Billie Holiday (1915-1959)

A vida trágica de uma diva do jazz

Tantas vezes apresentada como uma vítima de si mesma e dos efeitos colaterais da fama, a cantora Billie Holiday volta agora ao grande écran como um ícone da luta contra o racismo, que também foi. Essa é a leitura proposta por dois filmes com estreia marcada para maio, um dos quais - United States vs Billie Holiday - valeu a Andra Day a nomeação para o Óscar.

Foto: Getty
19 de maio de 2021 Maria João Martins

Nomeada para o Óscar de melhor atriz pelo papel em United States vs Billie Holiday, Andra Day admitiu ter vivido uma montanha-russa de emoções durante os meses em que interpretou a maior e mais trágica diva que o jazz conheceu. " Passei da tristeza ao ressentimento e à mágoa, mas também senti a sua alegria e determinação quando lutava pelo que lhe parecia justo", disse a atriz ao receber o Globo de Ouro pela sua atuação, antes de saber que seria nomeada para o prémio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, em concorrência direta com Viola Davis, Vanessa Kirby, Carey Mulligan e Frances McDormand, que ganhou. 

 United States vs Billie Holiday, realizado por Lee Daniels, não será, todavia, o único filme inspirado pela cantora norte-americana que poderemos ver nos ecrãs portugueses a 20 de maio, já que a Midas Filmes vai estrear, no Cinema Ideal, em Lisboa, o documentário de James Erskinne, Billie. Baseado na investigação desenvolvida ao longo de décadas pela jornalista Linda Lipnack Kuehl, o filme revela excertos de mais de 200 horas de entrevistas com pessoas que, em algum momento, tiveram proximidade com a artista: músicos, amigos, família, amantes. Essas entrevistas, matéria-prima de uma biografia que a jornalista não chegou a escrever, nunca foram ouvidas publicamente e são reveladas pela primeira vez, juntamente com atuações e imagens de arquivo restauradas. Como aquelas em que um entrevistador pergunta à cantora "Porque acha que os músicos de jazz morrem tão cedo?", ao que ela responde, sem uma hesitação, iluminada pelo autoconhecimento, "porque tentamos viver 100 dias num só".

Capa do filme
Capa do filme "United States vs Billie Holiday" (2021) Foto: IMDB

 O que está na origem deste renovado interesse do Cinema por Billie Holiday (que em 1972 já tivera um biopic, Lady Sings the Blues, com Diana Ross como protagonista)? O glamour do mito, a que não falta sequer o charme sombrio da descida aos infernos, ou a indiscutível qualidade da música e do timbre irrepetível da cantora? Um pouco das duas razões, mas sobretudo a atualidade da sua luta pelos direitos civis dos negros, que lhe causou não poucos dissabores com as autoridades norte-americanas. 

 Nascida a 7 de abril de 1915 em Filadélfia, filha de Sadie Fagan, de 13 anos, e Clarence Haliday, de 17, Eleonora Fagan (nome com que foi registada) teve a infância e juventude comum a tantas mulheres negras, em tantos pontos dos Estados Unidos: trabalho duro, maus tratos e humilhações, abusos sexuais. Aos 10 anos, depois de resistir à tentativa de violação por um vizinho, viu-se acusada de ter seduzido o agressor e compreendeu quão ínvios podem ser os caminhos da justiça, sobretudo se se é negra, pobre e do sexo feminino. Desalentada do mundo, só a música a acalmava: filha de um guitarrista de alguma importância nos meios do jazz em Baltimore, começou a ouvir Bessie Smith e Louis Armstrong e foi atrás dessa música. Aos 14 anos chegou ao Harlem nova-iorquino mas não tardaria a ver-se num bordel infecto, às ordens da patroa. Quando se recusou a atender um cliente mais violento, foi denunciada e presa por prostituição. Voltaria outras vezes por consumo de drogas, confusões e desacatos vários e, sobretudo, por não se conformar.

 Billie não deixou que o bordel fosse o fim da linha e é a história dessa determinação que estes dois filmes nos narram. Seguiu a música que levava dentro. Começou a frequentar os clubes noturnos locais, cantando a troco de gorjetas, ao som do piano. Embora nunca tivesse aprendido música ou sequer a cantar ou a estar em palco, os aplausos não tardaram. Entusiasmada, a jovem Eleonora adotou um nome artístico inspirado na atriz do cinema mudo, Billie Dove, a que acrescentou o apelido do pai. Ao contrário da sua inspiradora, hoje esquecida, a lenda de Billie Holiday acabara de nascer.

Capa do filme
Capa do filme " Billie" (2019) Foto: IMDB

 No início de 1933, o produtor John Hammond ouviu Billie pela primeira vez e deixou-se assombrar. Aquele timbre, destroçado e envolvente, não se encontra duas vezes numa vida. Conseguiu que ela gravasse com Benny Goodman, já então um nome maior do mundo, então muito popular, das orquestras de jazz. Billie, que não tinha mais de 18 anos, gravou então Your Mother’s Son-in-Law e Riffin ‘the Scotch, sendo este último o seu primeiro sucesso, com 5 mil cópias vendidas.

