Histórias de Amor Moderno: “Éramos dois gatos escaldados, nenhum de nós queria passar para o nível seguinte sem mais nem menos”
“A superfície, demasiado nervosa, mostrava muita agitação: uma voz que facilmente se tornava aguda, demasiado aguda, esganiçada.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

A campainha tocou e eu fiquei apática, como se uma entidade superior, talvez omnisciente, me segurasse e dissesse "espera, Cláudia, não te mexas". Há momentos na vida que têm muita força, momentos que pressentimos serem decisivos, definitivos. Há microssegundos que mudam tudo. Não porque levem o destino a dar uma grande volta e a mudar bruscamente de direção. É diferente. Refiro-me a momentos em que, tomada uma decisão, há toda uma versão do futuro que fica eliminada. Para sempre.
Conheci o Luís online. Não foi no Tinder, nem em nenhuma outra plataforma de dating. As minhas experiências anteriores com esse tipo de aplicações não foram particularmente boas. Não vou entrar em detalhes, até porque as pessoas com quem me cruzei nessas circunstâncias não merecem que as suas histórias - as nossas histórias - sejam recordadas, e muito menos contadas. Bem sei que não correu mal com toda a gente, talvez tenha sido azar meu - mas é preciso muito azar para, em três situações distintas, me terem calhado: um homem casado e com filhos (mentiroso como eu nunca antes tinha visto), um tipo com problemas graves de dependência (do álcool e da ex-namorada, principalmente) e ainda um senhor já de uma certa idade que se fez passar (infantilmente, diga-se) por um jovem de trinta anos. Apesar de tudo, este último foi apenas um desapontamento fofinho, sem danos. Mas com os outros dois, depois de tudo ter passado, fiquei com uma estranha sensação de ter escapado a um futuro medonho. Só que escapei por um triz. Foi por pouco, tudo esteve demasiado perto de acontecer.
O mais assustador neste tipo de casos é que, olhando para trás, percebo agora que os sinais estavam lá, sempre estiveram, desde o início. Há sempre qualquer coisa que te causa um desconforto, mesmo que tu não saibas imediatamente identificar o que é, ou descodificar de uma maneira lógica o porquê de te incomodar. Às vezes esquecemo-nos de que, apesar de toda a evolução, de toda a tecnologia, de toda a sofisticação de que dispomos e que usamos como se nos fosse natural, as coisas não são bem assim: ainda somos animais. E eu acredito que restará em nós um bocadinho dessa animalidade, dessa perceção selvagem das coisas - o pêlo que se arrepia, a narina que se agita, o ouvido que deteta e se direciona: estamos alerta, mesmo sem sabermos. Se o perigo estiver lá, nós detectamos - num gesto, num toque, num cheiro, num som.
O problema é que vivemos demasiado distraídos daquilo que o nosso espírito animal nos diz, preocupamo-nos muito mais com o lado supostamente mais evoluído. Estamos errados: a evolução acrescentou-nos mais maneiras de nos alienarmos, mais maneiras de nos enganarmos, ao mesmo tempo que nos reduziu a atenção para os sinais que se ativam em nós através das ferramentas maravilhosas com que nascemos: os sentidos e aquilo a chamamos intuição, e que deve ser qualquer coisa do nosso ente primordial que ainda resta em nós.

Depois dessas experiências falhadas nas plataformas cuja vocação é fazer-nos encontrar o amor - ou passar um bom bocado com pessoas que estejam em sintonia connosco (cada um usa como quer e para o que quer) -, fiz aquilo que qualquer mulher no início dos trintas sem grandes social skills faz: dediquei-me às redes sociais não vocacionadas para o dating e pus-me a observar. Os homens comportam-se de uma maneira muito mais natural e genuína - até nas maneiras como se mascaram e se armam - nas redes sociais mais mundanas. Revelam-se melhor, constroem-se com mais detalhes, não dizem "eu sou isto e gosto daquilo", o ritmo e a dinâmica são diferentes.
Comecei a observar o Luís no Facebook, gostava de algumas publicações dele. Depois, segui-o no Instagram - que horror, uma pessoa diz estas coisas e parece que é uma stalker. Não é nada disso: quando o comecei a seguir no Instagram, já tínhamos trocado likes, comentários e até uma ou outra mensagem (tudo decente) no Facebook. E eu gostei muito do mundo do Luís, sem extravagâncias, com características engraçadas, detalhes personalizados, gostos nem muito requintados, nem simplórios - apenas gostos de alguém que vive bem consigo.
As nossas trocas de mensagens intensificaram-se. Ele, solitário, pouco mais velho que eu, padecia de um certo desencanto romântico com a vida. O Luís é daquelas pessoas que se queixam do sofrimento com um sorriso e que fazem piadas com isso - e que têm aquele olhar vidrado de quem já foi magoado pela vida, mas que se aguenta porque consegue, mesmo à força, preservar a ingenuidade e a crença pueril de que um dia tudo vai ser ver melhor, de que as coisas vão correr bem.
Andámos meses nisto. Éramos dois gatos escaldados, nenhum de nós queria passar para o nível seguinte sem mais nem menos. Mas eventualmente o tema surgiu: e se nos conhecêssemos? Não demorámos a concordar que fazia sentido que nos encontrássemos. Tínhamos muita sintonia à distância, a viver as nossas vidas, cada um no seu lugar, e a trocar mensagens. Como seria ao vivo, olhos nos olhos? Então, combinámos um encontro. O Luís iria buscar-me no dia seguinte, levar-me-ia a jantar. Não tive o menor receio de lhe dizer onde vivia, confiava plenamente nele. Só lhe pedi uma coisa: que me ligasse algumas horas antes. Nós nunca tínhamos falado na vida, nunca nos tínhamos ouvido um ao outro e, por alguma razão que não sei explicar (nem sei se precisa de explicação), isso parecia-me demasiado estranho. Se não falássemos antes de nos encontrarmos, seríamos dois estranhos a sair para jantar.

O Luís ligou-me e eu atendi. Ele estava nervoso. Os seus traços gentis, sempre gentis, estavam lá, eram a sua base, mas a superfície, demasiado nervosa, mostrava muita agitação: uma voz que facilmente se tornava aguda, demasiado aguda, esganiçada, como se as cordas vocais fossem esticar-se demasiado e partir-se. E era com essa voz incrivelmente aguda e alta que soltava sorrisinhos nervosos, meio engasgados e muito amplificados. Eu ouvia-o e o meu corpo estremecia, arrepiava-se-me os pêlos dos braços.
Quando, horas mais tarde, eu não lhe abri a porta, o Luís insistiu uma e outra vez tocando à campainha. Eu, sentada no chão da varanda com as luzes apagadas, ouvia-o lá fora "Cláudia, não me faças isto, Cláudia, mas o que é que eu te fiz, Cláudia, tu não és essa pessoa", com aquela voz esganiçada e um sorriso nervoso, no limiar do desespero, na fronteira da raiva, "Cláudia, não dês cabo de mim, dá-nos uma oportunidade, Cláudia", e os pêlos dos meus braços eriçadas como os espinhos dos ouriços, e o animal que há em mim a dizer-me "não te mexas, Cláudia, fica quieta". O carro estava parado no meio da rua, com os quatro piscas ligados e a porta aberta. Atrás dele, formava-se uma fila, que ia crescendo à medida que ele ia gritando "Cláudia", e os carros de trás apitavam, impacientes, e eu permanecia quieta, à espera que o perigo passasse.

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