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Vozes maiores: estas são as mulheres do jazz

Dos caveaux fumarentos às salas climatizadas foi a pulso, mais uma vez, que as mulheres, particularmente as que cantam, conquistaram espaço e controlo numa música de exigência e de prazer, de técnica e de emoção. Com vozes que já conquistaram a eternidade e com muitos capítulos de combate pelos direitos civis, de abusos de todo o género e de poderosas resiliências. Está tudo à vista na música e, mais especificamente, no jazz.

Foto: Pedro Ferreira
10 de setembro de 2019 às 07:00 João Gobern

Hoje para as vermos e as ouvirmos, sentamo-nos confortavelmente em salas climatizadas, bem iluminadas e com uma acústica estudada para responder às exigências. Pagamos bilhetes com preços que equiparam as cantoras de jazz às vedetas mais trendies – e, quase sempre, mais passageiras – da música pop ou às divas do canto lírico. Aplaudimos as nossas favoritas, como Diana Krall (Nanaimo, Canadá, 1964), Norah Jones (Nova Iorque, 1979), Stacey Kent (South Orange, EUA, 1968) ou a sublime Madeleine Peyroux (Athens, EUA, 1974), sabendo que, em porções desiguais, elas não receiam as escapadelas que, por vezes, as afastam do terreno estético delimitado pelos puristas mais ocupados com a sobrevivência no gueto do que com a hipótese de saltar fronteiras. Sempre que possível, ainda vamos ao encontro de Cassandra Wilson (Jackson, Mississipi, EUA, 1955), Dianne Reeves (Detroit, EUA, 1956) ou Dee Dee Bridgewater (Memphis, Tennessee, 1950), de repente transformadas em veteranas. Ou, então, vamos à procura de revelações, como Jane Monheit (Oakdale, Nova Iorque, 1977), Esperanza Spalding (Portland, EUA, 1984) ou a recém-chegada Jazzmeia Horn (Dallas, EUA, 1991), sedentos de quem possa prolongar o esplendor de outras eras. Qualquer que seja a opção de fundo ou a escolha do momento é imperativo que não se leia aqui uma taxativa "denúncia" do "aburguesamento" do jazz. Longe disso: a globalização e a acessibilidade estão longe de ser palavras vãs em tudo o que mudou. O jazz – que, recorde-se, começou por apresentar um consumo assumidamente popular – cumpriu a sua conquista transversal, interclassista, multirracial e, por paradoxo, até chegou a ser emblema de um certo elitismo cultural, algo que (com as habituais exceções, inevitáveis) nunca procurou.

Vale a pena olhar para alguns dados biográficos das mulheres que ocupam a "linha da frente" nos nossos dias. Jane Monheit, por exemplo, chegou ao jazz "pela mão" de Ella Fitzgerald (1917-1996), mas foi-lhe dada a oportunidade de, logo no ensino secundário, ter uma aprendizagem sempre ligada às artes, em particular ao canto, acabando por ganhar as bases académicas – mais os contactos no meio e um primeiro passo para a popularidade em concursos "patrocinados" por ou em nome de músicos da especialidade – que lhe permitiram sedimentar a sua indisfarçável vocação. A canadiana Diana Krall, que já ultrapassou a fasquia dos 15 milhões de discos vendidos, pôde começar os seus estudos de piano com apenas quatro anos, seguindo depois para o Royal Conservatory of Music e conseguindo uma bolsa de estudo para o prestigiado Berklee College of Music, em Boston. Jazzmeia Horn, com apenas 27 anos, foi comparada a Sarah Vaughan (1924-1990) e a Betty Carter (1929-1998), dois dos nomes da galeria das eleitas do jazz – também lhe coube em sorte uma iniciação precoce, na Booker T. Washington High School for The Performing and Visual Arts, em Dallas, Texas, de onde transitou para a New School of Jazz and Contemporary Music, em Nova Iorque. Torna-se fácil perceber como, independentemente do talento, do trabalho e da sempiterna premissa do "lugar certo na hora certa", foi mudando o universo do jazz, no que toca a ferramentas e a oportunidades.

