
Quando nos sentamos para escrever esta crónica cai lá fora uma chuva providencial. Lisboa está tropical e a melhor notícia são estas chuvas que lavam a alma e as ruas cada vez mais cheias. A chegada do outono é quase uma viragem meditativa para os poucos que sobrevivem no coração da capital, os atropelados pela demanda cosmopolita que, ao mesmo tempo, não têm como não se orgulhar desta nova Lisboa aberta ao mundo e cheia de pinta. Mas se os nómadas, à procura de alguma autenticidade perdida nas grandes cidades ocidentais, aqui encontram um país barato, quente e amistoso, para os seus habitantes de sempre às vezes parece que sobra cada vez menos. Assim, esta chuva traz a cidade de volta ao silêncio do seu batimento cardíaco, Lisboa pode ser de todos.
Em Lisboa existem vielas onde ainda se vive na aldeia, com a cabeça de fora da janela para confirmar movimentações e cumprimentar vizinhos e, nos últimos anos, uma forma de chamar a atenção aos turistas ébrios que falam demasiado alto ou fazem xixi à porta de nossa casa como nunca fariam nos seus policiados países. Recebemos desculpas, mas também indiferença e sobranceria. Além do mau gosto das fotografias de pratos e dos menus em inglês, das lojas de bugigangas a preços de Paris e da perda de espontaneidade porque está sempre tudo cheio. Também ganhamos uma cidade viva ao fim de semana e espaços onde os turistas vão encontrar-se com outros turistas para os brunchs e os coquetéis aos quais nunca ligámos. Atenção que agora o galão chama-se latte e custa três vezes mais. Batemos com o nariz na porta do café de fabrico próprio onde comíamos um pão com manteiga e encontramos duas senhoras idosas que víamos por lá muitas manhãs: vai ser mais um restaurante. Nos anos 90, era dali que vinha o cheiro a bolos e a pão quente, antes do Bairro Alto ser um depósito de despedidas de solteiros e de adolescentes afogados em caipirinhas em copos de plástico XL. Já fomos de pijama pedir para não abusarem do karaoke às três da manhã em prédios do século XIX onde tudo se amplifica ou expulsar um inglês que batia à porta do prédio aos pontapés, indiferente à madrugada num dia de trabalho.

Os moradores de Barcelona não nos ligam, os de Veneza rosnam e agora percebemos porquê. No sul da Europa, só a Grécia se safa porque está estilhaçada por ilhas de difícil acesso, já perderam uma certa paciência hospitaleira para as hordas do low cost. Mas entre o popular e o luxo, os lisboetas vão sendo abandonados ou escorraçados. Há dias conhecemos o senhor Leonardo, quando fomos comprar um pão de Mafra para desenjoar da espelta a cinco euros, vive no bairro há 25 anos e vai para o mercado conversar. Eu e o senhor António da cestaria, que vende ainda a preços reais e justos, andamos a tentar apanhar o sapateiro que endoidou com a velhice e fechou a loja com os nossos sapatos lá dentro. Já não há sapateiros, nem costureiras, aqui já viveu muita gente. Até o silêncio de Lisboa, que esta chuva recorda, deixou de nos pertencer. Os jardins, onde se lia e ouvia o vento entre as folhas das árvores e os passarinhos, passaram a ter bossa nova informal ou world music patrocinada, e feiras de toda e qualquer origem. E os aviões que não param de passar sobre a nossa paz, uns atrás dos outros atrás dos outros atrás dos outros.
Hoje a minha rua é o mundo, e gosto disso, mas também gostava que os últimos andares não fossem só de estrangeiros, como gostava que Cascais, o Alentejo ou o Algarve não se tornassem lares de terceira idade que excluem nacionais. No outro dia, uma vizinha advogada ouviu uma francesa dizer que vai abrir um spa no Príncipe Real, "mas não é para portugueses". Os expatriados vivem em bolhas, como dantes viviam os colonos, felizes pela diligência e doçura dos autóctones. Elogiam a segurança e a simpatia que, nem por acaso, muitos vieram abalar. Por outro lado, nunca tivemos vizinhos tão silenciosos, ganhámos lugar para estacionar, e perdemos os preguiçosos sacos de lixo, e os presentes dos animais, espalhados nos passeios. Estes são agora pistas de trotinetes e bicicletas, alguns paquetes da Uber Eats driblam pessoas como se estivessem em Calcutá. Até os tuk tuks já nos pareceram piores.
Há dias fui ter com amigas ao Intendente, para onde a gentrificação se move agora, e o rapaz de cadeira de rodas que pede sempre esmola à janela dos carros diz que acaba de ser despejado. Sentámo-nos a comentar o assunto quando passa por nós uma mulher num negro niqab que só deixa espreitar os olhos, é o segundo véu mais restritivo depois da burka afegã. Ainda há dias, naquele mesmo largo, vimos rodopiar em patins uma bailarina trans ao som de Britney Spears. Quando subimos a rua perto de casa, dois rapazes franceses comentam: "Devem ser francesas". Apeteceu-me dizer-lhes num sorriso: "Made in the heart of Lisbon, amor."
Nunca fui nacionalista, nutro até uma irritação pelos velhos do Restelo conservadores e desconfiados, mas quando há dias me tocam à porta e perguntam: Do you speak english? Respondi sem pensar: "Não sei, em que país está?" Ao mesmo tempo que me enterneceu um jovem com o seu cão rafeiro que perguntava no mercado como se dizia artichaut em português, e que repetia a palavra ovos, mesmo com a acentuação errada. Ou quando ouvimos um rapaz chinês falar calão lisboeta. As pessoas não são nacionalidades, e devem poder escolher viver onde pertencem. Claro que vamos ter saudades dos cuecões nos estendais, dos baldes atirados porta fora e dos tascos cobertos de cascas de tremoço e amendoim, mas agora temos uma cidade poliglota, aberta, cuidada, longe do cinzento Portugal orgulhosamente só. Temos o mundo no nosso quintal, um país mais colorido e alegre. Se não perdermos a nossa qualidade de sermos giros sem sabermos que somos, está tudo bem, a humildade é a nossa grande nobreza.

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