Atual

Crónica Isabel Stilwell. Espermatozoides ameaçados (e a culpa não é das mulheres)

A Proposta (2009).
A Proposta (2009). Foto: IMDB
01 de agosto de 2023 Isabel Stilwell

Quando se falava de infertilidade, a culpa era sempre delas. Das mulheres. Afinal não cumpriam com a única missão para a qual, segundo os grandes filósofos e teólogos, Deus se tinha dado ao trabalho de as criar, já que para todas as outras funções chegavam e sobejavam os homens. Embora, em teoria, não fosse motivo suficiente para repudiar uma esposa, a verdade é que nem as princesas escapavam a serem devolvidas à procedência, como quase aconteceu com D. Catarina de Bragança, a nossa rainha de Inglaterra.

Mas não bastava gerar uma criança, a tarefa era mais complicada do que isso, porque implicava que "desse" ao marido pelo menos um varão, herdeiro do nome, dos títulos, das terras ou do ofício — a obsessão era transversal a todas as classes sociais. Não havia volta a dar — quando o suposto plano divino falhava era para ela que se voltavam todos os olhares críticos, os das outras mulheres inclusive.  

Até que, finalmente, a ciência apontou o dedo ao homem, mas nessa altura já estávamos em 1905, apenas cinquenta e cinco anos antes de eu nascer, quase ontem, portanto. O eureka aconteceu quando a investigadora Nettie Stevens, que fazia experiências com baratas, descobriu que era o cromossoma sexual do macho — o famoso XY — que determinava o sexo da criatura a nascer. Mas mudar preconceitos milenares é coisa para demorar outros tantos, e em 1966, um prospeto da Direção Geral de Saúde dedicado ao futuro pai, ainda bem tentava martelar na cabeça dos homens que não valia a pena zangas contra a pobre esposa, porque — e a frase surgia escrita em maiúsculas — "É do pai que depende o sexo dos filhos".

Talvez, ainda hoje, a informação não tenha entrado em todas as cabecinhas, mas a verdade é que uma vez colocados os espermatozoides sob a lupa do microscópio, sucederam-se as descobertas que permitiram o advento dos "bebés proveta" e dos bancos de esperma, mas também fizeram cair por terra muitos mitos, como o de que, ao contrário da mulher sujeita à menopausa, a fertilidade masculina não decaía com a idade (hoje sabe-se que a partir dos 45 anos tudo fia mais fino). Mas antes fosse só essa a má notícia. Há muito pior. Os cientistas deitam neste momento as mãos à cabeça com um mistério mais assustador: a produção de esperma tem vindo a decair, e situa-se agora em metade da que era há 40 anos, provavelmente em consequência de hábitos de vida menos saudáveis e da contaminação química ambiental, que começa por afetar o feto ainda no útero da mãe, e tem depois um efeito cumulativo ao longo da vida.  

E, no entanto, fala-se muito pouco no assunto, e faz-se ainda menos para avisar os homens do que lhes está a acontecer, afirmam os produtores britânicos de "Salvem o esperma", um programa do Channel 4, que pretendeu levar a ciência às conversas de balneário, socorrendo-se do protagonismo de três estrelas de televisão que permitiram que o seu material genético mais íntimo fosse analisado e comentado por especialistas. A bem da humanidade e dos seus congéneres deixavam-se, por exemplo, filmar no ginásio vestidos de calças de lycra apertadas, com um detetor nas partes baixas, para dar a ver aos espetadores como o termómetro subia aos 37ºC quando a temperatura indicada para manter o "reservatório" em condições ótimas é de 35º C. Um computador portátil ao colo, sem a proteção de uma almofada, produz o mesmo efeito assassino, explicaram os técnicos.

Um deles, o humorista Russel Kane, desdobrou-se depois em entrevistas, confessando-se chocado com o que descobriu — aos 47 anos, magro e saudável, estava plenamente convencido de que ia ao "show" dar cartas, mas afinal a amostra continha apenas 11 milhões por ml (a média é de 40 a 60 milhões), com uma mobilidade de 33%, e só 2% dos seus espermatozoides mantinham o DNA intacto. Tecnicamente é infértil, diz, e embora não pretendesse ter mais filhos, jurou que foi um murro no estômago.   

Não foi o único que saiu dos estúdios abalado. Em casa, os espectadores também só podem ter sido contagiados pela angústia. Afinal, o assunto é sério e terão de ser eles a resolvê-lo.  

Saiba mais
Mundo, Atualidade, Crónica, Opinião, Isabel Stilwell, Infertilidade, Menopausa
Leia também
As Mais Lidas