que só lá vão pela diversão, para passar um bom bocado, a verdade é que os solitários emergem e se revelam no momento em que, aos primeiros compassos de uma balada, pegam na mão deste ou daquela e o ritual de aproximação começa.

O que começou por ser a minha tábua de salvação para uma vida em que me sentia desorientada tornou-se, aos poucos, numa fonte de grande entusiasmo e de prazer. Vou à danceteria não porque preciso, mas porque gosto, gosto mesmo. A princípio, esperava encontrar ali um companheiro, um namorado novo, sei lá, o amor, talvez o amor que eu nunca tive. Mas com o tempo fui percebendo que essa abordagem não me traria grande ganho. Porque não manter-me assim, solteira, livre e disponível? E levar dali sempre que me desse vontade qualquer Manuel, Luís ou Joaquim, sem expectativas nem compromissos? Fazemos o que temos a fazer. Às vezes é bom, outras vezes não. Mas vamos experimentando, vamos conhecendo.

Sinto que não estou no escuro, que aprendi coisas com a vida desde que optei por lidar com a solidão por conta própria, sem precisar de apoios nem de bengalas, sem ter de recorrer ao miserabilismo paternalista de um homem que me resolvesse o problema de estar sozinha. Uma mulher só está sozinha se quiser. E não admito que me julguem. Da minha vida sei eu.

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