Memórias de uma groupie das Doce
Há 40 anos, num Portugal que ainda aprendia a viver em Democracia, quatro jovens portuguesas formaram uma girls band muito antes do conceito ser criado. O sucesso foi imediato: Laura, Lena, Teresa e Fá conquistaram o coração do público, mas também foram objeto de muita maledicência. Como recorda o filme de Patrícia Sequeira, Bem Bom.

No balneário do colégio, frente ao espelho comprido, quatro adolescentes perfilam-se à espera que a fita da cassete avance no leitor a pilhas. Quando soam as primeiras notas de Ali Bábá - Um Homem das Arábias sabem exatamente o que fazer. Com as mãos arqueadas à altura do rosto, imitam na perfeição a coreografia que as suas idolatradas Doce tinham apresentado no Festival RTP da Canção de 1981. Elas, que foram a primeira girls band portuguesa muito antes do conceito ter sido criado, mostraram às miúdas dos anos 80 que era possível ser bonita, sexy e, ao mesmo tempo, senhora do seu destino. O que não era um objetivo consensual num país que ainda gatinhava na Democracia, depois de quase meio século de uma ditadura que doutrinava a intimidade das famílias e amarrotava quaisquer sonhos femininos que ultrapassassem as competências domésticas.


As Doce chegaram em 1979 e tomaram de assalto os nossos sonhos de pré-adolescentes, habituadas que estávamos a imitar, num inglês hesitante, a Olivia Newton-John de Grease, ou Agnetha e Anni-Frid, dos Abba. E, de repente, numa qualquer tarde de sábado, elas estavam na RTP, ainda canal único e a preto-e-branco, portuguesas, próximas e, no entanto, sedutoras, descontraídas e muito profissionais: Fatima Padinha, Teresa Miguel, Laura Diogo e Helena Coelho a cantar Amanhã de Manhã.
— Mãe, quero comprar aquele disco.
— Tens o dinheiro que a avó te deu nos anos. Usa-o.

Em poucos dias, o vinil de 45 rotações (o single) rodava em loop no meu quarto. No lado A estava Amanhã de Manhã, no B Depois de Ti e, na capa, as quatro beldades com vestidos em padrão tigresse sobre meias pretas. Como eu, fizeram muitos outros fãs já que, em poucas semanas, o disco galgaria nos tops.

Não era um fogo-fátuo. Vieram muitas outras canções (Café com Sal, OK KO, É Demais, etc), quase todas grandes êxitos, que nós rapidamente sabíamos de cor, participações sempre muito esperadas nos Festivais RTP da Canção ou no Natal dos Hospitais e, finalmente, na Eurovisão, em 1982, com a canção Bem Bom e o inesquecível look de mosqueteiras, concebido por José Carlos (1950-2004), responsável, pela imagem muito marcante da banda, da maquilhagem aos sapatos. Nós, raparigas, copiávamo-las como podíamos, não raro, recorrendo aos sapatos de salto das mães ou aos adereços modernaços que íamos comprando nos Porfírios. Os rapazes apaixonavam-se, alguns mais ousados, como o meu amigo Tó, fugiam de casa para ir ao concerto delas, uns quilómetros mais adiante.

Mas o que não sabíamos ainda, quando tentávamos resolver equações de segundo grau ao som de OK KO, é que nem tudo era amor e divertimento à volta das Doce. E não exatamente por uma questão de gosto musical.
Nesse Portugal falido, a braços com a vigilância financeira do FMI, a direita mais conservadora olhava aquele desassombro e benzia-se, cheia de fervor católico. Uma certa esquerda acusava-as, com idêntica veemência, de perpetuarem a objetificação da imagem da mulher no mundo da música. Primeiro foram as críticas à (pouca) roupa levada ao Festival da Canção de 1981. Que não eram propósitos para um acontecimento televisivo ainda marcado por alguma solenidade, dizia-se e talvez, por isso, as Doce, dadas como favoritas, ficaram em quarto lugar (atrás de Carlos Paião, o vencedor, José Cid e Maria Guinot).


Depois, veio o boato, ouvido em surdina em casa, e aos gritos no colégio, com os rapazes excitados pelo cheiro a escândalo. Laura, a loura da banda, vinda da Moda (fora modelo e Miss Fotogenia em 1979), Reinaldo, o futebolista guineense titular do Benfica, um suposto encontro sexual que teria acabado mal. Meses a fio, as graçolas fáceis vêm à baila sempre que elas sobem ao palco ou aparecem na TV. As mães, como a minha, educadas em ditadura, a franzir o nariz: "Não gosto muito que estejas sempre a ouvir essas mulheres." Talvez não fosse de estranhar num país que só em novembro de 1982 discutiria no Parlamento (e rejeitaria) a despenalização do aborto e em que a igualdade de direitos, embora consagrada na Constituição de 1976, não passava ainda de uma utopia.
Com um estoicismo exemplar, as Doce sobreviveram a esta maré de lama, gravaram mais discos e duraram até 1987, depois de nos últimos anos Fátima Padinha, a seu pedido, ter sido substituída por Ágata. Mas, como as próprias revelariam nas raras entrevistas que deram após o final do grupo, os danos causados pela maledicência eram maiores do que elas deixavam transparecer em palco.


Passaram-se 40 anos e as cassetes desses tempos de colégio há muito que foram para o lixo num emaranhado de fita. No entanto, as canções (e com um pouquinho de esforço, as coreografias) permanecem intactas na memória. As groupies de então combinam agora idas ao cinema para verem juntas o filme de Patrícia Sequeira (autora de Snu e Jogo de Damas) que estreia esta quinta-feira, 8. Como se mais do que um filme, esta fosse também uma viagem no tempo. Tão nostálgica como...doce.
