“Sou humana!” Jacinda Ardern, a líder feminista de que o mundo precisava
Após quase seis anos a enfrentar crises e calamidades de toda a sorte, a primeira-ministra da Nova Zelândia anunciou a renúncia e, diz, não vale a pena especular sobre o real motivo, simplesmente esgotou a energia. A histórica passagem de Jacinda Ardern pela liderança de um país que a amou.
Foto: Getty Images19 de janeiro de 2023Teresa Gens
As sondagens já o previam, a vitória era dela. O que não se imaginava era que o resultado das eleições desse ao Partido Trabalhista neozelandês quase 50 por cento dos votos. O que não antecipavam - nem as sondagens, nem o seu partido, nem a oposição-, era a vitória histórica que ela viria a conseguir. O que ninguém, na bolha política e mediática, parecia saber, sabia-se cá fora, nas ruas, nas casas, nos transportes públicos, nas empresas, porque foi daqui que o povo da Nova Zelândia lhe disse que queria continuar a ser amado. À liderança gentil mas eficaz que ela lhes deu - desde a sua primeira eleição em 2017 (antes era deputada) -, o povo "pagou" com a confiança de lhe permitir formar um governo de partido único, o seu. Há meio século que tal não se via neste país-ilha, nos antípodas de Portugal, e muito menos se esperava ver por estes tempos, em que a fragmentação partidária dá luta feroz aos antigos modelos de governação.
A vitória dos Trabalhistas nas eleições de 2020 foi esmagadora. Um nome, nome de mulher, de jovem mulher, de mãe recente, permitiu-o: Jacinda Ardern, a mesma que hoje resignou, surpreendentemente, quase em lágrimas, ao cargo de primeira-ministra que ocupou quase seis anos.
Com Justin Trudeau, em 2018. O primeiro-minstro do Canadá descreveu-a como uma "líder mundial incrível"
Foto: Getty Images
A mais jovem chefe de governo de sempre (foi eleita aos 37 anos), está, agora, aos 42, cansada, depois de uma reeleição em 2020 e de cinco anos e meio a chefiar o governo. Está já "sem energia" para desempenhar o cargo como ele merece, como ele exige, como sempre fez. E fez muito. Desde logo, a resposta à pandemia (e pós-pandemia) de covid-19 com uns inacreditáveis 25 mortos contabilizados por coronavírus, numa população de cinco milhões -o que, claramente, alavancou o seu segundo, e brilhante, resultado eleitoral. A sua decisão de fechar o país deu que falar mas, viu-se, revelou-se certeira.
Apesar de um eficaz controle da pandemia, a sua liderança teve de fazer face a graves problemas: uma crise imobiliária, com muita gente a morar na rua e em carros, bem como a reconstrução de um sector industrial em frangalhos, tal a corrosão daquele período (ver abaixo). Algum conservadorismo fiscal, critica a oposição, fê-la descartar um imposto sobre a riqueza, e sobre lucros extraordinários, limitando as possibilidades para programas sociais de escala. Opções difíceis, em tempos difíceis, lembram os seus defensores.
Afetuosa e empática, demonstrou firmeza na ação, nomeadamente após um dos momentos mais sensíveis da governação, o ataque terrorista de Christchurch (ver abaixo). Mesmo perante a alta pressão, e com um país chocado, Ardern manteve-se constante e fiável aos olhos dos que governava.Fazia "com amor", dizia, e elogiava a bondade que via como uma "virtude política". Não obstante, comentadores políticos sempre relevaram a sua astúcia para anular opositores.
Com o marido, após o anúncio da demissão.
Foto: Getty Images
Hoje que se despede (só deixa as funções no início de fevereiro),enumeram-se os vários momentos chave nestes anos de governação de Jacinda Ardern (ver abaixo), marcados por várias crises, nacionais e internacionais. As suas respostas em momentos duros enfatizavam os valores de empatia e humanidade, um legado óbvio e raro que a sua passagem pelo governo deixa.
Mas, se muitas vezes deu a volta, sem agressividade ou explosão, nem sempre fez tudo bem.Enfrentou, por exemplo, fortes e justas críticas da oposição pelos parcos resultados na redução das emissões de carbono (quando os compromissos eleitorais assumidos eram de monta); e, também, na insuficiente erradicação da pobreza infantil - promessa chave aquando da campanha eleitoral de 2017 (era deputada desde 2008). A diferença face a outras lideranças? A aceitação de que ficou aquém do que se propôs, sem desculpas. O mundo não está habituado a líderes assim.
