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Beatrice Salvioni, escritora: “Vêem-nos como génios, pessoas misteriosas, isso não é verdade. A inspiração é um mito.”

Um livro que se lê com voracidade, "A Malnascida" é uma história sobre duas amigas adolescentes nos anos 30 de uma Itália fascista. Conversa com a autora de primeira viagem, na sua editora, em Lisboa.

Foto: Leonardo Cendamo/Getty Images
23 de novembro de 2023 às 12:47 Rita Silva Avelar

Não há nada mais desarmante do que alguém que não tem medo de dizer a verdade, por mais ausência de deslumbramento que ela tenha. Assim é Beatrice Salvioni, 28 anos, com quem nos encontramos em Lisboa, para conversar sobre o seu primeiro livro, um romance passado em Itália, nos anos 30, que tem como pano de fundo um período de fascismo e um contexto social precário. No centro de A Malnascida (Alfaguara), título que dá a alcunha à protagonista, Maddalena, está ela e a sua melhor amiga, Francesca. As duas são de famílias muito distintas: a primeira, livre e rebelde, criada numa série de tragédias e pobreza que a parecem envolver, pois "atrai o diabo"; a segunda, vinda de uma casa conservadora e abastada, sente-se como um pássaro numa gaiola.

Conduzido por uma escrita escorreita e bela, o leitor segue Maddalena e Francesca e a forma como crescem numa cidade que nunca tira o olhos delas, que as vigia e as mantém na sua redoma controladora, enquanto descobrem a dura fase da adolescência e do que ela significa para elas, como mulheres num mundo vincadamente patriarcal. Voltando a Salvioni, o livro chega agora a 32 países, e valeu-lhe o Prémio Scuola Holden. Será adaptado a série televisiva. Diz a crítica que a escrita da autora - que estudou Filologia Moderna pela Universidade Católica de Milão - tem ecos de autores como Natalia Ginzburg, Alberto Moravia ou Elena Ferrante, nós dizemos que ela tem uma voz muito própria.

Foto: DR

Vi no Instagram que passeou por Lisboa. Qual é o real feel da cidade?

Percebi que Lisboa tem uma luz linda. Estive num restaurante vegetariano, na Rua da Horta Seca, e no Cais Sodré. Não me lembro do nome das ruas da cidade de onde venho, por isso confesso que não sei exatamente onde estive agora, mas adorei passear pela cidade.

A Malnascida é um page-turner. Para um primeiro livro, há uma segurança na narrativa, uma força na escrita. Escreve desde que se lembra?

É o primeiro livro publicado, mas não é o primeiro livro que escrevi. Este livro carrega todos os livros que escrevi antes. Pode parecer banal dizer que toda a vida escrevi, mas é verdade. Todos os livros que hoje menosprezo, escritos aos 17 anos, modestos, sobre vampiros – e que, infelizmente a minha mãe guardou! (risos) – contam. Ela é uma acumuladora das coisas que eu crio – é o destino da filha única. Um dia pode tramar-me: "posso publicar esta história que escreveste aos 16 anos sobre vampiros!". Bom, todas elas me fizeram crescer como escritora. Dizem que é impossível ensinar-se a necessidade de escrever - a chama que sentes queimar, que te impele a fazê-lo – mas eu acredito que podemos aprender as ferramentas e os instrumentos que nos permitem melhorar a nossa escrita.

Há esse mistério sobre os escritores?

