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Roteiro de Nápoles pelos "sítios" de Elena Ferrante

Se Nápoles fosse um livro, seria um qualquer de Elena Ferrante. Para fãs ou para curiosos, não dá para dissociar a escritora da cidade.

Foto: Getty Images
01 de maio de 2023 às 07:00 Maria João Veloso

Será impossível aterrar em Nápoles sem ir à procura das paisagens literárias de Elena Ferrante; pelo menos, o princípio aplica-se a quem padecer da "febre" Ferrante, doença crónica, provavelmente incurável. Desta procura nascem pequenas comoções. Gestos simples como comer um sfogliatelle (delicado folhado com ricotta) ou olhar o Vesúvio sobre o mar com as cores do pôr do sol tornam-se "a" experiência. 

Foto: D.R
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Ela

Elena Ferrante é o pseudónimo da escritora napolitana autora da tetralogia que começa com A Amiga Genial e que, ao longo de mais três volumes, conta a história de uma amizade invulgar entre duas meninas: Lila e Lenú. A última chama-se Elena Greco – narradora da história – e, desde o início, engana o leitor, levando-o a pensar que a coleção se trata de uma autobiografia. Fá-lo tão ardilosamente que os seus livros têm sido devorados no mundo inteiro. Outro detalhe que a torna mais desejada é nunca ter dado a cara. Entrevistas só por e-mail. Já a descobriram à conta do cruzamento de dados: finanças versus volume de vendas, mas isso não interessa quando se pisa a Piazza do Municipio, cuja estação de metro é dos arquitetos Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura. 

[De repente passa pela cabeça:"Nápoles é tão Elena Ferrante". Explosiva, tal e qual a sua escrita. "O resto é mar", como na canção, o único calmante para dias e noites intrépidas, sem hora marcada.]

Quem?

O napolitano comum, no entanto, nunca ouviu falar de Ferrante. Por exemplo, o empregado de mesa de Acunzo, uma botegga storica, acusa o toque mal soletramos: "Fe-rran-te". Incomoda-se com a pergunta: "conhece Elena Ferrante?" Safa-se a pizza Margherita e o spaghetti alle vongole. O restaurante fica no Vomero, bairro cosmopolita situado numa colina que se alcança através do funicular central a partir da Via Toledo, talvez a rua mais movimentada de Nápoles. A mesma que Lénu atravessa com o pai quando olha o mar a primeira vez.  Pensada pelo vice-rei D. Pedro Toledo, não chega a ter um quilómetro e meio, mas tem muitos pontos de interesse cultural. Dali entra-se na majestosa galeria Umberto I. O edifício é uma espécie de "filho" da Galeria Vittorio Emmanuele II de Milão. 

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Pedonal, comercial, pejada de napolitanos, a rua tem uma banda sonora própria. As motorizadas medem forças com as sirenes das ambulâncias e fazem belos duetos.

Nápoles, clássica e moderna

Seja quem for Ferrante, sente-se na sua obra o pulsar da cidade. Ou seja, a pessoa que escreve sente no peito o descompasso napolitano. Ora decadente, ora barroco, mas sempre vivaço. Já o visitante pode perfeitamente regressar a casa – como Lénu em A Amiga Genial – "como se tivesse ido a uma terra distante". Uma terra que até então o estrangeiro tinha cheirado apenas através da obra da escritora. Não dá para passear na via Chiaia e não lembrar o episódio com os irmãos Solara no Fiat 1100. "Entrámos na via Chiaia. Foi como se atravessássemos uma fronteira." Refere no primeiro volume da tetralogia publicado em 2014 pela Relógio d´Água. Na época a Chiaia era um lugar que segregava pessoas dos arrabaldes como as do bairro Rionne Luzatti.

Curiosamente, o "bairro" – nome que a narradora dá ao lugar periférico de onde vem – tornou-se nos últimos anos uma espécie de "meca" para os leitores de Elena Ferrante. Os habitantes têm orgulho desta "filha" cujas palavras correm mundo, que assina crónicas em jornais como o The Guardian, o The New York Times, o The Washington Post. Se outrora as raparigas que orbitavam por ali "pareciam ter respirado outro ar, (…) terem-se vestido noutro planeta", hoje nota-se na Chiaia uma certa decadência, entre vendedores ambulantes, bancas de comida de rua ou lojas que são iguais em todos os cantos do mundo. Outro spot é a Piazza dei Martiri, onde se instala a sapataria Solara com o controverso painel artístico de Lila. Onde esta sofre um aborto espontâneo. Hoje, no mesmo lugar, há uma sapataria. À volta da praça sente-se a atmosfera nobre da cidade. 

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Quartieri Spanoli

Mas Nápoles é múltipla e tanto se empertiga como anda de rojo. No mercado Pignasecca, onde o pai de António – primeiro namorado de Lénu – descarregava fruta, encontram-se produtos hortícolas, peixe e marisco a saltitar de tão fresco.