Com Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia, na Nova Zelândia, novembro de 2022.
Foto: Getty Images
Tal postura de humildade, e proximidade, rendeu-lhe uma popularidade tal que nasceu a Jacindamania, rendidos que estavam os neozelandeses com o perfil, e, também, com os bons resultados da governação.
Uma das pedras de toque da sua ação foi o combate ao sexismo, nomeadamente na política. Teve uma filha durante o mandato, gozou a licença de maternidade, chegou a levar a filha bebé para o local de trabalho e fazia, amiúde, transmissões em direto, pelo Facebook, em que se ouvia Neve a chamá-la (quem nunca em teletrabalho viveu o mesmo?!). Tal não a impediu de cumprir uma agenda social e económica que, até à atual inflação galopante (que na realidade começou no pós-covid e alterou as regras do jogo), fez da Nova Zelândia uma nação desenvolvida e, reconhecidamente, defensora dos valores do humanismo.
Podemos ter mais Jacindas? Por agora, a sua missão à frente dos destinos da Nova Zelândia suspende-se. Ao entrar no sexto ano como primeira-ministra, diz que deixou de ser possível porque deu tudo: "Dei tudo de mim para ser primeira-ministra, mas isso exigiu muito de mim", confessou na conferência de imprensa desta manhã na Nova Zelândia, início de madrugada em Portugal. Não saiu porque o cargo "é difícil", disse ainda, "fosse esse o caso teria ficado apenas dois meses". "Saio porque com um papel tão privilegiado vem responsabilidade. A responsabilidade de saber quando és a pessoa certa para liderar e, também, quando não és".
Vai conseguir estar perto da filha, Neve, quando começar a escola, e, finalmente, marcar data para o casamento com o seu companheiro. Na imprensa pelo mundo fora questiona-se se este caso não põe em causa a capacidade de as mulheres (e mães) governarem um país. A resposta óbvia é não. O seu legado já é histórico. De quantos governantes podemos dizer o mesmo?
Leia tambémHillary Clinton toma o poder e acerta contas em novo livro
Com a filha Neve no Dia de Waitangi na Nova Zelândia, a 4 de fevereiro 2020. O tratado de Waitangi, de 1840, garantia ao povo Maori os mesmo direitos dos cidadãos britânicos e a propriedade das suas terras.
Foto: Getty Images
Os 10 feitos mais icónicos da primeira-ministra que agora se despede
Forte e empática ante um vírus desconhecido e mortal
Dona de uma "grande inteligência emocional", segundo o comentador político Ben Thomas, durante a pandemia houve uma Jacinda de aço, a que impôs medidas das mais restritivas do planeta, e uma Jacinda empática que uniu os neozelandeses à volta do desígnio de erradicar o vírus na ilha. Teve das taxas mais baixas de doença e mortes do mundo. Os resultados granjearam-lhe uma fama planetária.
Embora não com o alcance prometido, a pobreza infantil, uma das suas principais preocupações, diminuiu na Nova Zelândia a par de uma generalizada melhoria nas condições de trabalho dos pais – quer na legislação laboral, quer nos salários dos trabalhadores. Uma taxa de emprego recorde, 26 semanas de licença parental remunerada, aumento do salário mínimo em mais de 30 por cento, são vitórias que o governo pode anunciar com propriedade.
A mulher não tem de revelar os seus planos sobre a maternidade.
Sempre preparada para um bom combate contra o sexismo genericamente e, em particular, no local de trabalho, Jacinda disse, desde a primeira hora – quando eleita como líder dos trabalhistas –, que não se importava de responder às perguntas dos jornalistas sobre os seus planos para constituir família, mas deixou claro que as mulheres não têm de responder a perguntas com este teor que lhes sejam colocadas pelo (potencial) empregador. "É totalmente inaceitável que em 2017 as mulheres tenham de responder a essa pergunta no seu local de trabalho", disse então. Em plena campanha para a sua reeleição perguntaram-lhe se havia engravidado durante a mesma. Revirou os olhos como resposta.
Jacinda Arden responde às questões dos media durante uma reunião no Parlamento, janeiro de 2019.