A escola das ruas do Harlem

Bastará recuar umas décadas para tomarmos consciência deste facto francamente improvável no tempo que agora vivemos: as donas das duas vozes mais marcantes no jazz cantado no feminino, Billie Holiday (1915-1959) e Ella Fitzgerald, foram "descobertas" nas ruas do Harlem, bairro nortenho – e à época habitado, sobretudo, por negros ou por afro-americanos, se quisermos utilizar a nomenclatura vigente – de Manhattan. Não deixa de ser curioso como o fenómeno "das calçadas" parece estender-se a algumas das maiores cantoras de sempre, em diferentes latitudes: Edith Piaf fez notar a sua voz pelas esquinas de Montmartre, em Paris, e a nossa Amália também levou a que reparassem nela por cantar nas ruas de Alcântara, onde cresceu. Esse destaque "ao ar livre" está longe de ser o único paralelismo entre as duas mulheres que mais assiduamente disputam o trono de rainha do jazz: sempre separadas pela longevidade (Billie morreu muito cedo, com 44 anos, e Ella viveu até aos 79) e, talvez como consequência direta dessa duração, o património material acumulado por uma e o constante desassossego da outra para esticar o que ganhava até ao fim de cada mês.

Nenhuma delas nasceu em Nova Iorque – cidade que muito antes dos sinais de autonomia da Costa Oeste dos Estados Unidos levou à fama cantoras como Jo Stafford (1917-2008), Rosemary Clooney (1928-2002, tia de George Clooney) ou a poderosa Etta James (1938-2012), concentrando grande parte dos mestres do jazz –, já que Billie era nativa de Filadélfia, na Pensilvânia, e Ella de Newport News, na Virgínia. Apesar dos vários casamentos – dois de papel passado para Lady Day, além de romances com famosos como Charles Laughton ou Orson Welles e de uma série de ligações a homens de tendências violentas, outros tantos para Miss Ella, a que se junta mais um, segundo o biógrafo Sid Collin, com um jovem norueguês, rapidamente anulado quando se descobriu que o noivo era um meliante –, nenhuma delas foi mãe, embora Fitzgerald considerasse como seu o enteado, filho do seu segundo marido, o baixista Ray Brown. Se ultrapassarmos a coincidência de uma igual consoante dobrada – em Billie, que se chamava realmente Eleanora, e em Ella –, ainda nos sobram pontos em comum: foram ambas filhas de ligações que não chegaram ao matrimónio; tiveram as duas infâncias turbulentas que passaram por fugas de reformatórios de crianças e passaram por abusos sexuais, no caso de Ella, de acordo com a biografia escrita por Stuart Nicholson, por parte do padrasto, um imigrante português chamado Joseph (José?) da Silva; muito antes de alcançarem a fama, ambas trabalharam em bordéis. Com uma diferença substancial: Ella vigiava o prostíbulo que lhe calhou, muito frequentado por elementos da Mafia nova-iorquina, para evitar surpresas policiais. Já Billie, segundo relata o biógrafo Donald Clarke, foi mesmo atirada para a prostituição "a cinco dólares por cliente". Tinha 13 anos e tornava-se, assim, "colega" da mãe.