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Para uma experiência sociológica é perder-se no Bairro Espanhol, construído no século XVII para receber as tropas de Pedro Toledo. Devoto a Maradona, religioso e profano, o bairro terá talvez os estendais de roupa mais criativos do mundo. Por baixo vêem-se grafitis, altares a Maradona, palacetes esventrados, restaurantes e napolitanos tão operários como as famílias do Luzatti. No começo da via da Toledo fica a piazza Dante, onde Elena Greco fez gazeta pela primeira vez. Antigo convento de São Sebastião, o edifício cor de ferrugem continua a ser escola secundária. Ao lado a Via Port’Alba é o paraíso dos livros. Alfarrabistas e livrarias, porta sim, porta sim. 

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Ao invés de remexermos "nos livros usados" como Lénu, voltamos a perguntar por Elena Ferrante. Na Berisio, onde Lénu trabalhou, acontece um diálogo no mínimo surreal com Fábio, proprietário da livraria. 

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- Conhece Elena Ferrante?

- Não li.        

- Mas conhece a obra dela? Sabe se é amada pelos napolitanos?

- Não sei. É muito lida aqui em Nápoles, amada é uma opinião pessoal.    

Na papelaria Amodio, outro Fábio mais simpático mostra no iPhone como a produção lhe transformou a casa para filmar ali a série da HBO A Amiga Genial, inspirada na tetralogia que vai na quarta temporada. 

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Il cuori / o pulsar do coração

Da Piazza Dante apanha-se a Via dei Tribunal, por onde a protagonista da história tantas vezes passou. Eventualmente a rua mais católica do mundo tem duas dezenas de igrejas. Apesar de o Duomo (catedral) ficar nessa rua, a Capela de San Severo e respetivo cristo velato é uma experiência extrassensorial, acompanhada por música sacra italiana do século XVIII. Esculpida em mármore em 1753 por Giuseppe Sanmartino, apela à elevação. Os telefones serem proibidos ajuda à oração. Não muito longe dali encontra-se, na Via Benetto Croce, a Madonna com la pistola, de Banksy. Estar protegida por um vidro é quase uma heresia. Ainda na Via dei Tribunal a Nápoles subterrânea é imperdível. Descer às catacumbas é todo um fado arqueológico. Túneis - alguns muito apertados - com mais de 5 mil anos. Explorados para extrair tufo para construir a cidade, durante a Segunda Guerra Mundial serviram de abrigo aos napolitanos. Em a História da Menina Perdida, Lénu lembra quão assustadoras eram "as fileiras de caveiras" no subsolo da cidade.    

O entardecer obriga a que se atravesse de novo a Toledo, desta feita a caminho do porto da cidade. O lungomare (beira-mar) da Via Nazario Sauro é o lugar escolhido para ver o pôr do sol no Vesúvio. Roulottes vendem prosecco em copos de plástico, casais de namorados fazem juras de amor e passam barqueiros que convidam a um breve passeio até ao Castell dell’Ovo. Não é só o castelo mais antigo da cidade, como é o poiso preferido de muitos restaurantes de peixe e marisco. Quase todos com uma vista privilegiada para o mediterrâneo

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Comer e rezar por mais

Chama-se Margherita em honra da rainha homónima e nasce em Nápoles em 1889. A mozarela fresca e a cozedura a altas temperaturas tornam-na imbatível em sabor e consistência. Na L’antica Pizzeria de Michelle pode provar a mesma receita que encantou Julia Roberts no filme Comer, Orar e Amar. A restante gastronomia é intensa como a cidade. No coração do bairro Espanhol, na Trattoria Nennella, os pratos do dia parecem fruto de receitas antigas. Destaque para a inusitada pasta que mistura batata com provola e pancetta. A refeição tem direito a espetáculo ao vivo: músicos de microfone e guitarra a cantar em dialeto em cima das cabeças dos gentios. O limoncello é servido como digestivo e cai sempre bem. É fácil comer bem e barato na cidade. Como resistir aos cuoppi cheios de fritos napolitanos do mar e da terra, à venda em qualquer canto. 

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Para uma verdadeira imersão literária é obrigatório tomar um café no Gambrinus. No quarto volume da tetralogia, Lénu e Lila já adultas lancham ali. Mas nem só de Ferrante vive o café histórico. Wilde, Sartre, Hemingway, Marinetti entre outros sentaram-se por ali. Aberto em 1860, precisamente no ano da unificação de Itália, o Gambrinus é uma viagem na cápsula do tempo. Aqui nasce a tradição do "il café sospeso". Deixa-se um café pago para quem necessitar. A despedida faz-se na Piazza do Plebiscito, uma das maiores de Itália. Ali são imperdíveis o Palazzo Real e respetivo jardim romântico com os elegantes cavalos do escultor Mimmo Paladino. Do lado oposto, a Basílica Real São Francisco de Paula é um exemplar neoclássico inspirado no panteão de Roma. 

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Sem Elena Ferrante como premissa Nápoles seria outra viagem. Mais cinematográfica, mais Sophia Loren, que se refugiou ali durante a Segunda Guerra Mundial, mas isso ficará para outras núpcias.     

Sai-se de Nápoles com esta questão: O que fará mais sentido, partir da cidade e mergulhar no mundo Ferrante, ou fazer a volta ao contrário? Nunca saberemos.  

*este artigo foi escrito com a banda sonora de "Cinema Paradiso" de Ennio Morricone.

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