Crónica

Histórias de Amor Moderno: “Temi que o mundo acabasse. Temi que ali desabrochassem desagradáveis revelações”

“Desde o momento em que entrou em casa que uma espécie de terror se apoderou de mim. ”Todos os sábados, a Máxima publica um conta sobre como é o amor no séc. XXI, a partir de um caso real.

Caidinha Pelo Natal (2022).
Caidinha Pelo Natal (2022). Foto: IMDB
22 de abril de 2023 Maria Olívia Sebastião

Estávamos em vésperas do Natal de 2017. Não falo da véspera, mesmo, falo daqueles dias antes desse, aquela antecedência, a contagem decrescente que faz aumentar a impaciência. Eu e o Albano tínhamos acabado não havia muito tempo. Não sei como definir muito tempo, mas não me pareceu que fosse "muito tempo". Tínhamos estado juntos, isso sim, muito tempo: 17 anos, para arredondar, mas deitando contas aos detalhes, pode ter sido mais um pedaço. Dezassete anos e um pedaço - é muito tempo. A nossa separação, contudo, nessas vésperas de Natal de 2017, era ainda fresca se a compararmos com a história de amor e desamor que a precedeu. Tínhamos acabado há um ano e pouco, por volta de outubro de 2016 (é tão estranho que não consigamos precisar acerca de um fim concreto; sei em que dia mandei abrir a água no meu novo apartamento, para onde me mudei - 11 de novembro de 2016, lembro-me de o ter lido no contrato -, mas não me recordo da data exata em que o Albano me disse "precisamos de seguir caminhos distintos", foram estas as suas palavras).

Nessas vésperas de Natal de 2017, eu estava em Lisboa. Eu e o meu namorado novo. Estávamos na flor da paixão. Tudo o que ele fazia era maravilhoso, tudo o que eu dizia era magnífico, e assim andávamos nós, de hipérbole em elogio, de louvor em exagero, derretidos e deslumbrados, mão na mão, lábios nos lábios, contemplando a existência como se tivéssemos nascido só para isto, para o amor e um para o outro, de propósito. Era o Ricardo. Não era muito bonito, mas havia qualquer coisa que nos ligava de uma maneira intensa, genuína, talvez até grave. Com o Albano tinha sido diferente. Ele era mesmo giro e sentimo-nos muito atraídos um pelo outro. Fizemos o que tínhamos a fazer e, por conveniência, ou por conforto, ou por vaidade - vaidade de o ter ao lado, a ele, aquela estampa de rapaz -, fomos ficando juntos, eu fui ficando ao seu lado e ele ao meu. Mas acho que não éramos apaixonados. Éramos indicados, talvez. Adequados, de certeza. Enfim, passávamos na rua e notava-se que as pessoas achavam que fazíamos todo o sentido. Pouco importa. Com o Ricardo não foi nada assim, havia ali muito fogo, muita fogueira, muito combustível - e muito por onde arder.

A minha família não sabia de nada disso das nossas fogueiras e, como eu o tinha apresentado sem qualquer tipo de formalidade, quase por acidente, aos meus pais, decidiram convidá-lo para a Consoada desse ano. Imagine-se, os meus pais - púdicos, conservadores e desbocados - a convidarem um namorado meu com quem ainda fazia, com gosto, todas as posições que a inexperiência dos primeiros namoros não permitira (bom, os meus pais não sabiam também desta parte), para passar a noite de Natal. Fiquei feliz, o Ricardo ficou contente e assim fomos ter com a família - que é sempre larga, longa e robusta: mais de 20 pessoas - passar a Consoada num quarto andar da Avenida de Roma.

Eram sete da tarde, liga-me o Albano, o meu ex. Tinha vindo a Lisboa passar o Natal com o pai, para ele não ficar sozinho - a mãe dele tinha morrido uns cinco anos antes, ele era filho único. E o pai tinha dado uma queda. Batera com a cabeça, estava internado. Estável, dizia o Albano. Estável, mas adormecido e entubado, ligado a máquinas cheias de apitos. E o Albano sozinho ficara, agarrado ao telefone. Conversei com o Ricardo, expliquei-lhe a situação. Foi amoroso, disse-me logo "se ele puder vir, ele que venha". Falei com os meus pais, disseram que obviamente podia vir. Temi que o mundo acabasse. Temi que ali desabrochassem desagradáveis revelações - não é que eu tenha segredos, não os tenho, não guardo fantasmas nem esqueletos, mas há coisas que preferia que ficassem só para mim, só entre nós, só comigo, entre mim, a minha memória e uma lembrança distante de alguém longínquo, de maneira a que eu não me consiga lembrar das coisas nunca mais, a não ser que precise de o fazer. Liguei ao Albano, ele primeiro hesitou, mas não o fez com muita força. Veio ter connosco.

Desde o momento em que entrou em casa que uma espécie de terror se apoderou de mim. Debaixo do mesmo teto, eu tinha o meu namorado de meses - carnal, fogoso, apaixonado e apaixonante -, o meu ex-namorado de 17 anos - apagado e gasto -, uma família muito numerosa e pouco dada à consciência do que é estar em sociedade e um peru no forno. O que é que podia correr mal?

Foi a noite mais solitária da minha vida. Não consegui sair de mim, desfrutar, entregar-me à ocasião, conversar, conviver. Fechei-me nos pensamentos, cheia de medos e receios. E eles todos divertidos a noite inteira. O Ricardo e o Albano falaram, falaram, falaram. Riam-se muito. Deram-se muito bem. No fim da noite, quis saber de que falavam tanto, se tinha corrido bem. O Albano, à saída, só me disse "gosto muito do teu Ricardo, é um ponto, sabe tudo sobre cartografia e navegação, é espantoso, falámos disso a noite toda, aprendi imenso". Surpreendi-me. O meu Ricardo a falar de cartografia? No dia seguinte, falei com o Ricardo. Gostou muito do Albano. "Nunca conheci ninguém que soubesse tanto sobre futebol e sobre o seu Sporting." O Albano. O anti-futebol Albano. Não falaram de outra coisa. Pois claro que não.

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