Foto: Getty Images
Os direitos das mães trabalhadoras
Enumerá-los foi uma tarefa permanente durante estes quase seis anos de gestão dos destinos da Nova Zelândia, e um discurso que levou sempre ao resto do mundo. Simbolicamente, fez-se acompanhar pela sua bebé de três meses numa reunião da Organização das Nações Unidas. Foi a sua forma de chamar a atenção do mundo para os "desafios logísticos" que a mães trabalhadoras enfrentam, e para a necessidade de "tornar os locais de trabalho mais abertos".
O abraço sentido após o sangrento ataque de Christchurch
A 15 de março de 2019 a primeira-ministra conhece um dos momentos mais difíceis da sua vida e que mexeu com toda uma nação. Um homem armado atirou aos fiéis que se encontravam em duas mesquitas. O balanço foi terrível: 51 mortos. A fotografia do seu abraço emocionado (vestida com um hijab) a familiares e membros das comunidades que perderam os seus neste ataque terrorista correu mundo. E se não apagou a dor da tragédia atenuou-a juntamente com várias ações que assumiu – nomeadamente, a alteração da lei sobre o uso de armas no país, "armas que foram feitas para matar e mutilar", lamentou então. Apertou o controle do seu uso, contrastando com Donald Trump nos EUA. Ardern nunca citou o nome do atirador. "Com este ato de terror ele procurou muitas coisas e também notoriedade, e é por isso que nunca vou pronunciar o nome dele". Assim fez, retirando poder ao supremacista branco que matou por ódio imigrantes e refugiados.
A fotografia do seu abraço emocionado a familiares e membros das comunidades que perderam os seus no ataque terrorista de Christchurch correu mundo em 2019.
Foto: Getty Images
Ao longo da sua governação sempre fez por representar todos os neozelandeses. A decisão de usar uma capa Maori numa reunião de líderes da Commonwealth, em 2018, no palácio de Buckingham, foi exemplo da consciência de que trabalhava para um país multiétnico. Também o nome que deu à sua filha, Neve, resulta da fusão de um nome irlandês e da palavra amor na cultura Maori, que tem uma língua própria e oficial na Nova Zelândia.
Em 2018, quando usou uma capa Maori numa reunião de líderes da Commonwealth no palácio de Buckingham.
Foto: Getty Images
O orçamento (de estado) visa sobretudo o bem-estar das pessoas
Jacinda Ardern assinou um orçamento com uma dotação de cerca de 1,9 biliões de dólares neozelandeses para gastos com a saúde mental. Medidas concretas para garantir o bem-estar como prioridade, disse ela então.
A primeira-ministra cortou em 20% a sua remuneração, e do demais elenco governativo, bem como dos altos cargos da administração pública, como forma de demonstrar solidariedade com as dificuldades económicas que a covid-19 trouxe aos seus concidadãos - com cortes salariais e despedimentos.
Outro momento memorável foi a calma que Ardern conseguiu manter durante um terramoto enquanto estava a falar em direto. O exemplo que achava que devia dar, como governante, estendia-o aos demais membros do governo. É conhecida a forma implacável como puniu a Ministra da Saúde que quebrou as regras de confinamento durante a pandemia dando um passeio de bicicleta.
New Zealand PM Jacinda Ardern is the coolest cat around. First she dispatches with COVID-19. And here she is calm as can be doing her live interview during an EARTHQUAKE. #ElectMoreWomenhttps://t.co/rr0UpJyM7M
A liderança exercia-a mostrando-se ao nível dos seus concidadãos, tinha de decidir mas mostrava sentir na pele as consequências das suas decisões. Ao longo da pandemia, partilhava as suas cenas domésticas, com o companheiro e o bebé, falando sobre o seu cansaço e frustrações causadas pelos bloqueios que ela própria havia imposto. Esta forma de agir levou a que a Harvard Political Review lhe traçasse o carácter de liderança: "autêntico, empático e ousado". Ao longo do seculo XX os líderes subiam ao poder projectando qualidades tipicamente masculinas (…) a agora cessante primeira-ministra derrubou com imagens e filmagens domésticas esse paradigma.
Não estar agarrada ao poder
A resignação hoje anunciada de forma sentida, respeitosa e justificada, é a melhor despedida para um líder que percebe que ele não é o cargo, apenas está (de passagem) pelo cargo, enquanto for capaz de guiar os destinos, neste caso, de uma nação. A robustez das democracias passa por esta presença de espírito de um governante, e este é mais um contributo que Ardern deixa às democracias.