Nunca ficaríamos surpreendidas se um chef nos dissesse que teve de estudar para se tornar melhor. Porque é que isso não acontece com a escrita? Vêem-nos como génios, pessoas misteriosas, isso não é verdade. A inspiração é um mito. Para se escrever é preciso consistência, paciência, foco, é uma atividade para nos dedicarmos como qualquer outra. [Alejandro] Jodorowsky disse a coisa que eu acho que é a mais apropriada: "Não se pode ter espontaneidade sem estrutura." Vale para a escrita. No meu primeiro curso de escrita criativa na universidade, tomei coragem e levei o meu primeiro conto – que começava com o sol a entrar pela janela, e desenvolvia-se numa realidade distópica – ao meu professor. Que leu a primeira linha e parou. Disse-me: "Não posso continuar com esta leitura, porque a primeira frase é medíocre. É aborrecida." Disse-me que não queria saber que eu estivesse orgulhosa da história. Foi uma excelente lição, ele estava certo. Era uma frase má e uma descrição super aborrecida. Foi também uma lição sobre o leitor: ele não nos irá fazer um favor. Não tem de se esforçar para ler.

Como encontra a frequência certa para escrever?

O isolamento não é o mesmo que solidão. O tempo é precioso. Por exemplo, agora, acompanhar o meu livro por vários países, compromete o meu tempo para escrever. Quando consigo estar nessa bolha, é fantástico, e o tempo voa. Mas é um tempo necessário. Um livro nunca é uma coisa só de uma pessoa, envolve agentes, editores, editoras. É importante que exista uma confrontação com outras pessoas, cruzar histórias, trocar ideias, discutir plots, passagens, personagens. Tudo isso faz parte do trabalho de um escritor. A ideia da solidão [na escrita] é um outro mito. Há sempre um momento em que voltamos ao mundo. Eu aprendi que cada escritor tem o seu próprio método. Dizem que há dois tipos: o planeador, que se senta e faz o esqueleto, planeia, do princípio ao fim, sabe exatamente o que fará, e eu sou assim. Sou um caos em tudo o resto na minha vida, distraio-me, mas nas minhas histórias tenho de ser controladora. Passo muito tempo nesse processo. Eu crio um plano, um dossier de personagens, o meu ecrã de computador está organizado em função disso: de um lado, o meu plano, do outro, a minha página em branco. Às vezes acontece uma coisa gira: um personagem obriga-me a tomar outro rumo, ou explorar coisas que não estavam previstas. O que é bom: significa que o teu personagem é mais do que esperavas. Nesse momento tens de ir atrás dele. Faço isto mesmo em pequenos contos. Também sei de escritores que só seguem uma ideia e é isto – eles existem. Eu ficaria perdida e ansiosa! (risos). Eu adoro escrever, e sempre que posso escrevo todos os dias.

A Malnascida é sobre duas amigas a viver aquele período difícil da vida, que muitas vezes se desvaloriza - a adolescência. O livro retrata a amargura que é crescer, a vida a desenvolver-se.

Quando se escreve uma história nunca se pode pensar sobre a mensagem que passará, caso contrário vai soar a algo falso. Eu tenho tendência para escrever histórias sobre jovens, porque me sinto atraída por aquele espaço liminar, quando começamos a perceber o mundo, que estamos numa espécie de jaula que a sociedade nos impõe. É quando começamos a entender o que significará ser mulher, e o mundo exterior começa a ter reações a isso, especialmente os homens. Há um novo tratamento para connosco. É a fase mais difícil para uma rapariga. Começa tudo a tornar-se desconfortável no nosso corpo, porque ele está a mudar, mas o mais difícil é processar essa reação exterior à tua mudança. Agora, e isto é válido para mulheres e homens: a parte paradoxal de crescer passa pelo momento em que somos pequenos, pensamos sobre a ideia de nós próprios, e o mundo parece uma coisa grande só para nós, e podemos ser o que quisermos. Depois, percebemos que crescemos, sim, mas acontece o contrário: tornamo-nos pequenos. O mundo, em si, fica mais pequeno. Essa possibilidade com que sonhamos não existe. É a parte mais difícil e triste de crescer.

Este período ainda está fresco, tal a proximidade etária com essa fase da tua vida? Ainda tens esse sentimento de que algo se perdeu e transformou? Elas, as protagonistas, enfrentam essa mudança com muita coragem, já que o período retratado é de grande dificuldade financeira e instabilidade social. Além disso, estão quase sempre unidas.

