Saltos na calçada

Crónica de Nápoles: non parlare inglese, grazie mille

Foto: IMBD @ElenaFerrante
17 de novembro de 2023 Patrícia Barnabé

Basta uma viagem ao sul mais autêntico para perceber que a capacidade de adaptação portuguesa não é só humanismo e diplomacia, também é corolário da sua subserviência natural. Ah, Aljubarrota e tal, não se metam no meu quintal, e somos um pequeno país corajoso em algumas coisas, mas se nos cheira a uns trocos a mais, lá está, somos facilmente corruptíveis. Acho que sofremos de um síndroma de pobreza crónica, e apesar de muitos de nós terem saltado de antepassados recentes que mal sabiam ler quanto mais escrever, há uma certa mania da grandeza. A mesma que vê génios em qualquer pessoa com algum talento. É essa mesma mania que nos faz mudar mais de carro do que os alemães que o fabricam ou andar de cu tremido para todo o lado mesmo com uma estação à porta.

É que nem nos podemos chamar de novos-ricos, é mais um certo deslumbramento de pequenitos que, no pós-25 de Abril, os anos 80 atearam com o seu excesso de purpurinas e de yuppies. Agora que o mundo entra pelo écran, mesmo com gosto duvidoso, seria uma boa altura para deixar os fatos da Maconde, e deixar o beija-mão aos estrangeiros ricos, porque aos pobres muito poucos ligam. Portugal é um país muito deslumbrado porque embora tenha algum mundo, é muito recente e não foi acompanhado de reflexão, ou uma verdadeira cultura. As pessoas só querem ver-se e ser vistas, um dos tiques de terceiro-mundo que também redundam na corrupção a cada canto, os que se acham mais e por isso ocupam espaço e roubam os remediados. E isto não acontece só aos remediados que sobem na cadeia alimentar, é mesmo uma mentalidade de chico-esperto. Para quê estudar ou trabalhar se conheço pessoas?

O que mais irrita nestes tiques de pequeno país é o fascínio com os estrangeiros, como se não existisse já internet, e low costs, e tantos livros bons para ler em várias línguas que uma vida não lhes chega. Não, queremos pertencer à elite, mesmo que ela não esteja em nós por nenhuma via. Lá está, problemas de auto-estima nacional. E o que mais irrita são as marcas portuguesas em inglês, para parecerem estrangeiras, os sites todos em inglês, socorro, os cafés com nomes em inglês, para os estrangeiros não se perderem e poderem beber galões caríssimos porque se chamam lattes, e são as expressões em inglês a torto e a direito, e que sobem até ao rooftoop. E, posto isto, eu também digo whatever, mas sempre detestei o "para inglês ver" desde que, adolescente, entrava nos bares do Algarve e me falavam em inglês. Ah, Aljubarrota e tal, mas agora vamos ser a casa de repouso dos velhos ricos do Ocidente enquanto os nossos jovens mais inteligentes emigram com os canudos que nós pagamos debaixo do braço. Serviço à nação? Qual nação, se eu posso ganhar mais um dinheirinho?

Hoje, em Lisboa, existe um novo tipo de café que dizem ser cosmopolita, palavra que que eu julgava significar outra coisa, onde o atendimento é em estrangeiro, o menu em estrangeiro, as vitrinas cheias de pães de banana e uns buns de canela que os portugueses nunca comeram na vida, nem os que têm uma tia inglesa como eu, que me deixou beber chá em criança e até hoje passo bem sem bicas. É bimbo, porque não foi pensado para os lisboetas primeiro, foi pensado para os turistas depois. Lá está, para ganhar mais um dinheirinho.