O racismo e os direitos cívicos

Ella Fitzgerald sempre mais discreta, até em função da sua timidez (que chegou a "adiar" a afirmação pública), chegou a ser detida pela polícia, juntamente com o trompetista Dizzy Gillespie, por participação em "jogos clandestinos", em Houston, no Texas. Na verdade, as autoridades locais não perdoaram aos músicos que se manifestassem contra a segregação racial a que estava sujeito o espetáculo que tinham marcado na cidade. Com Billie Holiday tudo foi mais grave: chegou a cumprir pena de prisão efetiva por posse de "substânciais ilegais". Mais notória foi a revolta que a levou a despedir-se do – bem remunerado – posto de cantora da orquestra de Artie Shaw quando, em diversos hotéis do sul do país, lhe foi repetidamente indicado o elevador de serviço e sistematicamente vedado o acesso aos bares. E se Billie gostava de beber… Para se ter uma ideia do ambiente vivido à época, convirá recordar o sucedido com a única longa-metragem em que participou como atriz, em 1947, New Orleans (A Cidade do Jazz), de Arthur Lubin. Em pleno maccarthismo, marcado pelas perseguições ideológicas e raciais, o filme acabou seriamente truncado com as participações de Lady Day e de Louis Armstrong reduzidas ao mínimo indispensável, ganhando com isso a presença de Woody Herman, saxofonista, chefe de orquestra… e branco. Tudo para que não ficasse a ideia de que teriam sido os negros a "inventar" o jazz. Uma das canções emblemáticas que chegou à voz de Billie Holiday, em 1939 (e por lá ficou…), Strange Fruit, já tinha dado o mote ao referir a "fruta estranha" que parecia crescer nas árvores sulistas e que era a dos corpos de negros linchados. Se Holiday não chegou viva à época mais acesa da luta pelos direitos cívicos dos negros, o jazz soube fazer-se representar na matéria. Por exemplo, com Abbey Lincoln (1930-2010) que sempre se mostou disponível e motivada para passar recados naquilo que ia cantando, como acontece com o álbum Straight Ahead, de 1961. Contando com as ajudas de músicos como Eric Dolphy, Max Roach (com quem chegou a ser casada) ou Coleman Hawkins, a cantora fez questão de incluir temas como African Lady, Retribution ou Left Alone, invariavelmente suscetíveis de interpretações políticas. Mais radical é o caso de Nina Simone (1933-2003), que teve de lutar contra toda a espécie de preconceitos. O primeiro parece ter chegado da própria família, profundamente religiosa, que esteve na origem da escolha do nome artístico – chamava-se realmente Eunice Kathleen Waymon – para poder entrar "às escondidas" no circuito da "música do demónio". Nina era um talento raro com expressão inicial na sua aplicação ao piano: depois de ter ganhado uma bolsa de estudo para ingressar no Curtis Institute of Music, em Filadélfia, e após ter realizado uma audição exemplar, foi-lhe negada a hipótese de inscrição. A artista nunca teve dúvidas: a base da decisão foi a cor da pele. Talvez esse e outros episódios tenham originado a sua ligação estreita ao caudal dos defensores da igualdade para os negros – Nina marcou presença e foi oradora nas marchas de protesto que ligaram as cidades de Selma e de Montgomery, em 1965, em que esteve em destaque Martin Luther King – e até a sua radicalização que a levou a tornar-se apoiante declarada de Malcolm X, defensor da luta armada contra os segregadores. Nina Simone nunca se escondeu do que entendia ser parte da sua missão, algo muito claro em discos como Gifted & Black ou Black Gold. Além disso, protagonizou algo que acaba por ser um denominador comum de muitas cantoras do género: depois de um período de relativo "apagão", em que nunca deixou de gravar, foi literalmente "ressuscitada" com a utilização de uma das suas canções, My Baby Just Cares For Me, num anúncio de 1987. A gravação fora feita "só" três décadas antes, em 1958…

Um papel crescente

Seria um disparate pegado tentar negar o "poder negro" do jazz – além da galeria de divinas que aqui se vão perfilando, nenhuma antologia ficaria completa sem as referências a Lena Horne (1917-2010), a Anita O’Day (1919-2006), a Carmen McRae (1922-1994), à fugaz mas irresistível Dinah Washington (1924-1963), a Ernestine Anderson (1928-2016) –, também seria descabido atribuir um "exclusivo" de mérito diretamente ligado à cor da pele. Casos há, e muitos, de cantoras brancas que cumpriram trajetos notáveis nesta área de grande exigência. Desde logo, Peggy Lee (1920-2002) que se notabilizou como a voz da poderosa orquestra de Benny Goodman, acabando por abandonar o coletivo quando o "patrão" despediu o marido, o guitarrista Dave Barbour. Lee beneficiou dos favores da rádio, tornando-se uma das vozes residentes do programa The Chesterfield Supper, na NBC, ao lado de Jo Stafford e de Perry Como. Tem direito a uma memória automática: a ímpar versão de Fever, que transformou num clássico recorrente e cuja "temperatura" não baixa, há precisamente 60 anos, e a que, devidamente autorizada, acrescentou versos da sua autoria. O registo justifica-se, ainda, para Helen Merrill (n. 1930) que gravou ao lado de génios como Charlie Parker ou Clifford Bown e, mais recentemente, Dianne Schuur (n. 1953), a quem o facto de ser cega de nascença não impediu uma chuva de êxitos e de prémios. Cite-se, por fim, a inspirada Julie London (1926-2000) que de acordo com muitas análises poderia ter chegado muito mais longe, não fosse tão sensível a sua "reserva natural" à exposição mediática, fugindo a entrevistas e a aparições públicas extraconcertos.

