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Histórias de Amor Moderno: “Aos que se riem de nós, alguma vez viram voar uma faca dentro do meu restaurante?"

“Em pouco mais de um ano, o entusiasmo quase eufórico e cheio de amor e de planos deu lugar a um silêncio resignado que usávamos para não nos agredirmos um ao outro.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / Home Again
26 de agosto de 2023 Maria Olívia Sebastião

As pessoas riem-se, brincam com as "facas que voam da cozinha", eu sei que o fazem. Os mais educados, por consideração, fazem-no nas nossas costas, mas os menos respeitosos são capazes de gozar mesmo à nossa frente. Eu rio-me, como se não tivesse outro remédio, faço um esforço e rio-me, finjo que tem graça. São clientes da casa, muitos deles vêm cá comer desde que abrimos, já em 2008. Passou muito tempo. Eu rio-me, mas fica-me cá dentro uma vontade azeda de lhes contar a minha história - e gostava de começar por perguntar, a esses que se riem de nós, se alguma vez viram voar uma faca dentro do meu restaurante.

Eu e o Zé Luís abrimos o estabelecimento logo a seguir a termo-nos casado. Na altura, sabíamos que seria uma aventura com algum risco, abrir um negócio numa vila pequena no meio do interior alentejano, era pior ideia do que é hoje em dia. Agora, os inovadores empreendedores vêm para cá, cheios de visão, povoar as vilas e aldeias com os seus restaurantes e conceitos, e as suas reinterpretações do cozido de grão e da sopa de cação, pratos inventados por gente pobre que soube encontrar maneira de comer bem e com gosto aquilo que havia, e que agora são cobrados - aos distraídos, aos curiosos, aos transeuntes - como se fossem iguarias exóticas desenvolvidas por alquimistas para alimentar Xás e Califas. Mas a gente, quando abriu o negócio, não tinha esse tipo de pretensão. Queríamos só ter a nossa independência. A especialidade da casa era, e é ainda hoje, frango assado. É modesto, é humilde, mas é sério e a clientela mantém-se fiel. Há quem venha de fora, de vilas e aldeias vizinhas, para comer dentro ou para levar para casa.

Em 2008, era tudo novo. A vida, o dinheiro, o restaurante, os clientes, o amor, as dívidas. Havia as dificuldades normais de quando se começa qualquer coisa, e depois vieram as adicionais, a chamada "crise do subprime", que eu não sei ao certo o que é, mas que me lembro de nos ter feito disparar as contas para mais do dobro daquilo que contávamos ter de pagar por mês. Foi nessa altura que decidimos: Zé Luís, ficas com a sala, que é o balcão e as mesas, e eu fico com a cozinha. Dispensámos a pessoa que trabalhava nas mesas e a minha ajudante de cozinha, que tratava da copa e de outras manobras miúdas que, sendo simples, nos tiram muito tempo. E foi assim que começámos uma rotina doida em que dormíamos juntos, acordávamos juntos, trabalhávamos juntos e voltávamos juntos para casa. São muitas horas juntos.

Gosto de acreditar que casei bem, com amor e com gosto, com um homem bom e que eu realmente desejava. E acho que o Zé Luís acredita no mesmo quanto a mim. Só que este tipo de sobrecarga é capaz de dar cabo de qualquer paixão. Quem é que aguenta viver e trabalhar com outra pessoa a toda hora, vinte e quatro sobre vinte e quatro, sete dias por semana, cinquenta e duas semanas por ano, anos a fio, sem perder nada pelo caminho, sem que as coisas se desgastem? O desejo, o prazer, o cuidado, o carinho, a atenção, o gosto que as coisas dão, o rirmo-nos juntos, vai tudo arrastado pela enxurrada em que a vida se torna, uma força imparável, uma corrente tremenda que arrasta consigo o tempo e o espaço onde antes existíamos nós, onde existia eu, como indivíduo, uma pessoa com os meus contornos e limites, e depois esse tempos e esse espaço desaparecem no meio de tudo o resto, arrastados sabe-se lá para onde. Para o infinito. Para o fim do mundo. Para o fim da vida.

Em pouco mais de um ano, o entusiasmo quase eufórico e cheio de amor e de planos deu lugar a um silêncio resignado que usávamos para não nos agredirmos um ao outro. Foi estratégia que pouco durou. Ao fim de apenas meses, o silêncio passou de resignado a rancoroso, e só era quebrado pelas vozes iradas que levantávamos no limite do desespero para dizermos, um ao outro e para toda a gente ouvir, o quanto nos odiávamos, o quanto lastimávamos o maldito dia em que fomos ter a triste ideia de nos casarmos, o quanto lamentamos a existência do outro ali, em permanência, mesmo ao lado, mesmo à frente, mesmo atrás, mesmo em toda a parte, sempre, a toda a hora, um sufoco, uma maldade que a vida nos fez e que não se desfazia nunca, e que não tinha solução.

