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Histórias de Amor Moderno: “Esta história é complicada. O Celso, naquele momento meu ex-namorado, era também irmão do Emílio”

“Não vou negar, havia desde início qualquer coisa que nos atraía. Só que também havia um muro a separar-nos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Anastasia Shuraeva / Pexels
02 de setembro de 2023 Maria Olívia Sebastião

Era verão, tenho quase a certeza. Foi um verão louco. Eu tinha terminado o primeiro ano do curso, mas continuei em Lisboa, não fui a casa nas férias. Preferi ficar. Era verão, agora sei que era, porque a luz do sol entrava esquartejada pelas frestas dos estores do quarto, um quarto que dava para as traseiras. Lá atrás havia um pátio, uma grande chaminé de tijolo e as ervas do quintal do prédio do lado, na direção do rio, que estava devoluto, quase em ruínas. Eu, rapariga da Costa Nova, olhava para lá e sentia o desejo de ir para sul. Eram só ervas muito altas, primeiro douradas, depois secas como palha, mas qualquer coisa nelas - talvez a luz do sol a pôr-se já caindo para sul - evocava em mim uma vontade berbere de paisagens áridas e correntes quentes. Foi nesse verão que conheci o Emílio.

O Emílio cometia muitos erros. Este foi o último: estávamos na cama quando ele disse o que não podia, as palavras proibidas, aquelas que eu sempre quis ouvir - sempre, exceto ali, naquele instante, naquela situação. "Acho que me estou a apaixonar por ti", disse ele, vindo lá de baixo, de debaixo dos lençóis. E eu, ainda em êxtase, ri-me, lembro-me de me ter rido, de ter levado uma das mãos à cara e de ter tapado os olhos, e de me rir, enquanto com a outra mão lhe segurava a cabeça, como se o impedisse de avançar sobre aquele território perigoso, minado, cheio de armadilhas. Ele sorriu sem perceber, despenteado e travado pela minha mão, enquanto eu suspirava e sorria também, só que com uma espécie de piedade, ou então de compaixão. Pobre Emílio. Um rapaz bonito, inteligente, vivaço. Talvez pudéssemos ter sido felizes. Talvez eu simplesmente não estivesse pronta para os erros que ele cometia. Talvez tudo fosse completamente impossível.

Nesse dia, depois de ele sair, mandei mensagem ao Celso. Aquela espécie de declaração do Emílio, ou de confissão, ou de revelação, fez-me sentir, pela primeira vez em mais de um mês, saudades do Celso. Esta história é complicada. O Celso, naquele momento meu ex-namorado, era também irmão do Emílio. O irmão mais novo - oito anos mais novo. Eu só conheci o Emílio por causa do Celso. E só conheci o Celso por causa do Carnaval. O Carnaval em Lisboa não tem grandes tradições, mas os estudantes académicos não precisam de grandes tradições para fazer um grande Carnaval. Muito menos quando se vive num bairro popular e quando esse bairro, com os seus tascos, bares e cafés, fica a poucas centenas de metros da faculdade onde estudas. Tudo parece fácil. Aliás, mais do que fácil, tudo parece feito de propósito para que aconteça. Como se não pudéssemos escapar a esses pequenos fados, essas nódoas no destino difíceis de sair. Provavelmente, são de vinho.

Quando eu conheci o Celso, num bar onde músicos de rua ao fim da noite se juntavam para tocar música brasileira, estava vestida de tigresa, como na música de Caetano Veloso. Com unhas negras e tudo, além de um top cai-cai coladinho ao peito que me deixava à mostra o umbigo e as costas. Os bigodes eram pintados, mas de uma maneira que me sublinhava o verde claro dos olhos. Os lábios eram vermelhos como os de Michelle Pfeiffer a fazer de Catwoman. O celso tinha uma bola de esponja vermelha no nariz. Era essa a sua máscara. Sempre me encantou a sua displicência, o seu talento para o menor esforço. "Sempre" é exagero: chegou a um ponto que me fartei.