Negras ou brancas, as cantoras de jazz – que, em Portugal, têm expoente indesmentível na passada sem nódoas de Maria João, mas se alarga a nomes como Jacinta, Marta Hugon, Paula Oliveira, Maria Anadon, Maria Mendes, Maria Viana, ou a valores na nova geração, com destaque para Elisa Rodrigues e Sara Serpa, ambas com carreiras internacionais, e ainda Cláudia Franco – souberam conquistar espaço e controlo. Hoje, com raras exceções, o jazz afastou-se dos caveaux fumarentos e ruidosos tão bem mostrados num filme decisivo, À Roda da Meia-Noite (de Bertrand Tavernier, de 1986), e dos episódios de excesso, otimamente documentados noutra fita obrigatória, Bird – Fim do Sonho (de 1988, com o realizador Clint Eastwood a abordar a vida desvairada de Charlie Parker). Longe vão os tempos em que as cantoras se sentavam à mesa dos cabarets e de clubes noturnos, aguardando – um pouco à semelhança do que acontece nas nossas casas de fado – a vez de subir à cena. Muito distantes estão, da mesma forma, os anos das big bands em que a cantora se submetia, as mais das vezes, às dinâmicas e aos arranjos ditados pelo "chefe de orquestra". Hoje, as mulheres não abdicam, felizmente, de um lugar central no palco sob as luzes que parecem ajudar a soltar-lhes a alma e a dar-nos conta de técnicas e emoções muitas vezes chamadas, sem margem de erro, à primeira pessoa. Do singular. Personifique-se um "argumento" poderoso em Patricia Barber (Chicago, 1955), que chama a si os papéis de cantora, pianista, líder de banda e compositora. Voltamos ao início: para ouvir Madeleine Peyroux ou Holly Cole (Halifax, Canadá, 1963), respeitam-se as horas e os lugares marcados. O que não invalida que um mergulho mais a sério no jazz cantado por mulheres ainda nos remeta para as antologias (de Cole Porter, de Gershwin, de Johnny Mercer, de Duke Ellington e dos homens que se destacam no Great American Songbook) que, metodicamente guiada pelo produtor e agente Norman Granz, fundador da editora Verve, Ella Fitzgerald legou ao mundo. Ou, para irmos ainda mais atrás, uma iniciação que passe pelas gravações que nos trazem de volta Bessie Smith (1894-1937), a mulher que, vinda dos blues, foi uma das "mães fundadoras" do jazz, tal como o conhecemos e amamos. Morreu na sequência de um acidente de automóvel entre Memphis, no Tennessee, e Clarksdale, no Mississipi, alegadamente porque os maqueiros que a socorreram decidiram não a conduzir a um hospital… para brancos. Bessie, que teve mais de dez mil pessoas na despedida post mortem, foi sepultada numa campa que se manteve anónima até que outra cantora meteórica e decisiva decidiu pagar-lhe uma lápide, em 1970. A benemérita chamava-se Janis Joplin, o que vale muito mais do que um simples simbolismo.

Nina Simone
Foto: Getty Images
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Billie Holiday
Foto: Getty Images
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Maria João
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Sara Serpa
Foto: Pedro Ferreira
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Elisa Rodrigues
Foto: Pedro Ferreira
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