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Juízo final, ou como é irresistível julgar

Que atire a primeira pedra quem nunca subiu na torre do castelo para olhar por cima para quem está na berlinda. A escritora Nara Vidal, mãe de dois filhos, analisa o poder do julgamento entre os seus pares.

Foto: O Quarto de Jack @ Amazon Prime Video
06 de outubro de 2023 Nara Vidal

Que é sedutor julgar, sabemos. Mas a questão que proponho é: por que somos tão sujos? Quando minha filha tinha 4 anos e começou a jornada escolar, eu me preenchi de amizades de mães dos amigos dela para trocar ideias, aprender, não perder nada e, crucialmente, para que ela fosse convidada para as festinhas. Uma mãe em início da vida escolar dos filhos é mesmo um ser baixo. Temos tanto interesse em envolver o filho na dinâmica das relações que, sem demora, estamos tomando chá diariamente com pessoas estranhas e nem de chá gostamos!

O fato é que nos vendemos para que o filho seja querido entre os colegas, entre os professores, que desenvolva algo que faria minha avó rolar de rir: senso de pertença. Nessa brincadeira, povoam nossas cozinhas as mães, seus bebezinhos, seus maridos que trabalham fora e trazem para casa um sonho que mais se parece uma onda da década de 40.

Pausa para dizer que moro na Inglaterra e é lá que meus filhos frequentam a escola.

Nesses encontros, enquanto as crianças vestem fantasias, comem brownies e cookies, pepinos e tomatinhos, aprendem que "sharing is caring", observamos o desfile dessas vidas de mulheres que escondem profundezas ocultas em risos nervosos, gentilezas sem fim e alguma obsessão por corrida, yoga ou pilates.

Eu avisei que julgar era muito sedutor!

Então, eu que noto tudo isso como se estranha fosse, me pergunto, o que eu faço ao redor delas? Sou uma delas? Quero ser uma delas? Ainda dá tempo de dizer que quero descer e não quero brincar mais? Até dá, mas vai custar, como eu acabei descobrindo depois, quando passei a me concentrar no meu trabalho de escrita e virei uma mãe meio esquisitona, meio distraída, que se esquecia de fazer muffins para presentear professores e que começou a faltar às conversas do clube de tênis. A cereja do bolo foi quando me separei. Todas as mães sumiram. Mas não eram minhas amigas? Não, não eram. Eram e continuam sendo amigas fiéis e leais da convenção e de um formato de vida que é tão quadradinho que chega a me dar tonturas. (Que delícia julgar!)

Mas julgar é tão subjetivo e tão impreciso e nós que julgamos nos expomos. Na cozinha da minha casa, uma mãe fala mal da outra. O problema, ela dizia, era que a tal mãe era ausente. O que será uma mãe ausente? Logo compreendi que era a mãe que nunca estava entre nós, tomando café ou chá, porque ela viajava em trabalho. Ia muito para Paris e isso mexia com as fantasias de algumas das mães que imaginavam que a mãe ausente tivesse um amante presente, uma vida dupla, algo misterioso e velado. Talvez fosse aquela a fantasia das próprias mães juízas da vida alheia.

Você, leitora, já foi julgada? O que você fez que tanto queria e que os outros não quiseram? Eu, por exemplo, fui, em silêncio e olhares curiosos, julgada por ter ido trabalhar noutro país por dois meses inteiros. E com quem ficariam meus filhos, era a pergunta que todas queriam fazer. A impressão que eu tinha era que imaginavam que eu fosse colocá-los trancados num armário até regressar. Mas, na verdade, era mais simples: ficariam e ficaram com a outra metade da parceria que forma a nossa família: com o pai deles.

É curioso também pensar em como toda a diversão será castigada. Você pode até ir trabalhar, se "ausentar", mas não curta tanto. Você, leitora, já tentou se divertir sendo mãe e recebeu olhares como se fossem fogo cruzado? Acontece. É difícil entender, mas parece ser a norma. A alegria alheia ofende profundamente aquele que tem escassez de desejo de vida. Observe o que julga. Possivelmente está a observar-se a si mesmo.  

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