 Nos dez anos seguintes, cantou sem parar. Em bares, clubes noturnos, mais tarde também em grandes salas de espetáculos como o Carnegie Hall, em programas de rádio e em discos, muitos discos. Entre os seus maiores êxitos, contam-se I’ll be Seeing You, The Very Thought of You, You’re my Thrill, Easy living, Blue Moon", Solitude ou Summertime. Billie e os seus músicos correm os Estados Unidos, coast to coast, e ela torna-se uma referência para novos artistas como Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald. Canta com Louis Armstrong (como podemos ver no filme New Orleans, de Arthur Lubin), Artie Shaw, Lester Young e Teddy Wilson e eleva o repertório clássico americano, com canções de Cole Porter ou George Gershwin, a um nível de dramatismo que este originalmente não tinha. Bonita, cria uma imagem de marca feita de gardénias no cabelo, turbantes e belos vestidos de cena. Também isso não lhe perdoarão os seus detratores, sempre prontos a sacar o balde de lama, envolvendo o seu nome em supostos escândalos sexuais ou a recordar o seu passado na prostituição. O que era isso de uma mulher negra se tornar estrela e ter uma banda própria com o seu nome? Mais tarde, ela dirá: "Podemos estar vestidas de cetim branco, ter flores no cabelo e não haver uma só cana de açúcar num raio de quilómetros, mesmo assim continuamos na plantação."

 Lutadora pelos direitos civis

 Como se não bastasse para inquietar as consciências mais reacionárias, as preocupações de Billie Holiday excediam o alcance da sua própria carreira artística. Mais de 20 anos antes de Rosa Parks, Malcolm X e de Martin Luther King, Billie usaria a notoriedade pública para denunciar abertamente a segregação dos negros e as leis Jim Crow que vigoraram nos estados do Sul até 1964. Fá-lo-ia primeiro com a canção God Bless the Child, em 1939, escrita por ela própria para denunciar a miséria infantil que conhecera, mas, sobretudo, fá-lo-ia com Strange Fruit, que se tornaria um dos hinos da luta pelos direitos civis.

A cantora de jazz Billie Holiday num concerto.
A cantora de jazz Billie Holiday num concerto. Foto: Getty

 Escrito por Abel Meeropol, um professor judeu mais famoso por ter adotado, com a mulher, Anne, os dois filhos do casal Rosenberg (condenado à cadeira eléctrica por alegada espionagem pró-comunista), o poema denunciava, sem eufemismos, os crimes praticados contra negros no Sul dos Estados Unidos, que incluíam linchamentos e exposição pública dos cadáveres, frequentemente pendurados em árvores como… "estranhos frutos". Publicado num jornal sindical, The New York Teacher e sob o pseudónimo de Lewis Allan, o poema circulou de mão em mão e o autor começou a receber insistentes pedidos para que o musicasse. Quando o fez, Barney Josephson, o fundador do Café Society, em Greenwich Village, a primeira casa noturna integrada da cidade, empolgado, apresentou-a Billie Holiday, que ali a cantou pela primeira vez em 1939. Embora admitisse sentir medo de retaliações, Holiday recordou-se da morte do pai (em 1933), numa ala hospitalar para negros, em condições miseráveis, e decidiu prosseguir. Propôs à sua editora, a Columbia Records, gravá-la, mas esta, receando o boicote nas lojas de discos do sul, bem como a possível reação negativa de rádios afiliadas da CBS, recusou. Seria Milt Gabler (tio do ator Billy Crystal), dono da Commodore Records, editora dedicada ao jazz alternativo, a fazê-lo. Como resultado, foi brindado com um enorme sucesso de vendas, mas também com a ira de milhares. Seguir-se-iam vexames públicos, a que o ambiente reacionário da caça às bruxas macarthista daria sustentação. Em 1947, pouco depois de ter sido presa por uso de drogas na Filadélfia, Billie Holiday diria  numa entrevista à revista Down Beat: "Fiz uma porção de inimigos, sim. Cantar aquilo não me ajudou em nada. Lembro-me de estar a cantar no Earle Theater, em Filadélfia, e de me obrigarem a parar." 

 A perseguição durou até à morte. No início de 1959, Billie foi diagnosticada com cirrose hepática, causada por décadas de consumo excessivo de álcool. O médico disse-lhe para parar de beber, e a artista iniciou um tratamento psicoterapêutico, que seguiria durante algum tempo, até que reincidiu, desta vez de forma irreversível. A 31 de maio de 1959, foi internada no Hospital Metropolitano, em Nova Iorque, com a cirrose agravada, a que se acrescentavam também os diagnósticos de insuficiência cardíaca e edema pulmonar. A debilidade do seu estado não impediu, uma vez mais, as autoridades de a cercarem. Na cama do hospital, recebeu voz de prisão por posse de heroína e cannabis, alegadamente descobertas em grandes quantidades, numa peça de roupa. Só a deixariam a 17 de julho de 1959, depois de um padre lhe ministrar os últimos sacramentos.

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