Em 2020 já nem dormíamos juntos. Eu ficava no quarto, o Zé Luís fez do sofá o seu recanto. Não foi combinado, nem sei se terá sido de propósito. Eu deitava-me na cama e ele ficava na sala a olhar para a televisão ou a olhar para o telefone. Gostava de abrir uma cerveja quando chegava a casa. Depois começou a abrir duas, três, quatro. E adormecia ali, sentado ou mal deitado. Comecei a levar-lhe mantas para se tapar e uma almofada. Dava-me pena. Uma pessoa até pode odiar o outro, mas há um momento, há um ponto frágil qualquer em que olhamos para ele e vemos o homem de outrora, aquele de quem, algum dia e por alguma razão que agora nos escapa, gostámos de verdade. E então cedemos, dá-nos a compaixão e esquecemo-nos que o amor já acabou, mas que há outras maneiras de sentir que também importam. Estabeleceu-se então esse acordo tácito: num entendimento sem palavras, ele passou a dormir no sofá.

Aos poucos, o afastamento físico parecia começar a deixar que as feridas daquele ódio sarassem. De manhã, acordar sem o ter ao meu lado, deixava-me diferente, mais leve, menos angustiada. Essa folga dava-me alguma tolerância, e acho que a ele também. Só nos começávamos a odiar com fervor novamente a partir do pico dos almoços, quando a confusão na casa aumentava e os pedidos não paravam de chegar. Então, sim, voltava a rotina da aversão, voltavam os maus modos, os rostos fechados, o semblante carrancudo. A infelicidade profunda.

Foi pouco tempo mais tarde que o Zé Luís começou a não ir logo para casa quando fechávamos o restaurante. Ou ficava a fechá-lo sozinho e dizia-me "vai andando, vai tu" e depois chegava já de madrugada. Nunca lhe perguntei o que ia fazer. A ausência de intimidade entre nós, que era já prolongada - o casamento foi consumado, mas a paixão encalorada durou pouco, foi rapidamente abafada pelos compromissos, pelos encargos, pelos horários, pelas listas de compras, pelo depositar no banco, pelo levantar do banco antes que a prestação caísse. As prioridades acumulavam-se a tal velocidade que eu dei por mim sem lhe sentir o corpo há mais de um ano em pouco menos de dois anos de casados. Ao fim de quatro ou cinco, já nem há quanto tempo não tínhamos um bocadinho só para nós.

Decidimos conversar. As coisas já se arrastavam em demasia, muito para lá dos limites do aceitável. "Vamo-nos separar", disse eu. "Já vamos é tarde", disse ele. Era a sua maneira de concordar agressivamente. Para o que era, tanto me fazia: separámo-nos. E divorciámo-nos, queríamos tudo no papel, preto no branco. Só havia uma questão: então e o restaurante, quem é que ficava com ele? Eu não estava disposta a abdicar de um negócio que me deu tanto trabalho e tanta tristeza, que me apagou, que me sugou e que a única coisa que alguma vez me deu, e só ao fim de alguns anos de sacrifícios, foi dinheiro. Não, não ia abdicar. E o Zé Luís também não. Claro. "O restaurante é meu", disse ao advogado. "É teu não, é nosso", disse eu ao advogado. Era um beco sem saída. Nenhum dos dois tinha sequer poupanças que chegassem para comprar ao outro, nenhum dos dois se podia endividar ainda mais para o fazer - e, acima de tudo, nenhum dos dois estava na disposição de vender. "Porque é que não mantêm os dois o restaurante?", sugeriu o advogado. "O negócio não é rentável? Vamos ser práticos, meus amigos." E foi assim que resolvemos. E ali estamos a trabalhar juntos e separados, juntos e divorciados, ex-marido e ex-mulher, a servir frangos para fora e para comer dentro, dia após dia, ano após ano, cada qual com a sua vida, mas nos falamos, nem bom dia, é "um frango para dois", é "uma salada grande para quatro", é "um pica-pau para o balcão" e está feito. Nem bom dia, nem obrigado. Não precisamos de nada disso. "Vamos ser práticos", disse o advogado. E nós somos. Mas nunca voaram facas. Isso é tudo exagero.

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