Por isso, basta chegar a Nápoles, mas também a outras cidades de Itália, como a Espanha, França, ao sul europeu, para perceber que lá tem-se amor pelo país onde se nasceu e pela sua língua. Imaginam um emigrante italiano, espanhol ou francês (bem sei que não querem ser latinos, mas a sua língua traí a sua snobeira) a visitar o país onde nasceu e a falar a língua do país para onde foi? Pois. Por isso, viver a estridência de Nápoles, onde fui em setembro passado, é refrescante, encantador, admirável. Ouvir pessoas a gritar de varanda para varanda, a descer um balde com uma corda para o vizinho lá meter a meia que caiu do estendal, um caos de motas e de mercados improvisados, bairros históricos que permanecem dos seus e onde se torce intensamente pelo clube da cidade e ai de quem não alinha. E os turistas que se adaptem, bebam uma Peroni ou Apperol e é se querem. Torrada? Não senhora, aqui o pequeno-almoço italiano é com bolos, e non parlare inglese, grazie mille. Apeteceu-me debruçar-me no balcão, o que era fisicamente impossível, e abraçar os empregados. É que Itália é o país mais fustigado pelo turismo do mundo, só ultrapassada talvez pela Tailândia que às vezes tem de fechar algumas ilhas para as plantas voltarem a crescer.

Se a internet e a globalização estão a retirar parte da autenticidade dos lugares, para não dizer do exotismo, não esteja um woke furioso a ler-me, e do prazer da descoberta do mundo e do outro, também estão a tornar as cidades todas iguais, com as mesmas pessoas e os mesmo lattes. Eu sei que soa politicamente incorrecto - Ricky Gervais estou sempre contigo! - mas a diversidade mata a diversidade.

Para além da questão de respeito e de amor-próprio que se sabe, assunto em que não somos muito versados, pelas mesmas razões de sempre, que começam no catolicismo, continuam na ditadura e redundam numa pobreza pantanosa, nem a nova geração nos dá esperança, com as suas afetações em inglês, a sua fixação pela celebridade e dona de uma auto-estima que não se belisca, e de um sarcasmo que lhes salva o quotidiano, muito menos pensa muito no outro. Generalizações à parte, passámos de ser um país querido que tenta falar as línguas de todos, até porque crescemos sem legendas e abertos às culturas do mundo, para dar pontapés no nosso magnífico português, já para não falar de que estamos a vender os nossos rooftops sobre rio e as linhas da costa aos outros. Fala-se tanto da colonização, e bem, mas e se em vez de bater no velho passado, porque não prever os abusos do novo colonialismo?

Há uns cinco anos, nós, os poucos que vivemos no centro, deixamos de poder comprar comida de animais no supermercado dos Restauradores, por exemplo, mas passámos a ter refeições e máquinas para espremer sumos e levar. Porreiro, vivam os airbnb's à conta dos quais vive muita gente boa. Nápoles, por muito habituada que esteja a ser atropelada pelas excursões fascinadas por receber em Capri, e por osmose, o glamour e sexidão extrema de Brigitte Bardot no cenário de Mépris de Godard, continua italiana, a falar italiano e a comer italiano. Querem lá saber. Não querer saber, como se sabe, é onde reside a grande pinta.

A autenticidade em certas zonas de Itália, como ainda em Espanha e em Portugal, e excluindo as cidades que a perdem impiedosamente, é tão boa que é quase violenta. E Nápoles é um exemplo acabado de amor-próprio. Mesmo com montes de lixo aos pontapés, os seus edifícios e ruas estreitas em pedra, onde nos cruzamos com os altares dos santos do costume, e de Maradona, porque vale tudo para o seu povo ser feliz. Nápoles é o sul em estado puro, cru, raçudo. Não é como o nosso que varreu a sua beleza natural para construir sem lei, nem rock, nem gosto, o que é o pior de tudo.

Porque é que a Fonte da Telha permanece no airbnb? É o português a pôr-se em bicos dos pés para ver se chega à classe social seguinte. Até se entende o desejo, mas nunca os meios. Em Nápoles, a cidade que inventou a pizza, lambemos os dedos a seis euros, aqui no meu bairro comemos sucedâneos a chegar aos 20 euros. Em Nápoles, velhotes cantam o amor, generosamente, nas ruas. E em italiano. Aqui não há jardim onde não haja uma violinha e uma bossa nova, e se adoramos bossa nova, mas pô. Qualquer dia os nómadas só se vêem uns aos outros, bom, os franceses não têm feito questão de ver mais ninguém, e assim se vende a calma e a alma de uma cidade por mais um dinheirinho, enquanto a maioria do país só gostava de ter uma vida um nada melhor. 

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