Fico feliz que tenhas notado nisto. A maioria dos livros que têm mulheres como protagonistas são centradas em conflitos uma com a outra, ou conflitos interiores. Neste caso, o conflito é exterior. Elas estão sempre unidas. Não têm inveja, nunca querem ser melhor que a outra. Há um momento, em que Francesca cai, há uma traição, mas não por causa de inveja uma da outra. Em histórias de relacionamentos femininos, sempre uma competição por um homem, por um status, por um sítio, por uma família. Eu queria que elas fossem aliadas. Quando estão em conflito é por causa de factores externos. Elas querem estar uma pela outra, há uma sororidade.

Monza, Itália, 1936, fascismo. Há um contexto histórico forte - houve muita pesquisa?

Quando se quer enquadrar uma história num determinado período tem de existir muita pesquisa. Pode ser uma fase frustrante, mas leva a novas ideias, ao desenvolvimento de personagens. É essencial. Eu penso que há muitos livros sobre fascismo, mas muitos se esquecem da vida das pessoas mundanas. Eu estava mais interessada nisso, nos detalhes, nas cartas, nos diários, no pensamento das pessoas durante esse período. Consultei arquivos online de jornais regionais, dos anos em questão. Há uma cena durante o Grande Prémio da Itália, que envolve uma tensão política, que vinha descrita num desses jornais. Assim como as oferendas do ouro que as mulheres faziam ao estado.

Foto: DR

Foi buscar referências ao sítio onde cresceu. De que maneira se espelham no cenário? Há sempre uma sensação de que elas estão a ser observadas.

Apliquei, de certa maneira, a geografia da minha infância, aos sítios onde elas se movem. Agora o rio é muito poluído, mas veja-se os arriscados trajetos de bicicleta e o parque. Não queríamos saber dos perigos, mas sim das cicatrizes belas com que ficaríamos. Como eles, eu fiz coisas como escalar árvores, inventar brincadeiras no parque. Para mim, Monza é um sítio pequeno, tem um pensamento de uma cidade pequena, é tradicional, conservador, especialmente quando penso no microcosmos da escola. É difícil ser-se diferente num sítio assim.

Agora que o livro está em 32 países, como se sente? Lê as críticas? Num mundo cheio de opiniões, a opinião impacta a sua escrita?

Quando me pergunta sobre isso, gosto de evocar uma ilustração viral de um cão sentado à mesa com um chapéu [de K.C. Green]. Ele diz: "Está tudo bem [This is fine.]" – e a casa está a arder. É assim que me sinto (risos). De repente, graças à minha agente, que fez um milagre, este livro chega a tantos países. Saber que o livro é lido por tantas pessoas, é muito maior do que o que eu esperava. É fantástico e é um peso, porque agora há expectativas.

A pergunta mais irritante de todas será: há uma história no forno?

Eu escrevo sempre, a toda a hora. Quanto ao meu processo de escrita nada mudou, excepto que agora tenho menos tempo. De resto, sinto-me confortável para continuar como sempre fiz. Nunca penso no que virá, só no presente. Já escrevi mais histórias, porque este livro foi escrito em 2021, embora só tenha agora visto a luz do dia. É muito tempo. Confiei nos meus editores. Pelo meio, escrevi uma coisa muito diferente, de fantasia e magia, passada em montanhas, com bruxas que começam a cortar as línguas às mulheres, passada no séc. XV. Quis escrever para mim.

Nos agradecimentos, agradece a alguém por lhe ter mostrado Fernando Pessoa. O que viu nele?

Li o Livro do Desassossego. Está entre o sonho e a filosofia, parece uma conversa entre amigos, que debatem a vida. Há uma parte em que ele fala da carne que ele vê numa montra e começa a falar da decadência do seu corpo. É um livro todo sublinhado. É sonhador.

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