O Celso era quatro anos mais novo do que eu. Para facilitar as contas: ele tinha 18, eu tinha 22 - entrei para a faculdade já com 21 - e o Emílio tinha 26. Em termos de amor, éramos só mais um triângulo; em termos de idades, éramos um triângulo isósceles em que as distâncias entre mim e cada um deles eram os lados congruentes; e a distância entre eles era a hipotenusa. Quando cheguei a Lisboa, a maioria dos meus colegas de turma eram da idade do Celso. Ele, porém, não estudava. Tinha deixado os estudos e saído de casa dos pais. O irmão, através de amizades, arranjou-lhe trabalho num estúdio de música qualquer e deixou-o mudar-se lá para casa, onde ficava no quarto pequeno - um quarto que certas casas de Lisboa têm e que costumava servir para as criadas, era lá que dormiam noutros tempos.

Encontrei no Celso a frescura que sempre me faltara nos namoros anteriores, invariavelmente com rapazes mais velhos, um deles muito mais velho (tinha eu 15 quando esse tarado tinha 24 - mas era costume, na minha juventude usava-se muito lá na zona: as moças mais novinhas adoravam andar com os mais velhos, que já tinham carta e dinheiro para gasolina, além de carro ou mota para ir a sítios). O Celso devolveu-me a adolescência que esses rapazes mais velhos me tinham amputado, ou, pelo menos, de que me tinham privado em certos aspetos. Com o Celso, cometi as pequenas loucuras que ficaram por cometer com os outros. Coisas simples, como decidir às seis da tarde de uma sexta-feira aleatória que íamos acampar para a Lagoa de Santo André. Como? Logo se veria - antes de mais, era preciso atravessar o Tejo; em seguida teríamos de apanhar boleia, em princípio e se tivéssemos sorte. Foram tempos felizes, de boas memórias.

Enquanto namorei com o Celso, a presença do Emílio era constante. Ora nos encontrávamos todos em sua casa, ora vinha ele até à nossa, que eu partilhava com duas colegas de curso, em especial depois de ter voltado a ficar solteiro. E, não vou negar, havia desde início qualquer coisa que nos atraía. Só que também havia um muro a separar-nos - um irmão chamado Celso. Se qualquer flirt é platónico, este era o epítome da platonice. E talvez fosse isso que nos desafiava ainda mais, aproximando-nos e repelindo-nos, como se fôssemos ímanes constantemente a ficar do avesso, criando repulsa recíproca.

A primeira vez que namorei com o Celso durou pouco menos de um ano. A tal displicência que muito me encantou nos primeiros tempos acabou por causar o seu desgaste. Não o culpo, ele era um miúdo. Nessas idades, a diferença nota-se ainda mais. Só que as alegrias da tal adolescência ainda por viver começaram a saber a pouco. O problema, às vezes, é o futuro: uma pessoa põe-se a pensar no que vem a seguir e depois acha que já não passa dali. É aí que morre a esperança - que nem sempre é a última coisa a morrer. Neste caso, a esperança morreu mais cedo do que a paixão. Por isso, acabámos quando ainda havia amor.

O Emílio mandou-me mensagem logo que soube que eu e o Celso tínhamos acabado. Foi uma mensagem simples e decente, amistosa até. Qualquer coisa como "já soube o que aconteceu, se quiseres conversar, tomamos um café". Eu quis conversar, mas sabia que aquele café não era só um café. Saímos nessa mesma noite e acabámos em minha casa. Nas duas semanas seguintes, saíamos com alguma regularidade. Não como namorados, mas como bons amigos. Só que bons amigos que acabam por se deitar juntos, e não apenas para dormir.

Quando eu me ri da revelação do Emílio naquela tarde de verão, não foi só por compaixão. Foi também de nervos. Lembro-me agora: além da luz esquartejada pelas frestas dos estores, havia a imagem do Celso na minha cabeça e um pensamento "mas eu gosto é dele". E foi por isso que eu disse ao Emílio "o teu irmão nunca pode saber disto que aconteceu entre nós", e fi-lo prometer que nunca lhe contaria. E quando o Emílio saiu mandei mensagem ao Celso. Uma mensagem simples, quase amistosa, "se quiseres conversar, podemos tomar um café".

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